sábado, 30 de junho de 2018

DIVAGAÇÕES

Não consigo vislumbrar muito bem quando minhas inquietações se tornaram um desafio a ser respondido. Também não sei bem o momento em que algumas das convicções que comigo caminhavam, lá pelas tantas, começaram a soar monótonas e sem a ressonância necessária para responder certas perguntas. O que, todavia, nunca haverei de esquecer é de uma palavra que encontrei numa frase do filósofo e poeta francês, Gaston Bachelard, a mais de duas décadas. “Na base das certezas íntimas, fica sempre a lembrança de uma ignorância essencial”.

Tenho para mim que o viver não é um passeio descomprometido. É um constante dar-se conta de que para além e apesar de tudo, a existência é bastante frágil e fugaz. A finitude parece nos encontrar de muitas maneiras e por todos os lados. No fundo, importa mesmo a atitude com a qual vamos enfrentando aquilo que, entrementes, pode até soar inevitável. É preciso aprender sempre com as duras lições advindas da saudade e da solidão.

Na mistura entre fraqueza e destemor, acabei percebendo o preço a ser pago por exercitar coerência e verdade. Fui observando que há muitos subterfúgios sendo utilizados como defesa pelas pessoas. Vulnerabilidade ou fraqueza, na maioria das vezes, é vista como defeito. Caminhamos, todos os dias, por trilhas estranhas e desconhecidas. Somos confrontados com ameaças e juízos de quem mal nos conhece. Há tanto ódio gratuito e falta de vontade para exercitar a humildade e o bem comum.

Entre os bens genuínos que a vida foi capaz de me mostrar, um deles, eu estimo que tenha sido a graça de aprender com os percalços, as decepções, a falsidade e a insensatez humana. Vivências que me lapidaram a jamais esquecer qual a minha própria história. Momentos e situações que fizeram divisar com mais clareza que é preciso muito discernimento e perseverança nesta nossa caminhada.

Quando a bondade faz parte de nossa essência, contemplamos novas possibilidades. Fugimos da desesperança. Conseguimos ver além daquilo que os olhos percebem. O grande desafio é não resignar. Rechaçar a ideia de que a vida segue vazia e sem rumo. É preciso ir além dos horizontes que conhecemos. Traspor as praias seguras, mas, em geral, monótonas. Se não há como evitar os sofrimentos, pelo menos, é preciso fortalecer a teimosia de seguir em frente.

sexta-feira, 22 de junho de 2018

PARADIGMAS EXISTENCIAIS


Sempre ouvi dizer que o ser humano morre mais cedo quando desiste de olhar para o futuro. Hoje, receio que muitos olhos já nem queiram mais observar muita coisa para que não se percam nas agruras suscitadas por situações que engendram angústia, dor e sofrimento. É preciso contemplar horizontes que sejam mais longínquos. Descortinar o porvir para além daquilo que pode ser ordenado pela visão. Viver e sentir o coração pulsar não apenas como um imperativo biológico. Ter a oportunidade de caminhar deixando pegadas que inspirem e acolham os passos daqueles e daquelas que de alguma forma cruzaram os nossos caminhos.

Poucos são os que se permitem concretizar uma jornada acalentada pelo sol a iluminar a sua caminhada. Aos que conseguem, certamente, é permitido antever algumas réstias de eternidade. O grande desafio continua sendo não apenas o de buscar um olhar apurado para enxergar o que é terreno, temporal e provisório, mas, a sensibilidade necessária para saber reverenciar a sublimidade da partilha, do encontro, do sorriso que transmite esperança e renova os percursos da existência.

Em uma era de tecnologia, consumo exacerbado e busca constante por tudo que oferece algum prazer momentâneo, por aquilo que é fácil, confortável, rápido e que exige menos esforço, o vazio, o sofrimento e a falta de sentido tornam-se difíceis de serem vividos e aceitos. A solidão, a dor e a angústia dão as cartas. Durante o nosso caminho, não é raro passarmos pelo desencanto de renunciar a algo que gostamos, às vezes, contra a nossa vontade.

O sociólogo, poeta e fotógrafo francês, Jean Baudrillard, dizia que os seres humanos da contemporaneidade se encontram amarrados a uma vida que se alicerça, em grande medida, pelos contornos do desencanto, mas que busca ser preenchida, equivocadamente, pela hiperatividade, pelas relações sem pertencimento reciproco, pela falta de compaixão e insensibilidade com a dor do outro.

Presumo que haverá de chegar o dia onde o desejado não será mais desejado. As lutas travadas para alcançar determinado propósito perderão o seu valor. Restarão sombras de um caminho sem atalhos, sem explicações. Olharemos desejando apenas um pouquinho daquilo que já tivemos a oportunidade de sentir e sonhar. Saberemos pelo viés mais duro que o vazio e a saudade sempre serão feridas abertas. Os valores e as lembranças ganharão contornos de heroísmo ou desalento.

Persistimos apesar das cicatrizes, das contradições e das precariedades. Mesmo com o imponderável se alongando em nosso horizonte necessitamos aprender a experiência de caminhar movidos por pequenas alegrias e o aprendizado que se encontra nas decepções, nas tristezas e no vazio. A vida somente poderá ser medida no final de nossa existência por aquilo que soubemos realizar de forma especial na experiência daqueles e daquelas que nos foram presenteados no decorrer de nossa jornada. Martha Medeiros lembra que não é a altura, nem o peso, nem os músculos que tornam uma pessoa grande, mas, a sua sensibilidade em compreender que somos todos passageiros neste mundo.

domingo, 17 de junho de 2018

SOBRE ÓDIO, MENTIRAS E IDIOTAS.

Se a globalização fez com que muitas bobagens pudessem ser disseminadas em larga escala, a internet, por sua vez, maximizou a expressão do ódio e da intolerância, exacerbando os preconceitos e a violência. É claro que as redes sociais não criam estes sentimentos, mas, os tornam mais evidentes. O jornalista e dramaturgo Nelson Rodrigues, escreveu, certa vez, que no passado os idiotas se achavam isolados. De repente, foram percebendo que não eram poucos e nem isolados: eles eram a maioria. O mundo, de certa maneira, sempre necessitou conviver com os idiotas. Um racista é um idiota. Um misógino é um idiota. Um indivíduo que dissemina mentiras e vive atacando os outros nas redes virtuais é um idiota também.

A internet não criou os idiotas, mas as redes sociais acabaram dando aos covardes uma energia muito grande. Deu-lhes ainda a proteção das distâncias físicas e geográficas além do anonimato. Qualquer um pode criar dezenas de perfis falsos e utilizá-los para aquilo que achar oportuno. Não importa saber se determinada informação é verdadeira, mas, o que vale mesmo, é a sua eficácia para aquilo que cada qual entende como relevante. O que importa é o efeito daquilo que é alardeado.

Muitos não hesitam em divulgar bobagens sem pé e nem cabeça. Desta maneira vão canalizando o seu ódio em informações que, depois de disseminadas à exaustão, acabam concentrando tanta adesão que aqueles que ousam questionar são considerados farsantes. Há gente sendo paga para espalhar informações falsas. Escritórios cuja função é criar perfis para divulgar notícias fantasiosas. Para muitos, alguma notícia é valida por que reforça a convicção própria e é inválida por que fala algo de que não se gosta. Trata-se, de uma situação que o próprio Freud teria dificuldades em explicar. É um desejo passional, não analítico, não racional, não ligado aos fatos.
A grande maioria das pessoas tem dificuldades em admitir este tipo de atitude. Muitos, inclusive, evitam falar do ódio e dizem sentir horror a aquilo que tem a ver com coisas violentas. No entanto, nas nossas hipocrisias diárias, a gratidão parece ser um peso e a vingança um prazer. O problema das redes sociais é que elas fazem com que as pessoas se tornem adeptas de um estado ideal. As aparências, os sorrisos, as viagens, as festas. Boa parte das realizações acaba sendo importante apenas na medida em que pode ser mostrada para os outros. É como se cada coisa fosse épica e exuberante. Parece que dói ser alguém comum ou levar uma vida corriqueira. Esquecemos que a felicidade necessita sempre dialogar com as dificuldades da jornada.

Para mim, o caráter fugaz da felicidade é o que pode tornar, por exemplo, a flor verdadeira melhor do que a artificial. A flor natural tem o seu tempo, mas é capaz de perpetuar reverências que são únicas. Desconfio que se a flor durasse muito tempo, poucos saberiam admirar a sua beleza. Na efemeridade da flor natural assim como na vida humana, há sentidos e significados que delimitam nossa trajetória neste mundo. A perenidade faz com que tenhamos conosco também a dimensão das perdas. É preciso olhar para a história humana a partir das limitações, dos percalços, das virtudes, para que consigamos compreender a dimensão constitutiva da vida e também aquilo que é essencial.

sábado, 9 de junho de 2018

DEUS E AS TRAGÉDIAS HUMANAS


A relação dos seres humanos com a terra e com o divino, em grande medida, exacerbou tensões, conflitos e, muitas vezes, até desastres. Mudaram os métodos, mas as estruturas de morte permanecem como no mundo antigo. Apesar do esforço em desmontá-las, ainda convivemos com a escravidão, os genocídios e a miséria nos quatro cantos da terra. Sempre existe uma meia dúzia que acaba lucrando com a indústria da guerra, com o tráfico de entorpecentes, com a prostituição. Como entender que apenas 65 famílias sejam donas de uma riqueza maior que mais da metade da população do mundo?

Nos círculos acadêmicos e também nas discussões que sugerem uma nova proposta de convívio para as pessoas, conseguimos discutir e até alinhavar conceitos sobre aquilo que poderia redundar no bem comum. No entanto, fracassamos em nossos esforços para evitar o mal. Os interesses personalistas, sectários ou racistas, prevalecem nas relações cotidianas e delimitam os caminhos da vida. Novos fascismos aparecem pelos atalhos da xenofobia, da intolerância religiosa e do extermínio de quem possa ser ou pensar diferente.

É por conta da fome que milhões de homens, mulheres, crianças e idosos, vivem sem perspectivas. Mesmo conhecendo esta realidade, uma boa parcela da sociedade, prefere fingir que ela nada tem a ver conosco. Os processos que desvirtuam a solidariedade e que conspiram contra a vida acabam sendo banalizados. O planeta agoniza. Os mares, as florestas, os rios e uma quantidade gigantesca de espécies em extinção, gritam por socorro. Poucos são os que se preocupam com o mundo que estará deixando para os seus filhos ou netos.

Não há disfarces que possam esconder a crueldade do nosso tempo. Qualquer discurso sobre a maldade capaz de explicitar atitudes mesquinhas ou as armas ideológicas da morte, em geral, não chegam para a maioria das pessoas que perambulam pelas ruas, algumas, sem saber ao certo, para onde caminham. Gente com uma história, com vivências e sonhos, carregando o fardo daquilo que poderia ser diferente. Pessoas que não conseguem mais vislumbrar utopias, pois perderam o seu alento e a dignidade. Gente que vai vivendo um dia de cada vez.

Em cada campo de refugiados na Síria ou no Afeganistão, em cada estupro no Brasil, em cada menino negro morto em alguma favela, é como se disséssemos que o mal vem capitaneando a história mais do que deveria. Deus ao nos conceder o seu livre arbítrio não altera o curso da história e nem se dispõe a escolher alguns “eleitos” para corrigir os percursos da humanidade. No entanto, tenho para mim, que todos os dias, Deus nos transmite seus sinais e sua vontade para que sejamos instrumentos de uma nova realidade.

É triste, lamentável e revoltante, perceber que muitos ainda multiplicam esta concepção medieval de que a divindade ao ser questionada não hesita em condenar multidões com sofrimentos absurdos. A ideia grega de um Deus onipotente e poderoso disposto a impor um destino para a humanidade de modo a garantir sua própria glória, merece ser deixada de lado por todos os seres humanos. Um Deus portador de rancor, de ódio ou crueldade, e que, nos piores momentos tenciona abandonar o indivíduo a sua própria sorte, não é a imagem de um Deus manso, humilde, acolhedor.

Um dos mestres da espiritualidade de nossa época, o padre francês François Varrilon, participante ativo da resistência ao nazismo, professor, conferencista e pregador profundamente interessado em questões artísticas, disse certa vez: "Deus respeita de modo absoluto a liberdade do ser humano. Ele a criou, e não foi para petrificá-la ou violentá-la. É por isso que ele jamais grita, nem impõe. Ele sugere, propõe, convida. Ele não diz ‘eu quero’, mas ‘se tu quiseres’. Deus não repreende: ele deixa esse cuidado à nossa consciência”.

Se Deus intervisse para impedir os sofrimentos, quem sabe, não poderíamos dizer que Ele nos ama ao impedir-nos de sofrer. O que está no centro da bondade divina é um absoluto respeito para que a pessoa seja capaz de delimitar a sua própria trajetória. Este é um caminho que não elimina o risco do sofrimento, independente daquilo que gostaríamos de concretizar. As dificuldades ou os sofrimentos são lugares onde o amor é capaz de se revelar de forma profunda. As dores reverberam lições que repercutem naquilo que é a essência de nossa jornada.

Talvez o descaso diante do sofrimento humano esteja no inconsciente coletivo que acredita na existência de um Deus que sabe o está fazendo e, por isso, deveria resolver o que entendemos como não sendo nossa responsabilidade. Se for mesmo verdade que Deus pode “escrever certo por linhas tortas” o grande desafio humano é de não se omitir diante daquilo que deveria ser diferente. Ao nos deparamos com a força do mal, é tarefa nossa, inspirados pelo mandamento divino, lutar para que a humanidade seja um lugar no qual a justiça, o amor e paz, frutifiquem.