quarta-feira, 30 de outubro de 2019

O LEGADO DE PAULO FREIRE

Paulo Freire, um dos maiores nomes da educação brasileira e referência mundial, é o único autor brasileiro a fazer parte dos 100 livros mais requisitados em universidades dos Estados Unidos. No Brasil, o Patrono da Educação Brasileira, contudo, é menosprezado e atacado. Ataques que vem de quem talvez nunca tenha lido um dos tantos livros que ele deixou ou que não reconheça os seus 35 títulos de Doutor Honoris Causa referendado por Universidades da Europa, Estados Unidos, América Latina e Brasil. Há quem prefira acreditar em qualquer coisa, mas não no exemplo de um cidadão brasileiro que, como poucos, soube sonhar com uma sociedade melhor.

A obra de Paulo Freire, ao contrário do que dizem seus detratores, é uma obra que fala do amor através da educação. A sua principal contribuição é a humanização. Reconhecer-se humano e reconhecer a humanidade no outro. É através da língua escrita que o ser humano é capaz de se compreender como alguém que faz parte de um mundo que necessita ser melhorado a cada dia. Freire revela o desafio de vivermos juntos, com qualidade de vida, de conferirmos ao outro a dignidade que acentuamos em nós mesmos. De reconhecermos o outro como um sujeito capaz de concretizar a sua vida com dignidade.

A ideia de que a leitura do mundo precede a leitura da palavra escrita é absolutamente necessária e fundamental. Toda a leitura e toda escrita dissociadas da leitura de mundo caem no vazio. Parte do fracasso escolar que o sistema educacional produz, tem a ver com esta realidade. Quando se tira a criança do seu contexto e a escola vira um mundo completamente estranho, se impede que a aprendizagem se constitua, porque é preciso estabelecer vínculos, é preciso estabelecer sentidos. Uma leitura de mundo que precede a leitura da palavra escrita, ajuda a construir sentidos. Não é, pois, possível colher aquilo que não se plantou.

Paulo Freire é tão depreciado, primeiro em função da ignorância que se tem sobre ele, sobre sua obra, e, segundo, porque ao estimular a leitura e a escrita, desafiou para que as pessoas exercitassem a autonomia intelectual. Relembrar Freire é celebrar a vida e a possibilidade de vivermos juntos mesmo com tanta falta de diálogo e truculência nos dias atuais. Quanto menos educação, mais prisões. Quanto menos educação, mais desemprego. Quanto menos educação, mais preconceito étnico, racial e religioso. É disso que se trata: construir uma sociedade plural, com unidade na diversidade. Afinal, a diversidade deveria ser nosso maior trunfo e uma das chaves de nosso desenvolvimento.

sexta-feira, 4 de outubro de 2019

VIVA A IGNORÂNCIA!

Para o filósofo Immanuel Kant, talvez a voz teórica mais expressiva do mundo moderno e, por extensão, do liberalismo político, haveria justiça na sociedade quando nela cada um tivesse a liberdade de fazer o que quisesse, contanto que isto não interferisse na liberdade dos demais. A máxima do pensador alemão é a base do funcionamento do Estado de Direito. Obediência à lei de acordo com a consciência de quem vive em sociedade, com a premissa de que a liberdade de uns não possa ofender ou interferir na liberdade dos outros.

Estes conceitos, que a partir do iluminismo passam a ser filtrados, reorganizados e recompostos na sociedade, também se apresentam na história a partir de diferentes interpretações. Eles não foram fundados por ideologias liberais ou conservadoras, mas iluminaram o desenvolvimento do capitalismo e, mais tarde, suscitaram controvérsias com uma visão dogmática que depreciava a democracia como elemento constitutivo para uma boa convivência na sociedade.

Por muito tempo, houve certo consenso de que era necessário superar a ignorância para desenvolver as potencialidades de cada indivíduo e favorecer a harmonia em sociedade. Mesmo a abstração do “homem econômico”, transformado em modelo no liberalismo clássico ou no neoliberalismo, supunha a superação da ignorância. A mesma ignorância que até bem pouco tempo, era vista como coisa a ser evitada de muitas maneiras. Mesmo pessoas com menor instrução, em geral, entendiam que o conhecimento era algo a ser buscado de forma contínua e persistente. Hoje, o que parece, é que o conhecimento virou uma mercadoria com pouca serventia.

A ignorância é uma prerrogativa que possui valor porque pode ser explorada tanto no plano econômico quanto no plano político. É a matéria prima para um processo de subjetivação que não enfrentará resistência de valores como a “verdade”, a “solidariedade”, a “inteligência”, a “lógica”. Diante da valorização da ignorância, o ser humano vai sendo ressignificado e percebido como alguém que se move a partir do senso comum. A “educação” e a “cultura”, por sua vez, passam a ser tratadas como ameaças e, por extensão, precisam ser deixadas de lado. Instaura-se, assim, um novo modelo: uma sociedade movida para e pela ignorância.

Com a demonização da educação e da cultura vistas como atividades degeneradas e “ideológicas”, aparece o indivíduo com orgulho de ser ignorante. Capaz de demonstrar sua adesão a certas “verdades” sem maior reflexão. Acontece uma curiosa inversão de valores e, como toda manifestação ideológica, não percebida como tal. O intelectual, ou seja, aquele que se diferencia por um saber específico, torna-se objeto de reprovação social, enquanto aumenta a espetacularização do desconhecimento.

Diante desse quadro, cada vez mais pessoas buscam se expressar a partir de uma linguagem empobrecida, com o recurso a slogans, frases feitas, chavões, jargões e construções gramaticalmente pobres, com o objetivo de contarem com a simpatia de interlocutores que eles supõem também serem ignorantes. A orientação é a de se limitar a formulações simples para conseguir a atenção de um número cada vez maior de adeptos. É neste clima de indigência intelectual que a pessoa vira especialista em qualquer assunto. Não basta o conhecimento, valem as convicções.

A ignorância é, pois, um dado natural. Basta não educar ou educar de forma precária para conseguir muita matéria-prima. Mantê-la, incentivá-la ou explorá-la, passam a ser objetivos estratégicos. Isso porque a ignorância permite uma nova e mais produtiva forma de desconhecimento a respeito dos outros seres humanos, dos mecanismos de exclusão, das técnicas de opressão e do como se interage com os demais. O valor da ignorância facilita a introjeção de uma normatividade adequada aos interesses de quem busca impor a sua vontade.

Um povo ignorante, por exemplo, pode não apenas ficar apático diante de qualquer autoritarismo como, inclusive, desejá-lo, na tentativa de suprir o medo que deriva do desconhecimento sobre fenômenos e valores como a liberdade e a verdade. É a ignorância que fomenta a base que naturaliza os absurdos. O indivíduo ignorante acredita que ele e suas limitações são o retrato do mundo. Incapaz de operar a distinção entre o essencial e o superficial, torna-se facilmente massa de manobra.

Não por acaso, o desconhecimento sobre a complexidade da sociedade e a insegurança gerada por essa ignorância, favorecem o surgimento de movimentos que buscam um passado idealizado para dar sentido à vida no presente. No lugar do convencimento por argumentos racionais ou científicos, reforçam-se os preconceitos, as confusões conceituais, os vazios cognitivos. A ignorância deixa de ser velada para se tornar celebrada.