sábado, 9 de junho de 2018

DEUS E AS TRAGÉDIAS HUMANAS


A relação dos seres humanos com a terra e com o divino, em grande medida, exacerbou tensões, conflitos e, muitas vezes, até desastres. Mudaram os métodos, mas as estruturas de morte permanecem como no mundo antigo. Apesar do esforço em desmontá-las, ainda convivemos com a escravidão, os genocídios e a miséria nos quatro cantos da terra. Sempre existe uma meia dúzia que acaba lucrando com a indústria da guerra, com o tráfico de entorpecentes, com a prostituição. Como entender que apenas 65 famílias sejam donas de uma riqueza maior que mais da metade da população do mundo?

Nos círculos acadêmicos e também nas discussões que sugerem uma nova proposta de convívio para as pessoas, conseguimos discutir e até alinhavar conceitos sobre aquilo que poderia redundar no bem comum. No entanto, fracassamos em nossos esforços para evitar o mal. Os interesses personalistas, sectários ou racistas, prevalecem nas relações cotidianas e delimitam os caminhos da vida. Novos fascismos aparecem pelos atalhos da xenofobia, da intolerância religiosa e do extermínio de quem possa ser ou pensar diferente.

É por conta da fome que milhões de homens, mulheres, crianças e idosos, vivem sem perspectivas. Mesmo conhecendo esta realidade, uma boa parcela da sociedade, prefere fingir que ela nada tem a ver conosco. Os processos que desvirtuam a solidariedade e que conspiram contra a vida acabam sendo banalizados. O planeta agoniza. Os mares, as florestas, os rios e uma quantidade gigantesca de espécies em extinção, gritam por socorro. Poucos são os que se preocupam com o mundo que estará deixando para os seus filhos ou netos.

Não há disfarces que possam esconder a crueldade do nosso tempo. Qualquer discurso sobre a maldade capaz de explicitar atitudes mesquinhas ou as armas ideológicas da morte, em geral, não chegam para a maioria das pessoas que perambulam pelas ruas, algumas, sem saber ao certo, para onde caminham. Gente com uma história, com vivências e sonhos, carregando o fardo daquilo que poderia ser diferente. Pessoas que não conseguem mais vislumbrar utopias, pois perderam o seu alento e a dignidade. Gente que vai vivendo um dia de cada vez.

Em cada campo de refugiados na Síria ou no Afeganistão, em cada estupro no Brasil, em cada menino negro morto em alguma favela, é como se disséssemos que o mal vem capitaneando a história mais do que deveria. Deus ao nos conceder o seu livre arbítrio não altera o curso da história e nem se dispõe a escolher alguns “eleitos” para corrigir os percursos da humanidade. No entanto, tenho para mim, que todos os dias, Deus nos transmite seus sinais e sua vontade para que sejamos instrumentos de uma nova realidade.

É triste, lamentável e revoltante, perceber que muitos ainda multiplicam esta concepção medieval de que a divindade ao ser questionada não hesita em condenar multidões com sofrimentos absurdos. A ideia grega de um Deus onipotente e poderoso disposto a impor um destino para a humanidade de modo a garantir sua própria glória, merece ser deixada de lado por todos os seres humanos. Um Deus portador de rancor, de ódio ou crueldade, e que, nos piores momentos tenciona abandonar o indivíduo a sua própria sorte, não é a imagem de um Deus manso, humilde, acolhedor.

Um dos mestres da espiritualidade de nossa época, o padre francês François Varrilon, participante ativo da resistência ao nazismo, professor, conferencista e pregador profundamente interessado em questões artísticas, disse certa vez: "Deus respeita de modo absoluto a liberdade do ser humano. Ele a criou, e não foi para petrificá-la ou violentá-la. É por isso que ele jamais grita, nem impõe. Ele sugere, propõe, convida. Ele não diz ‘eu quero’, mas ‘se tu quiseres’. Deus não repreende: ele deixa esse cuidado à nossa consciência”.

Se Deus intervisse para impedir os sofrimentos, quem sabe, não poderíamos dizer que Ele nos ama ao impedir-nos de sofrer. O que está no centro da bondade divina é um absoluto respeito para que a pessoa seja capaz de delimitar a sua própria trajetória. Este é um caminho que não elimina o risco do sofrimento, independente daquilo que gostaríamos de concretizar. As dificuldades ou os sofrimentos são lugares onde o amor é capaz de se revelar de forma profunda. As dores reverberam lições que repercutem naquilo que é a essência de nossa jornada.

Talvez o descaso diante do sofrimento humano esteja no inconsciente coletivo que acredita na existência de um Deus que sabe o está fazendo e, por isso, deveria resolver o que entendemos como não sendo nossa responsabilidade. Se for mesmo verdade que Deus pode “escrever certo por linhas tortas” o grande desafio humano é de não se omitir diante daquilo que deveria ser diferente. Ao nos deparamos com a força do mal, é tarefa nossa, inspirados pelo mandamento divino, lutar para que a humanidade seja um lugar no qual a justiça, o amor e paz, frutifiquem.

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