quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

O PENSAMENTO CRÍTICO

Estamos vivendo tempos obscuros e estranhos. Não sei bem se é um retrocesso porque, afinal, a história não pode ser parada para se fazer um exame isento e científico, mas, entre as múltiplas questões que surgem, uma das mais graves é voltada à educação. O espantalho da “doutrinação” dos alunos por professores é um pretexto para a criminalização do pensamento crítico em sala de aula, frustrando o objetivo pedagógico de produzir cidadãos e cidadãs capazes de refletir de forma autônoma e respeitar às diferenças.

Parte-se de uma enganosa premissa de que o debate não é algo bom. Que possíveis diferenças individuais ou coletivas, não contribuem para uma educação que tenha a ver com a transformação do mundo e da vida. Em seu lugar, voltamos à ultrapassada compreensão de uma educação limitada à transmissão de “conteúdos”, dos quais o professor é um mero repetidor e o aluno, uma espécie de receptáculo passivo. Uma folha em branco. A tentativa de acentuar a ideia de que o ensino seria “acrítico” ou “neutro”, na verdade, tem mais a ver com a naturalização de um mundo aparentemente sem contradições.

São diversos projetos em tramitação nas esferas do Executivo e do Legislativo movidos pela ladainha da doutrinação. Imagina-se que escolas e universidades tenham se tornado centros de difusão de pautas marxistas. Trata-se de uma paranoia de quem, muito provavelmente, pouco ou nada tem a ver com o dia a dia das escolas ou universidades. Gente que prefere acreditar em fantasias e atacar figuras como Paulo Freire ou Rubem Alves. Pessoas que, bem se sabe, contribuíram de forma incondicional para um mundo melhor através da educação.

É preciso compreender que toda vez que alguma escola ou universidade se desloca, um pouco que seja, do seu papel de apenas reproduzir a ordem vigente, logo, se erguem bandeiras acerca de uma suposta “doutrinação”. A manobra é sempre a mesma. Fala-se contra as ideologias, mas, não se reconhece que esta opção também parte de uma “verdade” incapaz de perceber processos históricos, conflitos sociais, ganhadores ou perdedores. A tal “neutralidade” do discurso é um elemento de perpetuação das injustiças e também uma maneira de bloquear qualquer mudança para que todos vivam num mundo melhor.

Na atual ofensiva parecem existir dois alvos evidentes. O ódio ao marxismo e, de modo mais amplo, a qualquer forma de questionamento às desigualdades. Tudo isso sendo sustentado por uma leitura delirante das teorias de Gramsci difundidas por um lunático, auto proclamado filósofo, chamado Olavo de Carvalho. Na sua teoria esdrúxula, sem pé e nem cabeça, existiria uma luta pela produção de sentido no mundo a partir de um plano diabólico de lavagem cerebral das multidões.

Ao lado da ameaça que a emancipação feminina e a conquista dos direitos de minorias representa há, entrementes, também um exacerbado fundamentalismo religioso com claras demonstrações de oportunismo político. Ao deslocar o apelo dos conflito para as questões “morais” um significativo grupo das lideranças políticas e religiosas, se coloca em sintonia com uma parcela da população. Esta defesa da soberania familiar, tradicional, como protagonista de direitos irredutíveis, é o que, grosso modo, fundamenta o senso comum.

Resta, portanto, um questionamento primordial ao debate nestes tempos de insensatez e profunda incapacidade para o diálogo: Se a “neutralidade” não existe, uma vez que toda produção de conhecimento parte de um lugar social específico, o que seria o contrário de doutrinação? Para mim, é justamente o pensamento crítico, aquele que permite que os estudantes não sejam objetos, mas, sujeitos da aprendizagem, refletindo sobre os conteúdos e construindo suas próprias percepções, no diálogo com professores, colegas e o mundo. Lamentavelmente, parece ser o pensamento crítico que assusta.

sexta-feira, 29 de novembro de 2019

FIM DA HISTÓRIA

Corria o ano de 1989 quando um dos ideólogos do governo de Ronald Reagan e também mentor intelectual de Margaret Thatcher, o filósofo e economista Francis Fukuyama, propôs que a história havia chegado ao seu fim. Ele logo se tornaria muito conhecido no meio acadêmico. Sua afirmação causou grande perplexidade, pois sublinhava o término das utopias, sobretudo, por conta do esfacelamento dos ideais soviéticos. Para ele, estaríamos, pois, condenados a um futuro que se alongaria numa sucessão de fatos menores e de acontecimentos sem muita relevância.

Fukuyama expressava a mentalidade de um tempo que começava a ser chamado de pós-modernidade. Um contrapé histórico caracterizado pela decepção com as propostas do Iluminismo e com as afirmações mais incisivas da racionalidade. Tratava-se de questionar os avanços do saber científico; o domínio da natureza pela tecnologia; o aumento da produtividade e da riqueza material; a emancipação das mentes depois de séculos de imposição religiosa; o progresso e a salvação dos povos pelas instituições políticas; o aprimoramento moral dos indivíduos por meio da educação e das leis.

Se olharmos bem, parece mesmo que muitos destes propósitos foram pelo ralo. Ideais e bandeiras apaixonadas ficaram em algum lugar do passado. Um mundo de utopias cedeu lugar ao mais absoluto hedonismo. Os grandes ideólogos políticos deixaram seus palanques para os sabichões do marketing. Diminuíram as trincheiras nas ruas das cidades e muitos jovens optaram por gastar seu tempo nos shoppings. A China, por exemplo, o maior país comunista do planeta, se transformou em um novo paraíso capitalista, com instituições políticas totalitárias e uma economia de mercado sem precedentes.

Também não é por acaso que um dos maiores desafios de nosso tempo são as convicções fundamentalistas islâmicas que vem se notabilizando por defender um mundo que parece existir apenas na mente de alguns poucos reacionários dispostos a pagar com a própria vida a imposição de um estado teocrático. Vislumbram uma sociedade que deveria caminhar apenas em uma direção guiada pela leitura enviesada do Corão e sempre condicionada à disciplina e censura nos costumes e nas tradições. Entre tantas aberrações, se insiste, por exemplo, em condenar as mulheres a retrocederem séculos para se sujeitarem de novo às terríveis mordaças medievais.

Diante de tantas esquisitices de nossa era, no fundo, entorpecemos as consciências com a alienante desinformação. A televisão e as mídias sociais foram nos nivelando por baixo. A avalanche de novos fatos que se sucedem em um mundo globalizado não nos deixa tempo para a reflexão. Sucumbimos a um rápido processo de imbecilização. Há uma cultura de consumo que anestesia e induz para que mantenhamos uma imagem muito distante da realidade permeada pelas desventuras e dificuldades do cotidiano.

Fernando Pessoa em seu magnífico “Livro do Desassossego”, afirmou que ao herdarmos uma descrença generalizada tanto no “cristianismo como na igualdade social, na ciência e nos seus proveitos” acabamos nos contentando em meramente viver. E arremata: “Ficamos, pois, cada um entregue a si próprio, na desolação de só sentir viver. Um barco parece ser um objeto cujo fim é navegar; mas o seu fim não é navegar, senão chegar a um porto. Nos encontramos navegando, sem a ideia do porto que nos deveria acolher”.

O veredito de Pessoa, mesmo tendo sido manifestado há mais de um século, é doloroso: “Sem ilusões, vivemos apenas do sonho, que é a ilusão de quem não pode ter ilusões … Sem fé, não temos esperança, e sem esperança não temos propriamente vida. Não tendo uma ideia do futuro, também não temos uma ideia de hoje, porque o hoje, para o homem de ação, não é senão um prólogo do futuro. A energia para lutar nasceu morta conosco, porque nós nascemos sem o entusiasmo da luta”.

Melancolicamente também se percebe que a esperança anda pequena para tantos em nossos dias. A gente vai se contentando em repetir certas rotinas. Nos sujeitamos à ladainha de repercutir palavras sem muito sentido em um mundo carente de afetos. Vamos nos retraindo, cada qual no seu canto, para viver sem grandes propósitos. Vivemos para existir. Temos dificuldades para sonhar e medo de amar.

O conhecido escritor, dramaturgo e primeiro presidente da república tcheca, Václav Havel, certa vez, sentenciou: “esperança não é lutar porque vai dar certo, mas por aquilo que vale a pena”. Intuo que a esperança deveria estar no alicerce de nossas mais intimas decisões. Mesmo sem saber bem como será o amanhã, é preciso perseverar. Não resignar-se diante do futuro ainda que pareça sombrio. Não se acomodar à profecia apocalíptica preconizada por pretensos conhecedores da história, a exemplo de Fukuyama.

Lutar por ideais, abraçar causas, romper zonas de conforto. Fazer da própria palavra um instrumento que coloque abaixo a mediocridade, desmontando estruturas sociais perversas e que sejam sempre uma contradição ao espírito individualista de nossa época. É urgente nos dispormos a construir uma sociedade mais solidária, uma economia mais justa e um mundo sem tanto ódio e insensatez.

Eu, de minha parte, desejo, por fim, estar ao lado de quem quero bem. Cultivando momentos de partilha e afeto. Peço a Deus a capacidade para seguir acreditando que as fagulhas da bondade ainda prevalecem diante das trevas. Quero continuar confiando no bem e na paz. Diminuir minha rudeza e apatia Aumentar minha paciência e perseverança.

segunda-feira, 11 de novembro de 2019

TARDE DEMAIS

Por que a Alemanha, o país com um dos melhores sistemas de educação pública e a maior concentração de doutores do mundo, sucumbiu a um charlatão fascista? Essa é uma das questões emblemáticas que continua suscitando muitas interpretações e respostas. Tomo a liberdade de discorrer acerca daquilo que me parece mais óbvio a partir de, pelo menos, sete aspectos, para compreender melhor a realidade.

Por volta do ano de 1920, Adolf Hitler, era apenas um ex-militar do baixo escalão levado a sério por pouca gente. Era conhecido por seus discursos indignados contra os políticos, os pacifistas, as feministas, os gays, imigrantes e a grande mídia. Em 1932, porém, em torno de 37% dos eleitores alemães votaram no partido de Hitler que passou a ser a nova força política dominante no país. Em janeiro de 1933, ele se tornava o chefe de governo. Mas, afinal, por que tantos alemães instruídos haviam votado em alguém que depois levaria o país ao abismo?

Em primeiro lugar, os alemães tinham perdido a fé no sistema político. A jovem democracia não trouxera os benefícios que muitos esperavam. Havia gente que se sentia ultrajada pelo sistema político que tinha causado a pior crise econômica na história. Buscava-se um novo protagonista. Alguém que pudesse promover mudanças de verdade. Muitos dos eleitores, à época, até ficavam incomodados com o radicalismo, mas as outras alternativas que se colocavam não pareciam oferecer uma boa saída.

Em segundo lugar, Hitler sabia como usar a mídia para os seus propósitos. Contrastava com o discurso enfadonho da maioria dos outros políticos. Era alguém que se valia de um linguajar simples, espalhava notícias sem muito fundamento e os jornais, ainda que que achassem sua postura incorreta nos seus propósitos, retratavam autenticidade, sobretudo, em quem o apoiava. Cada discurso era um espetáculo. Diferente dos outros agentes da vida pública, ele era recebido com muitos aplausos por onde passava. Empolgava multidões.

Em terceiro lugar, muitos alemães sentiram que seu país sofria com uma crise moral e Hitler prometia uma restauração. Pessoas de diferentes vertentes religiosas ficavam horrorizadas com o novo ideário artístico e as referências culturais que surgiram neste período. As mulheres cada vez mais independentes e os grupos LGBT ganhando visibilidade. Os conservadores sonhavam em restabelecer uma antiga ordem. Os conselheiros de Hitler, não por acaso, eram em sua maioria, homens, militares, heterossexuais, brancos. As mulheres, segundo o seu entendimento, deveriam se limitar a administrar a casa e ter filhos.

Em quarto lugar, apesar de Hitler fazer declarações polêmicas, muitos pensavam que ele só queria trazer a realidade para mais perto das pessoas. Muitos alemães que tinham amigos gays ou judeus votaram em Hitler, confiantes de que ele nunca implementaria as suas promessas. Era uma pessoa simples, inexperiente e sem muita noção da realidade. Não raro, ele era motivo de chacota para os opositores. Mesmo sem muita noção do cargo que ocupava, em geral, as pessoas acreditavam que a governança poderia ser realizada por conselheiros.

Em quinto lugar, ele era alguém capaz de oferecer soluções simplistas que, à primeira vista, faziam sentido para as pessoas. Os problemas da criminalidade, por exemplo, poderia ser resolvido se cada indivíduo tivesse acesso a armas, se o Estado aplicasse a pena de morte ou se mais gente estivesse na prisão. Problemas econômicos, segundo o seu pensamento, eram causados pelas relações promíscuas com outros países, sobretudo, de ideologia comunista. Os judeus, que à época, eram menos que 1% da população, passaram a ser responsabilizados por tudo aquilo que não andava bem na sociedade alemã. Não por acaso, se passou a defender o espirito patriótico com slogans do tipo: "Alemanha acima de tudo", "Renascimento da Alemanha", "Um povo, uma nação, um líder."

Em sexto lugar, muitos empresários ligados a grandes corporações, aderiram aos propósitos hitleristas porque ele havia prometido, e depois veio a implementar, de fato, um interessante regime que beneficiava grupos e projetos especiais. Algumas corporações industriais viram seus contratos melhorarem e, por conta disso, ignoravam as tendências fascistas em curso.

Em sétimo lugar, mesmo antes da eleição de 1932, falar contra os ideais de Hitler tornou-se mais complicado. Muitos grupos, inclusive da juventude que apoiava o ditador, passaram a ameaçar oponentes. No início, com abusos verbais, depois, com a violência física. Milhares de alemães que não apoiavam o regime optavam pelo silêncio para evitar problemas.

Em apenas doze anos, pelo menos, seis milhões de judeus foram exterminados e mais de 50 milhões de pessoas mortas. Alemães que haviam apoiado Hitler, diziam que não tinham ideia de que ele traria tanta miséria ao mundo. Justamente quando era mais necessário defender a democracia, os alemães caíram na tentação de apoiar um demagogo patético que fornecia uma falsa sensação de segurança e poucas propostas concretas de como lidar com os problemas da nação.

Importa lembrar sempre que Hitler não chegou ao poder porque todos os alemães eram nazistas ou então, antissemitas, mas, porque muitas pessoas de bom coração fizeram vista grossa ou silenciaram diante daquilo que se anunciava. O mal se estabeleceu na vida cotidiana porque as pessoas estavam cansadas ou sem vontade para reconhecê-lo e denunciá-lo. Os alemães, diante da corrupção e da crise, estavam dispostos a minimizar certas bobagens que ouviam. Antes que muitos percebessem o que estava acontecendo, ele já não podia mais ser contido. Era tarde demais.

quarta-feira, 30 de outubro de 2019

O LEGADO DE PAULO FREIRE

Paulo Freire, um dos maiores nomes da educação brasileira e referência mundial, é o único autor brasileiro a fazer parte dos 100 livros mais requisitados em universidades dos Estados Unidos. No Brasil, o Patrono da Educação Brasileira, contudo, é menosprezado e atacado. Ataques que vem de quem talvez nunca tenha lido um dos tantos livros que ele deixou ou que não reconheça os seus 35 títulos de Doutor Honoris Causa referendado por Universidades da Europa, Estados Unidos, América Latina e Brasil. Há quem prefira acreditar em qualquer coisa, mas não no exemplo de um cidadão brasileiro que, como poucos, soube sonhar com uma sociedade melhor.

A obra de Paulo Freire, ao contrário do que dizem seus detratores, é uma obra que fala do amor através da educação. A sua principal contribuição é a humanização. Reconhecer-se humano e reconhecer a humanidade no outro. É através da língua escrita que o ser humano é capaz de se compreender como alguém que faz parte de um mundo que necessita ser melhorado a cada dia. Freire revela o desafio de vivermos juntos, com qualidade de vida, de conferirmos ao outro a dignidade que acentuamos em nós mesmos. De reconhecermos o outro como um sujeito capaz de concretizar a sua vida com dignidade.

A ideia de que a leitura do mundo precede a leitura da palavra escrita é absolutamente necessária e fundamental. Toda a leitura e toda escrita dissociadas da leitura de mundo caem no vazio. Parte do fracasso escolar que o sistema educacional produz, tem a ver com esta realidade. Quando se tira a criança do seu contexto e a escola vira um mundo completamente estranho, se impede que a aprendizagem se constitua, porque é preciso estabelecer vínculos, é preciso estabelecer sentidos. Uma leitura de mundo que precede a leitura da palavra escrita, ajuda a construir sentidos. Não é, pois, possível colher aquilo que não se plantou.

Paulo Freire é tão depreciado, primeiro em função da ignorância que se tem sobre ele, sobre sua obra, e, segundo, porque ao estimular a leitura e a escrita, desafiou para que as pessoas exercitassem a autonomia intelectual. Relembrar Freire é celebrar a vida e a possibilidade de vivermos juntos mesmo com tanta falta de diálogo e truculência nos dias atuais. Quanto menos educação, mais prisões. Quanto menos educação, mais desemprego. Quanto menos educação, mais preconceito étnico, racial e religioso. É disso que se trata: construir uma sociedade plural, com unidade na diversidade. Afinal, a diversidade deveria ser nosso maior trunfo e uma das chaves de nosso desenvolvimento.

sexta-feira, 4 de outubro de 2019

VIVA A IGNORÂNCIA!

Para o filósofo Immanuel Kant, talvez a voz teórica mais expressiva do mundo moderno e, por extensão, do liberalismo político, haveria justiça na sociedade quando nela cada um tivesse a liberdade de fazer o que quisesse, contanto que isto não interferisse na liberdade dos demais. A máxima do pensador alemão é a base do funcionamento do Estado de Direito. Obediência à lei de acordo com a consciência de quem vive em sociedade, com a premissa de que a liberdade de uns não possa ofender ou interferir na liberdade dos outros.

Estes conceitos, que a partir do iluminismo passam a ser filtrados, reorganizados e recompostos na sociedade, também se apresentam na história a partir de diferentes interpretações. Eles não foram fundados por ideologias liberais ou conservadoras, mas iluminaram o desenvolvimento do capitalismo e, mais tarde, suscitaram controvérsias com uma visão dogmática que depreciava a democracia como elemento constitutivo para uma boa convivência na sociedade.

Por muito tempo, houve certo consenso de que era necessário superar a ignorância para desenvolver as potencialidades de cada indivíduo e favorecer a harmonia em sociedade. Mesmo a abstração do “homem econômico”, transformado em modelo no liberalismo clássico ou no neoliberalismo, supunha a superação da ignorância. A mesma ignorância que até bem pouco tempo, era vista como coisa a ser evitada de muitas maneiras. Mesmo pessoas com menor instrução, em geral, entendiam que o conhecimento era algo a ser buscado de forma contínua e persistente. Hoje, o que parece, é que o conhecimento virou uma mercadoria com pouca serventia.

A ignorância é uma prerrogativa que possui valor porque pode ser explorada tanto no plano econômico quanto no plano político. É a matéria prima para um processo de subjetivação que não enfrentará resistência de valores como a “verdade”, a “solidariedade”, a “inteligência”, a “lógica”. Diante da valorização da ignorância, o ser humano vai sendo ressignificado e percebido como alguém que se move a partir do senso comum. A “educação” e a “cultura”, por sua vez, passam a ser tratadas como ameaças e, por extensão, precisam ser deixadas de lado. Instaura-se, assim, um novo modelo: uma sociedade movida para e pela ignorância.

Com a demonização da educação e da cultura vistas como atividades degeneradas e “ideológicas”, aparece o indivíduo com orgulho de ser ignorante. Capaz de demonstrar sua adesão a certas “verdades” sem maior reflexão. Acontece uma curiosa inversão de valores e, como toda manifestação ideológica, não percebida como tal. O intelectual, ou seja, aquele que se diferencia por um saber específico, torna-se objeto de reprovação social, enquanto aumenta a espetacularização do desconhecimento.

Diante desse quadro, cada vez mais pessoas buscam se expressar a partir de uma linguagem empobrecida, com o recurso a slogans, frases feitas, chavões, jargões e construções gramaticalmente pobres, com o objetivo de contarem com a simpatia de interlocutores que eles supõem também serem ignorantes. A orientação é a de se limitar a formulações simples para conseguir a atenção de um número cada vez maior de adeptos. É neste clima de indigência intelectual que a pessoa vira especialista em qualquer assunto. Não basta o conhecimento, valem as convicções.

A ignorância é, pois, um dado natural. Basta não educar ou educar de forma precária para conseguir muita matéria-prima. Mantê-la, incentivá-la ou explorá-la, passam a ser objetivos estratégicos. Isso porque a ignorância permite uma nova e mais produtiva forma de desconhecimento a respeito dos outros seres humanos, dos mecanismos de exclusão, das técnicas de opressão e do como se interage com os demais. O valor da ignorância facilita a introjeção de uma normatividade adequada aos interesses de quem busca impor a sua vontade.

Um povo ignorante, por exemplo, pode não apenas ficar apático diante de qualquer autoritarismo como, inclusive, desejá-lo, na tentativa de suprir o medo que deriva do desconhecimento sobre fenômenos e valores como a liberdade e a verdade. É a ignorância que fomenta a base que naturaliza os absurdos. O indivíduo ignorante acredita que ele e suas limitações são o retrato do mundo. Incapaz de operar a distinção entre o essencial e o superficial, torna-se facilmente massa de manobra.

Não por acaso, o desconhecimento sobre a complexidade da sociedade e a insegurança gerada por essa ignorância, favorecem o surgimento de movimentos que buscam um passado idealizado para dar sentido à vida no presente. No lugar do convencimento por argumentos racionais ou científicos, reforçam-se os preconceitos, as confusões conceituais, os vazios cognitivos. A ignorância deixa de ser velada para se tornar celebrada.

sábado, 21 de setembro de 2019

20 de Setembro

Conta-se que, no passado, grandes homens consolidaram as bases do Brasil com a força das suas mãos, com a energia dos seus ideais e com o sangue que aceitaram verter em nome do futuro. Esses homens, em dado momento, saíram da história para se transformar em mitos. Hoje, figuram em livros ou em nomes de ruas. Quem foram eles? O que fizeram? Conhecer a história é também produzir um imaginário. Um modo de desvelar o mundo, de descobrir e de tecer novamente os acontecimentos. A história nunca para de ser feita, escrita, inventada.

Toda cultura expressa reconhecimentos e cria realidades. Quando perde a dimensão de representação da complexidade humana e se converte em civismo, tende a ser uma força alienante. A população do Rio Grande do Sul, afinal, sabe o que se comemora no dia 20 de setembro? A data suscita o culto a um imaginário perdido no tempo. Receio que a maioria da população não tenha uma ideia muito clara acerca daquilo que aconteceu no passado. A visão que predomina no conjunto da sociedade é a elaboração feita pelo tradicionalismo, convertida em civismo. Qual o significado e os dilemas desta minha afirmação?

O Rio Grande do Sul, na pretensão tradicionalista, foi transformado em uma espécie de país, como se todos que aqui viviam tivessem o interesse de combater o Império. Trata-se de uma visão equivocada, porque os farrapos eram a minoria da população. Eles jamais passaram de cinco ou seis mil pessoas, num contingente de quase 500 mil. Há, portanto, distorções nesta visão. A revolução foi um movimento dos ricos para os ricos. Dos poderosos para os poderosos. Liberdade para se ganhar dinheiro, igualdade na hora de se cobrar impostos e humanidade para quem mais tinha.

O povo do Rio Grande do Sul, na sua expressiva maioria, ficou ao lado do Império. A revolta era dos estancieiros e charqueadores. Não era, pois, uma reivindicação do conjunto da população. Era um protesto contra a taxação da terra e do charque. Simbolizava os interesses de uma classe proprietária e de pessoas que lidavam no mercado internacional do charque, pois durante todo o período colonial, por mais de três séculos, nunca havia sido cobrado o imposto da terra.

Por outro lado, nos primeiros anos da independência as oligarquias de muitos estados disputavam o poder com as elites das outras regiões do Brasil. Não por acaso foi também o período de outras revoltas pelo país afora, como, por exemplo, a cabanada, sabinada, balaiada, etc. O fato da maioria do Rio Grande do Sul ficar ao lado do Império, significava ser a favor de uma noção de brasilidade e não perder a identidade que a independência havia trazido. Foi por isso que a população, especialmente nas cidades, lutou ao lado do Império, e não ao lado dos farroupilhas.

É preciso descontruir o ideal de que o Rio Grande do Sul se levantou como um todo contra o Império. Trata-se de uma distorção histórica. Um mito inventado, em grande medida, para legitimar os ideais de criação de um novo país na carona daquilo que havia sido preconizado pela separação do Uruguai. Esta premissa de que houve um momento no passado onde um estado inteiro se levantou contra o império não tem consistência. Na verdade, a população mais pobre, além de ter parte de suas terras invadida e saqueada, em alguns casos, foi, inclusive, arregimentada a força.

O maior expoente da revolução, Bento Gonçalves, morreu rico. Deixou entre outros bens, mais de 50 escravos para seus herdeiros. A lenda criada tende a romantizar sua biografia retratando que ele tinha acabado a vida como o mais pobre dos homens. Outro elemento histórico é que em dez anos de guerra, teriam morrido por volta de 3000 pessoas, uma média de 300 por ano, menos de uma por dia. Durante a revolução praticou-se de tudo: estupros, degolas, saques, apropriação de terras alheias e sequestros.

Antônio Vicente da Fontoura, o encarregado de negociar a anistia com o Império, foi um dos que mais denunciou a corrupção neste período. Com o fim da revolução, as principais lideranças farrapas receberam anistia e polpudas indenizações do Império. Nunca houve um tratado de paz de Ponche Verde. Canabarro e Caxias não estiveram juntos às margens do rio Santa Maria para um aperto de mão e a assinatura de um documento de paz. Muitos farroupilhas acabaram ingressando no exército imperial.

Para além de possíveis incompreensões, gostaria de deixar claro que não sou contra e, inclusive, me alegro com os festejos gaúchos cultuando a bravura dos antepassados e a atividade do campo e a vida rural. Porém, é distorcida esta visão de se comemorar a Semana Farroupilha como um movimento libertador e vitorioso. Não é possível descortinar a história num presente alheio aos fatos.

terça-feira, 10 de setembro de 2019

CIÊNCIA E PESQUISA

É impossível não perceber a gravidade daquilo que estamos vivendo em relação a ciência e a pesquisa no Brasil. Não são apenas milhares de pesquisadores que ficarão sem bolsa - para muitos deles, a única fonte de renda - e de projetos sem continuidade. Não é apenas a quebra unilateral e arbitrária de milhares de contratos que tinham gerado expectativas e investimentos pessoais.

Isso já seria muito grave, mas há mais. Vamos abrir mão de vez da expectativa de sermos um país soberano e nos acomodar passivamente à posição de receptores de conhecimento produzido em outros lugares? Vamos aceitar o aniquilamento da nossa inteligência? Vamos ficar como espectadores do avanço científico e tecnológico? Vamos negar a nós mesmos a possibilidade de construir um projeto de nação? Vamos abraçar de vez o atraso?

A destruição da pós-graduação e da pesquisa terá um efeito cascata nos outros níveis de ensino, fazendo decair ainda mais a qualidade da educação oferecida no Brasil. Trata-se de antever um país de trabalhadores com uma formação cada vez mais precária. Há, por óbvio, uma parcela da população que acredita em teorias estapafúrdias e que, por isso mesmo, entende o conhecimento como uma forma de perversão. Alardeiam bobagens descrevendo as universidades como antros de drogados, da promiscuidade e da bandalheira política e ideológica.

A defesa da pesquisa científica e da pós-graduação no Brasil não deixa de ser um teste para ver de que lado as pessoas se encontram nos dias atuais. Que pactua com os retrocessos e prefere dar voz a certos preceitos destituídos de um mínimo de bom senso talvez nunca consiga perceber que a educação é a única alternativa para construirmos um país melhor. Nossa tarefa é apontar a gravidade do que está acontecendo, esclarecer as implicações e estabelecer as condições de uma ação ampla e efetiva.

Os dados mostram mais de 21 mil novos trabalhos acadêmicos de pesquisadores do Brasil desenvolvidos com verba do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) somente no ano de 2017. Isso representa um terço de toda a ciência do país. Para se ter uma ideia, são quase 60 novos trabalhos por dia. Em um deles, por exemplo, os pesquisadores brasileiros exploraram a aplicação de células-tronco em doenças cardíacas - a principal causa de morte no Brasil. Apenas em 2017, houve 51 novos estudos sobre o zika vírus com financiamento do CNPq. Praticamente uma nova descoberta sobre a doença por semana.

A verba destinada para as pesquisas, entrementes, vem sendo usada para comprar insumos e equipamentos de laboratório na medida em que muitas de nossas Universidades, por conta dos sucessivos cortes, não consegue disponibilizar os meios adequados ao fomento dos projetos. O CNPq também paga diretamente bolsas de pesquisa a pós-graduandos –uma espécie de salário para que cientistas em formação se dediquem exclusivamente a suas pesquisas. Um bolsista de doutorado recebe R$ 2.200 e um de mestrado R$ 1.400 mensais. O valor não é reajustado há mais de seis anos.

Alega-se que o CNPq não terá mais recursos para pagar os cerca de 85 mil bolsistas financiados pela agência. Antes disso, o órgão já havia congelado as bolsas "especiais", voltadas para cientistas com alto nível de produção acadêmica. É o caso de quem está realizando estudos de pós doutorado. O aporte à realização de congressos, seminários, simpósios e eventos científicos também foi suspenso.

Além da paralisação de pesquisas essenciais para o desenvolvimento do país, o possível corte de bolsas pode levar à fuga de capital humano. Trata-se da perda de pós-graduandos e de cientistas já formados no país, inclusive com dinheiro público, que buscarão recursos para fazer ciência em instituições estrangeiras. Criado com pompa e ligado diretamente à presidência da república, em 1951, o CNPq tem sofrido cortes imensos nos últimos anos. Hoje, o orçamento do órgão é a metade daquilo que representava no ano de 2012.

Os cortes de bolsas e de investimentos na pesquisa apontam para um país mais desigual, mais dependente e mais submisso. Afinal, na pesquisa científica não se aperta a tecla "pause" para depois retomar de onde parou. É necessário continuidade. Os sucessivos cortes nos farão recuar décadas. Podemos perder gerações.

Não é difícil entender este quadro. No entanto, o déficit cognitivo atual é tão gritante que vamos aceitando que as pessoas não sejam capazes de se dar conta desta realidade. Os cortes se transmutam em dramas pessoais. São milhares de projetos de vida cortados em plena jornada. São pessoas que fizeram escolhas, que deixaram de aceitar outras oportunidades porque se sentiram vocacionadas para a ciência, que investiram anos e anos de suas vidas - e agora são jogadas no vazio.

Gente que abandonou emprego. Gente que recusou emprego. Gente que mudou de cidade e não tem como se manter. E o que faz o ministro da Educação? Exibe sua total insensibilidade. Quanto tem chance, debocha. É pior do que ser iletrado. É pior do que ser desinformado. É pior do que ser reacionário. É pior do que ser obscurantista. Se fosse só isso, estaríamos muito mal. Estamos pior. Ele é perverso!

quinta-feira, 22 de agosto de 2019

MENTIRAS E FALSIDADES

Existem duas coisas absolutamente lamentáveis neste mundo: a mentira e a falsidade. Ambas podem destruir quase tudo aquilo que encontram pelo caminho nas relações humanas. Na maioria das vezes, não são atitudes que vem de pessoas desconhecidas, mas de gente com quem vivemos e convivemos. Quando um sentimento importante é quebrado, algo em nós se esfacela. A mentira e a falsidade põe em dúvidas experiências que julgamos únicas.

Para algumas pessoas, agir por meio da mentira e da falsidade é quase uma questão de hábito. Quem não conhece gente que parece ter uma desenvoltura enorme na “arte” de mentir e enganar? Tem quem finja não ter maiores problemas com a mentira. Talvez por isso, busca justificativas para percebê-la como sendo apenas um equívoco na ação, nunca em sua intenção. É o que se costuma chamar de mentira sem melindres, consequências ou ressalvas. Coisa pequena, boba.

Há quem argumente que a mentira, em geral, pode ser baseada em relações de má qualidade. No entanto, o fato é que o ser humano, em muitos momentos, não é bom em avaliar além daquilo que lhe é mais imediato. Além do preto ou do branco. Com o tempo, as coisas são colocadas em seu devido lugar. Mentiras ou enganos, na maioria das vezes, têm um sentido imediato e necessitam de circunstâncias para serem sustentadas.

Embora seja difícil que uma mentira se sustente ao longo do tempo, é normal que as pessoas busquem certas “ilusões” para não ter de enfrentar tantas vicissitudes e intempéries na jornada. Mesmo com determinadas evidências, há quem prefira uma boa dose de ilusão em seu cotidiano. Certas decepções abrigam uma enorme capacidade de destruição. Mentira e falsidade, podem se transformar em feridas profundas na alma.

Superar situações adversas pode levar algum tempo. No entanto, o caminho do perdão é também uma forma de nós mesmos não permanecermos ligados a algo que não é construtivo. Faz bem para a própria sanidade exercitar caminhos de paz e lealdade. Nunca será bom imaginar que todas as pessoas são iguais quando vemos a vida por aquilo que ela nos proporciona em termos de lealdade ou caráter. Os percalços também são uma boa oportunidade para compreendermos melhor o nosso lugar no mundo.

terça-feira, 30 de julho de 2019

Fundamentalismos e Perversidades

O fundamentalismo parte de uma afirmação absoluta a respeito de sua própria verdade e rejeita os argumentos discordantes, considerando-os falsos. No Brasil, a aliança de dois modelos fundamentalistas bagunçou as coisas: o fundamentalismo econômico e o fundamentalismo religioso. No primeiro, a existência humana gira em torno do dinheiro. A acumulação de riquezas é o principal argumento. Trata-se de uma verdade apoiada por uma ciência econômica como meio ou caminho. A economia como ciência se sobrepondo à política; o individualismo servindo como parâmetro. Segurança, saúde, educação, transformadas em ativos econômicos.

No segundo caso, o fundamentalismo religioso, constituído por uma mistura de moralismos (comportamentos) e meritocracias (prosperidade). Deus se submetendo às ambições humanas. Sendo usado como elemento do discurso político. A "bandeira" política é identificada como vontade de Deus. Decisões políticas são "obras do Senhor". A ação política, as instituições públicas e os governantes sendo guiados pelas verdades da religião. Os adversários são vistos como inimigos de Deus.

Não é raro ver gente invocando o nome de Deus para justificar determinadas “verdades”, sobretudo, quando estas se referem a usos e costumes. O repertório varia, mas, em geral, negros, indígenas, mulheres e homossexuais, passam a ser vistos em contraposição aos parâmetros bíblicos. Há quem, inclusive, em nome da própria fé não veja dilemas ou melindres em apoiar a tortura, a pena de morte e a violência. A Constituição e o Estado de Direito passam a ser constantemente ignorados.

Uma das primeiras regras de quem adere à retórica fundamentalista é demonizar quem não concorda com o seu ponto de vista. A aliança entre fundamentalismo econômico e fundamentalismo religioso vem reconfigurando as esferas do poder em nosso país. Os "escolhidos" tem uma missão recebida de Deus e do mercado. A religião e a economia se fundem. Representantes de igrejas são nomeados para funções estratégicas. Enquanto isso, a pobreza e o desemprego seguem alcançando milhões de familias. A perversidade parece ser o preço da ignorância.

quinta-feira, 11 de julho de 2019

Lavagem Cerebral

Fora do Brasil, poucos acreditam no que anda acontecendo por estas plagas. Tenho falado com gente que não é daqui e o sentimento é de perplexidade, consternação e até pena acerca do momento que vivemos. A imagem do povo cordial e afetuoso vai ficando de lado. Sobram questionamentos. Os brasileiros com um pouco mais de lucidez percebem que há algo de muito estranho acontecendo. Como nos tornamos o que somos?

Na Alemanha, por exemplo, foi o ódio aos judeus que encabeçou o ódio geral; no Brasil a coisa vem resvalando para o ódio às esquerdas, às lutas feministas, às universidades e aos professores, colocados sob o guarda-chuva de uma paranoia sem precedentes e qualificados como “comunistas”. Qualquer um que tenha um pouco de discernimento haverá de concordar que o fato de existirem pessoas que se guiem ética e politicamente pela utopia de um mundo sem tantas desigualdades nada tem a ver com “comunistas”. É um evidente exagero chamar de “comunista” qualquer pessoa simplesmente porque ela tenha um pensamento diferente ou por defender os direitos fundamentais. Isso tem muito a ver é com maldade ou burrice!

Não é tarefa das mais fáceis explicar o que temos vivenciado. Há uma espécie de “lavagem cerebral” em curso que justifica a violência, as catástrofes, à manipulação de crises que fazem com que as pessoas aceitem coisas que não aceitariam em sã consciência. Sejam objetos, sejam ideias estapafúrdias, tudo serve como chave que abre janelas emocionais em qualquer pessoa. A experiência da perturbação emocional nas massas é provocada. Você tem de estar muito protegido pela reflexão, o amor próprio e compreensão dos valores democráticos para não sucumbir a certos delírios.

A cultura e a educação tendem a dar algum sentido e explicação para as pessoas diante deste estado de coisas. Mas esta percepção vai sendo manipulada nos discursos estrategicamente concebidos, especialmente dentro das corporações televisivas e nas mídias sociais. A indústria cultural manipula o pavor e o êxtase, reduzindo os indivíduos a uma passibilidade diante de múltiplas desinformações. Nesse cenário, exercitar o discernimento e a lucidez parece ser uma tarefa bastante complexa.

O sociólogo e jurista português, Boaventura de Sousa Santos, um dos maiores pensadores do nosso tempo, sublinha que as guerras, catástrofes e crises, são cada vez mais necessárias ao capitalismo. A capacidade de produzir, acumular e circular valores a partir da desgraça e do infortúnio explica, em grande medida, o sucesso de um modelo que muitos acreditavam estar fadado a desaparecer a partir de suas contradições. O ato de destruir para, em seguida reconstruir, torna-se natural e, ao mesmo tempo, pode ser visto como fundamental à manutenção de uma estrutura em que até a dor e o sofrimento acabam se transformado em mercadorias.

Para compensar o caos social, produzido em razão da adoção de medidas impopulares, os detentores do poder econômico estimulam promessas e discursos que satisfazem um imaginário que projeta o retorno a um passado idealizado de segurança. A falta de limites entre política e religião, o abandono dos valores da modernidade como a “liberdade”, a “igualdade” e a “fraternidade”; os limites às garantias fundamentais em detrimento do Deus-Mercado.

Trata-se, no fundo, de um modelo de civilização no qual se imagina vender e comprar, quase tudo. Armas ao lado de bíblias, obras de religiosos “cristãos” que negam a escravidão, o holocausto, defendem a tortura e a violência ou de “intelectuais” que ainda contestam a heliografia e a teoria da relatividade. O trabalhador tornou-se, cada vez mais, dispensável. No entanto, uma das maiores mudanças deste tempo, fruto desta racionalidade que realça o ser humano como objeto sempre passível de lucro, foi transformar os sujeitos em indivíduos sem discernimento crítico mesmo com tantas informações e conhecimentos à disposição.

Há uma regressão que pode ser percebida nas interações sociais, na dificuldade de argumentação, na incapacidade de apreender e seguir normas éticas e jurídicas. Tem-se o declínio da verdade e o desaparecimento da objetividade. Os fatos, a ciência e a reflexão vão perdendo a importância. O pensamento é simplificado e a linguagem empobrecida. A capacidade de refletir acerca de sua própria condição, faz com que o indivíduo tenha possibilidades múltiplas para construir um mundo melhor em que os valores da liberdade, da igualdade e, principalmente, da fraternidade voltem a importar na sociedade.

A hipótese que sustento é bastante simples: para a manutenção daquilo que vivemos é necessário que as pessoas NÃO pensem ou então, pensem CADA VEZ MENOS. O empobrecimento da linguagem e a transformação de tudo e todos em objetos negociáveis são fenômenos que funcionam como elementos que naturalizam as injustiças. Permite que convivamos com a banalidade do mal em cada canto. Criou-se uma espécie de racionalidade que naturaliza o empobrecimento da linguagem e leva à crença de que a simplificação do pensamento é uma dádiva e não um problema. Dá a impressão que o egoísmo virou virtude e o conhecimento, bobagem.

sexta-feira, 5 de julho de 2019

O Fascismo Eterno

Semanas atrás tive o privilégio de ser presenteado por um amigo querido com um livro instigante e desafiador - O Fascismo Eterno - do consagrado escritor, filósofo e linguista italiano, Umberto Eco (1932-2016). Um dos mais importantes pensadores do nosso tempo. A obra em questão retrata uma palestra realizada na Universidade de Colúmbia, nos Estados Unidos, no ano de 1995.

Na conferência o autor busca situar historicamente os movimentos fascistas do século XX, precedidos pelo fascismo de Mussolini e propagados por toda a Europa e depois pelo Continente Americano. Eco atenta para as diferenças e as inúmeras contradições deste sistema. A centralidade da abordagem está na identificação de traços comuns encontrados em suas diferentes manifestações.

São, pelo menos, 14 características descritas com desenvoltura e rara perspicácia. Não deixa de ser impactante a possível afinidade destas facetas com aquilo que, direta ou indiretamente, vislumbramos na realidade brasileira. De forma sintética, descortino, a seguir, as principais características observadas por Umberto Eco em sua preleção.

1. O culto às tradições: Diante de um sincretismo e também da diversidade religiosa, busca-se um caminho que não mais admita contestações. Trata-se de uma “verdade” que não pode ser contestada. A tradição cristã e a cultura ocidental são os grandes valores da humanidade. Qualquer razão ou saber deverá se submeter a este principio de forma cabal e inalienável.

2. A recusa aos valores da modernidade: A modernidade significa uma espécie de “não” aos valores tradicionais. Trata-se de uma visão hostil ao iluminismo e à razão. Uma perversão ampliada pelos princípios da modernidade. Admite-se apenas a evolução das técnicas e de fatores que acabam se somando, em geral, para um mau caminho.

3. O irracionalismo nas ações: As ações exercitadas pelos indivíduos não necessitam de uma maior reflexão. Por isso, o desprezo pela cultura e pelas universidades. Valem as convicções ou experiências pessoais. Os fatos, os dados, as evidências, perdem a sua relevância. Vale mais o que “eu” quero ou imagino.

4. A não aceitação de qualquer crítica: As críticas geram distinções e as distinções são as marcas da modernidade. Com a modernidade são gerados avanços. Avanços que ferem tradições e valores de um tempo passado. Estar em desacordo com esta premissa significa trair princípios inalienáveis.

5. A não aceitação da diversidade: O sistema não tolera a diversidade de opiniões, de pessoas, de verdades e de religiões. O que ocorre é uma multiplicidade de expressões de desrespeito, intolerância e de ódio para com as diferenças. Por isso, há sempre em seu âmago um fundamento racista, misógino, sexista, etc.

6. A frustração individual ou social: É por conta desta faceta que, em geral, ocorre um apelo às classes frustradas por conta de crises ou humilhações políticas para que assumam as rédeas de sua própria história e exercitem o seu protagonismo. O medo de uma suposta escravidão cultural, politica, social, religiosa e intelectual, necessita ser diuturnamente alimentado.

7. A privação de qualquer identidade social: Em comum apenas o fato de ter nascido no mesmo país. Daí um patriotismo exagerado e uma obsessão por inimigos. Todo imigrante é visto apenas como problema. Há uma constante indicação de inimigos externos e internos que podem prejudicar a liberdade e a soberania do país.

8. A humilhação: Inclinar-se diante de nações mais poderosas. Aliar-se com quem, pretensamente, é rico ou possui maior potencial bélico de modo a vencer inimigos políticos e morais. Este fator impede também qualquer avaliação objetiva da realidade. A submissão é vista como estratégica e positiva.

9. Não há luta pela vida, mas, antes, “vidas para a luta”: O pacifismo seria um conluio com o inimigo. O pacifismo, portanto, é mau porque a vida retrata uma guerra permanente. Vive-se em permanente estado de beligerância. A situações exigem uma "solução final".

10. O elitismo e a aristocracia: Trata-se de um desprezo pelos mais fracos. Não existiriam patrícios sem os plebeus. As massas teriam, pois, a necessidade de um dominador. Um poder obtido pela imposição da força. As pessoas devem se sentir parte da “melhor nação do mundo”.

11. Ser herói: O heroísmo é visto como uma norma. Autoridades são vistas como exemplos de entrega, dedicação, combate ao mal. O heroísmo tem muito a mais a ver com a morte do que com a vida. A morte é a recompensa para uma vida heroica.

12. Poder e sexualidade: Como o poder e o sexo são questões complexas e difíceis de serem retratadas, na maioria das vezes, há um refugio, por exemplo, na intolerância com hábitos sexuais, na homossexualidade, etc.

13. Indivíduos destituídos de direitos: Os seres humanos se realizam apenas como "vontade comum". Isso faz com que sintam a necessidade de um líder, condutor, intérprete. Apenas assumem o papel de povo. Odeiam os parlamentos.

14. Uso de uma “nova” linguagem: Os textos devem ter um léxico simples e uma sintaxe elementar para jamais permitirem raciocínios críticos e complexos. Fuga ao politicamente correto. Agressão verbal.

O perigo de uma política fascista tem muito a ver com as táticas e os mecanismos para se chegar ao poder, mas, muito mais, com a desumanização de alguns segmentos da população. Limita-se, pois, a capacidade de empatia entre as pessoas. Tratamentos desumanos são justificados assim como a repressão e o próprio extermínio. O sintoma de uma política fascista sempre será a divisão. A distinção entre “nós” e “eles” para moldar uma superioridade ideológica, moral e religiosa.

O fascismo de hoje pode não ter a mesma estrutura de quase um século atrás, mas, alicerça e consolida em seus fundamentos os múltiplos sentidos do medo. Um medo que substitui o diálogo e a compreensão histórica acerca da realidade. Um medo que distorce e idealiza o passado. Um medo que estimula a vitimização. Um medo que, em última análise, entende a tolerância e os valores da equidade como ameaças às autoridades constituídas.

A falta de limites parece ter se transformado em regra. Os valores democráticos passaram ser vistos, sob a ótica fascista, como obstáculos para a fraternidade e a paz. É preciso compreender as causas que nos empurraram para este estado de coisas. O que faz com que a população aceite de forma passiva tantas arbitrariedades? Precisamos recuperar a nossa sensibilidade para com a dor do outro e não nos orientarmos apenas pelos imperativos do mercado. A sociedade é formada por pessoas. Pessoas possuem sentimentos, vivências e histórias. É isso que deveria importar!

terça-feira, 18 de junho de 2019

SENSO COMUM

Eis um fenômeno de massa que vem gerando um movimento que, hoje, se manifesta numa percepção unilateral da realidade. A formação do senso comum se articula tendo como referência, quase homogênea, o superficial. Um saber que vai sendo incutido pela mídia de forma estratégica. Seja a mídia escrita, televisiva ou virtual. Os meios de comunicação são os responsáveis diretos pela formação deste senso comum. Atuam na repetição sagaz das idéias. Tratam de assuntos importantes a partir de percepções simplistas.

Algumas coisas vão sendo repetidas até que sejam aceitas sem maiores ressalvas. Não é difícil observar a superficialidade como são debatidos certos assuntos no Brasil. Há uma falta de vontade para ampliar o entendimento. Assim, quando se quer defender uma pauta, basta trazer um breve parecer de algum “especialista” que defenda aquilo que o veículo busca delinear, sem levar em conta alguma hipótese presente no outro lado da mesma narrativa. A superficialidade faz com que muita gente não consiga entender aquilo que, efetivamente, acontece.

É preciso observar que a sociedade é fruto de uma construção histórica, antropológica, social, econômica, política e religiosa, repleta de vivências. Um dos maiores intelectuais de todos os tempos, o filósofo Immanuel Kant, em sua obra - A Crítica da Razão Pura - ensinou que o conhecimento teria duas fontes: os sentidos e o raciocínio. O que se pode concluir a partir desta exortação descortinada por Kant é que qualquer experiência ocorre a partir da recepção de informações por meio dos nossos sentidos numa espontaneidade de conceitos e reflexões.

O conhecimento nos vem através dos sentidos. Ele se forma e se lapida com a reflexão e o raciocínio sobre as impressões recebidas. O senso comum é, pois, formar um certo conhecimento sem qualquer objeção ou reflexão. Trata-se de um hábito bastante comum na atualidade e que se manifesta pela simples concordância a partir daquilo que se gosta. Se é verdade ou não, pouco importa. Se faz sentido ou não, tanto faz.

Um exemplo interessante talvez seja imaginar o exemplo da água. Sem um filtro, ela vai da caixa d’água até a torneira sem grandes mudanças. Mas, se na casa houver um filtro, ela chegará mais pura até o copo. Esta “pureza” era a palavra que Kant buscava na sua crítica da razão. Ele propunha que a razão fosse pura, mas, para isso, deveria ter um filtro. Uma reflexão cuidadosa, profunda, equilibrada, com discernimento crítico.

É preciso compreender que quando os meios de comunicação se utilizam do superficialismo para alimentar o senso comum, eles escondem certos interesses. O senso comum, é uma ideia que não teve filtro. Um pensamento que tudo aceita e que, por isso mesmo, é capaz de repercutir tantas coisas sem nexo. Tanto ódio, insensatez e preconceito. O senso comum cria muitos mitos pela total falta de reflexão. Faz com que certas mentiras se transformem em verdades e sejam repetidas à exaustão. Diante do senso comum, atrever-se ao raciocínio, é tarefa das mais difíceis.

segunda-feira, 3 de junho de 2019

Sobre Fanatismos, Deturpações e Humanidades

As humanidades sempre tiveram um papel civilizatório. Quando a ciência despreza as reflexões da Filosofia, da História e da Sociologia, não é incomum que a eficiência técnica seja empregada para fins desumanos. Como não lembrar, por exemplo, de toda a engenharia empregada no holocausto? Com a História aprendemos que as sociedades se transformam pela reflexão e ação de muitos sujeitos.

O objetivo para quem busca compreender a História não é, como às vezes se diz, “aprender com os erros do passado para evitá-los no futuro”. Ora, um evento semelhante em diferentes situações haverá de provocar resultados distintos. Ao contrário de uma experiência feita em laboratório, não é possível verificar o que aconteceria se um acontecimento fosse inserido em um determinado lugar ou tempo. Não conseguimos, pois, repetir a mesma experiência com os mesmos personagens e dentro de um mesmo contexto, de modo a verificar resultados de alguma análise se confirmando.

Se estuda a História para desenvolver a consciência de que o nosso tempo é repleto de caminhos, de alternativas e de possibilidades. Estudamos para compreender que agimos condicionados pelo nosso tempo. Não somos capazes de prever o futuro, pois a História é instável e as consequências de nossas ações, imprevisíveis, e, frequentemente, inconcebíveis. É verdade, todavia, que somos marcados por muitos momentos, mas, jamais determinados por eles de forma plena. Não há um destino guiando a humanidade: é a humanidade que se constrói, diante de muitas (des)venturas e percalços. Por isso não é possível afirmar de uma forma simplória que a História se encontra em evolução. Ela não tem um objetivo, um rumo ou um fim. A História é feita de muitas situações que construímos e também destruímos com a nossa reflexão ou apatia, com a nossa ação ou indiferença.

Talvez seja por isso, por seu caráter nunca pronto que o conhecimento no âmbito das ciências humanas cause tanto alvoroço aos fanáticos que não conseguem suportar aquilo que não traga respostas prontas, definitivas, eternas. Como a História tem infinitas direções e certas percepções podem ser questionadas ou até esquecidas nas encruzilhadas do tempo, é compressivel a resistência que se observa nos dias atuais. Isso tem muito a ver com o ódio à diversidade e a liberdade, que se expressam na inconformidade de que pessoas possam escolher caminhos que não tenham sido projetados com base em valores finitos. Certas verdades com desdobramentos fundamentalistas sempre haverão de ser fruto do medo. A consequência de uma História sendo escrita por lugares diferentes, por caminhos pouco trilhados e com personagens buscando o seu lugar na sociedade.

As Artes, por exemplo, também não fogem à regra. São temidas porque ensinam que o pensamento circula nos limites da nossa linguagem. Falando de forma clara: não há uma verdade única, acabada, definitiva e independente dos recursos de linguagem que a humanidade elaborou para descrever e analisar o que os nossos sentidos conseguem assimilar. Em outras palavras: o mundo não tem apenas um sentido. Somos nós quem inventamos um sentido para a realidade que se amplia debaixo de nossos pés.

Significa que se desejamos compreender a condição humana e desenvolver as nossas capacidades, se buscamos o avanço da ciência, é indispensável decifrar a estrutura das linguagens que constroem, expressam e manifestam o pensamento de cada pessoa. Em tempos de tantas mudanças culturais, sociais, econômicas e religiosas, as Artes parecem ser um terreno bastante confuso. No entanto, acredito que elas, no fundo, apenas se movimentam para expressar esta multiplicidade de vivências, buscando contribuir para que aconteça um processo de entendimento daquilo que nos rodeia. Nem que seja por meio das muitas dúvidas que nos encontram todos os dias.

Para os fanáticos, talvez nem o diabo seja pior do que a dúvida. Fanáticos não hesitam em desprezar as ciências humanas porque sempre partem de alguma convicção acabada. São pessoas que tem “certezas” acerca de tudo e de todos. Acreditam ter as respostas para o que acontece no mundo. É gente que faz pouco caso da Filosofia porque imagina que esta serve apenas para desviar de algum caminho pré-estabelecido. Por consequencia, se odeia também a História porque ela não olha para os fatos apenas pelas lentes de quem a quer a seu favor. Odeia-se, por fim, as Artes porque elas refletem o monstro que habita em cada indivíduo.

segunda-feira, 20 de maio de 2019

Fotografias do Poder

Há uma passagem protagonizada pelo filósofo iluminista francês, Voltaire, por volta do ano de 1750, na qual ele busca entender os motivos pelos quais tantas pessoas emitem ofensas. A conclusão é de que ao proceder desta maneira o indivíduo revelaria mais a respeito do seu próprio caráter do que acerca do perfil de quem é desrespeitado. Para ele ninguém se envergonha do que faz em conjunto.

Talvez esta percepção descortinada, quase três séculos atrás, ainda hoje, seja capaz de explicar a insanidade dos linchamentos virtuais e a violência gerada pelo preconceito. Acredito que muitos não teriam esta capacidade para ofender pessoalmente o seu interlocutor por meio de tantas injúrias. Mas, no mundo virtual, parece que tudo acaba sendo possível. Tanto faz se é verdade ou mentira. Pouco importa se fere a honra ou a dignidade. Não se hesita em replicar ofensas sem o trabalho de apurar a procedência das informações.

Ao ser humano é dada a capacidade de discernimento. Por meio desta faculdade lhe é permitido o livre exercício das escolhas. Há, contudo, quem prefere abrir mão desta possibilidade. São indivíduos que optam para que as decisões sejam tomadas por algum mentor ou guru de um grupo com a qual a pessoa se identifica. Opta-se por uma espécie de “servidão voluntária”, como bem descreveu o humanista francês, Etienne de La Boétie, por volta do ano de 1563. Aqueles que não partilham de uma mesma concepção, passam a ser vistos como inimigos ou hipócritas e, portanto, devem ser dizimados.

Essa submissão à vontade do outro acontece, sobretudo, nos partidos políticos, nas empresas, em associações e, também, em muitos espaços religiosos. No caso das Igrejas, a dominação vai sendo legitimada pela suposta vontade de Deus retratada pela ação dos pastores ou dos padres. Desta maneira, se amplia uma estranha e perigosa noção de justiça divina por meio da qual tudo se explica pela “vontade de Deus” mesmo que esta implique na miséria humana.

Por esta lógica, as catástrofes, o desemprego, alguma doença incurável, não deveriam ser motivos para lamentar. Afinal, Deus teria algo em mente para permitir que estas desgraças pudessem acontecer. Em última análise, seria Deus o responsável pelo caos que o individuo necessita viver. Desta maneira um absurdo teológico passa a ser difundido e ampliado sem que as pessoas se deem conta da loucura que propagam.

sexta-feira, 10 de maio de 2019

Barbárie ou Civilização?

Vivemos atualmente um paradoxo histórico. As novas tecnologias produziram um retorno, sem precedentes, ao passado. As mutações das relações políticas, dos processos econômicos e das trocas entre as pessoas se direcionam para uma única direção: o abandono das conquistas civilizatórias. As novas tecnologias são usadas para este fim. Enquanto prometem apenas facilitar a vida das pessoas, seguem a infinitos estímulos do poder.

A pergunta que precisa ser feita é de quais pessoas as tecnologias realmente facilitam a vida diante do número crescente de desempregados que vão sendo substituídos por robôs e máquinas? Caixas eletrônicos em bancos, supermercados ou farmácias, são apenas exemplos conhecidos desta realidade que não hesita em descartar seres humanos em favor de um sistema que visa o lucro e não o bem estar ou a realização e a felicidade de uma boa parcela da humanidade.

O Estado, em geral, comprometido com o poder econômico, serve não ao povo, mas ao capital. Desaparecem certos limites e laços que em outros tempos permitiam uma convivência mais harmoniosa. O Estado que poderia ser o alicerce da sociedade humana de acordo com as premissas democráticas, parece ter lavado as mãos. Valores como a verdade, a fraternidade e a esperança passaram a ser tratados como mercadorias sem valor. Enquanto isso, a mentira, o egoísmo e o discurso recheado de abobrinhas passa ser visto como virtude.

Práticas do passado voltaram à moda com governantes que seguem, se revelando, a cada dia, menos propensos ao diálogo franco, propositivo e leal. Parece que perdemos a memória e ficamos reféns do atraso. Tempos históricos que mais se parecem com uma ficção. As crises financeiras, a destruição das nossas indústrias, a demonização da política e as vitórias de projetos totalitários em várias partes do mundo são apenas sintomas de uma nova perspectiva que se consolida a partir da desgraça.

Nada que possa servir de limites aos que buscam exercer poder ilimitado é permitido. Direitos sociais e econômicos dos cidadãos são atacados pelas oligarquias, enquanto palavras como “segurança” e “corrupção” são violentadas para servir de justificativa à retirada de direitos civis e políticos. A “liberdade” se limita àquela que se dirige aos lucros ilimitados de poucos e à divulgação da lógica da concorrência que aniquila a consciência de classe e coloca cidadão contra cidadão. Não há respostas fáceis para esta realidade, mas, quem quiser um mundo melhor necessita responder a uma questão primordial: há algo comum pelo qual valha a pena lutar quando tudo leva a crer que não há saída para a barbárie?

segunda-feira, 6 de maio de 2019

Brasil: Um País Sem Discernimento

É sabido que viajar educa o indivíduo, fazendo com que alguém contemple perspectivas diferentes das habituais. Quem teve a possibilidade de visitar outros lugares, provavelmente haverá de se deparar com muitos questionamentos acerca dos rumos que o Brasil está seguindo. Para quem olha de fora, a realidade se reveste de outros sentidos e significados.

O escritor e biólogo norte americano, Jared Diamond, em seu livro, Colapso, descreve como as sociedades escolhem o fracasso ou o sucesso. Os motivos que contribuem para o fracasso seriam, entre outros, a destruição do meio ambiente, a negação de fatos e o fanatismo religioso. Assim como nos tempos da inquisição, o conhecimento, por si só, já é mais do que suficiente para tornar alguém suspeito.

No Brasil, as pessoas parecem não se escandalizar com certas “heresias”, mas com o famigerado "comunismo!". É esta a acusação com a qual se demoniza a ciência e o progresso. A emancipação de minorias e grupos menos favorecidos: comunismo! A liberdade artística: comunismo! Direitos humanos: comunismo! Justiça social: comunismo! Educação sexual: comunismo! O pensamento crítico: comunismo! Vive-se um anacronismo sem precedentes.

Dia destes ouvi de um amigo a anedota de um pai que havia trocado o seu filho de escola porque não queria que ele aprendesse sobre o cubismo. O pai alegava que o filho não precisava saber nada sobre Cuba, pois isso era doutrinação marxista. Não sei se a historia é real, mas que nela tem muito de verdade, não resta dúvidas. A essência da ciência é o discernimento, mas os sabichões do nosso tempo gostam mesmo é da “lacração”, de acabar, detonar, desmoralizar em nome de um pretenso esclarecimento.

Os entendidos de hoje mal ouviram falar em Nietsche ou Kant, preferem Malafaia e Edir Macedo. Não querem mais Paulo Freire, querem Alexandre Frota. Não querem mais Rousseau ou Montesquieu, mas, sim, Olavo de Carvalho. Não é difícil imaginar para onde vai uma sociedade que tem esse tipo de pensamento: para o precipício.

Fica claro que a restrição ao pensamento começa nas escolas e universidades. Por isso, os novos entendidos do pedaço concentram seus esforços nestes ambientes. Exemplos não faltam. Quem já não foi a apresentando a tal “Ideologia de Gênero” ou "Escola Sem Partido"? Em geral, trata-se de um pensamento idealizado por gente que pouco ou nada entende de educação. O interesse é reprimir o conhecimento e as divergências. Busca-se um samba de uma nota apenas.

Karl Marx é ensinado em qualquer universidade do mundo por ter sido um dos primeiros a descrever o funcionamento do capitalismo. E o fez de uma forma profunda e detalhada. Mas aqui se passou a acreditar que o contato com as suas ideias poderia transformar qualquer estudante em “comunista” em um piscar de olhos. Pouco importa se o indivíduo tenha buscado aprofundar o seu saber. Para alguns, a pessoa ter uma boa formação, é visto com desdém e indiferença. Pouco importa se a pessoa investiu a maior parte de sua vida na busca de um maior conhecimento por meio de alguma graduação, depois mestrado ou doutorado. Há uma tentativa de reescrever a história independente dos fatos. Valem as próprias convicções, não as evidências.