quinta-feira, 31 de maio de 2018

REFUNDAR A DEMOCRACIA NO BRASIL


A crise da democracia no Brasil é, sobretudo, uma crise de identidade. A minha suspeita é de que a raiz da conturbada conjuntura vivida nos dias atuais tem muito a ver com a forma como ocorreu a retomada democrática depois de mais de duas décadas de ditadura civil-militar. Desconfio que o apagamento das arbitrariedades e a impunidade aos agentes do Estado fez com que nunca percebêssemos ao certo aquilo que orienta a nossa história. O Brasil retomou a democracia sem lidar com as contradições do período de exceção. Seguiu adiante sem olhar aquilo que estava no seu retrovisor. Somos um país que acabou omitindo uma parte de sua identidade, e, talvez, por isso, sempre necessita viver às voltas com uma democracia deformada. O resultado que fica no imaginário de uma parcela da população é que a vida humana vale pouco.

Não é por acaso que a opção pelo “esquecimento” dos crimes outrora praticados, tem raízes profundas. É por este mesmo caminho que, por exemplo, é possível entender as razões pelas quais o Brasil foi o último país latino americano a abolir a abjeta escravidão. Isto sempre fez parte dos fundamentos que constituíram a nossa trajetória. O desafio é compreender melhor certos sentidos e significados de nossa caminhada para que não vivamos o risco de seguirmos pactuando novos “esquecimentos”. Olhar com mais discernimento para as muitas situações que fazem parte de nossa biografia para que não caiamos, sempre de novo, em contradições.

Quando um país vive uma experiência como a ditadura, em que o Estado, lá pelas tantas, legitima o sequestro, a tortura ou a execução de alguns dos seus cidadãos, o que se esperaria é que tais condutas tivessem desdobramentos. Em geral, isso deveria ser feito por meio de investigação, julgamento e punição dos responsáveis. O resultado, neste caso, redundaria na promoção da memória, o debate e a reflexão. É desta forma que se estabelece no inconsciente coletivo que a tortura ou os assassinatos nunca deveriam ser tolerados, independente da situação ou contexto. Sem o rigor da lei, o cidadão não consegue perceber que a justiça é um valor importante para uma convivência harmoniosa.

Não se pode chegar a um futuro promissor negando ou minimizando facetas do passado. Quem, por exemplo, já teve o privilégio de visitar Berlin e outras cidades alemãs, pode contar com um itinerário de monumentos e museus que mantém viva e presente a memória do extermínio de milhões de judeus, ciganos, homossexuais e pessoas com deficiência. Cada cidadão alemão é lembrado, todos os dias, que o horror, efetivamente, aconteceu. Cabe-lhe refletir acerca dos acontecimentos de modo que esta página da história jamais venha a ser repetir. Além da memória, cada qual também é sabedor que este é um legado importante para as futuras gerações.

O Memorial do Holocausto no coração de Berlim é um monumento a céu aberto que ocupa quase vinte mil metros quadrados em uma área nobre da cidade. Foi projetado para mostrar como um sistema foi capaz de perder qualquer resquício de humanidade. Não se trata de olhar para culpas ou culpados, mas para uma responsabilidade coletiva de modo a evitar que o caos venha a se repetir. Na verdade, é como se cada cidadão alemão, mesmo aquele que ainda for nascer, tivesse a responsabilidade pelo que foi feito em seu nome, incluindo o Holocausto.

Não deixa de ser curioso, pelo menos para mim, como a maioria das pessoas em nosso país tende a naturalizar possíveis direitos resultantes do que foi feito pelos que vieram antes de nós, mas têm imensa dificuldade de olhar de forma responsável para as atrocidades cometidas. Talvez isso se deva ao fato de que o Brasil nunca buscou elaborar sua trajetória de maneira construtiva. Nunca houve qualquer responsabilização coletiva por um passado nebuloso. Ter feito justiça nos crimes cometidos em outras épocas teria sido fundamental para a construção de uma democracia plena. Num país onde, cotidianamente, temos tantos “esquecimentos”, justiça acaba sendo confundida com vingança.

Outro exemplo emblemático é o que ocorreu na Argentina durante o regime militar entre os anos de 1976 e 1983. Por lá, centenas foram para a cadeia. O principal protagonista do regime, o general Jorge Videla, morreu na prisão com quase 90 anos. A Argentina foi capaz de reverenciar a identidade dos filhos mortos ou desaparecidos. Ainda hoje, mais de 700 presos por crimes praticados por agentes do governo e das Forças Armadas permanecem encarcerados. De certa maneira, o que se afirmou no país vizinho foi que a justiça não era opcional e que a vida humana sempre seria o bem mais precioso.

No Brasil, nunca se viu nada parecido. A democracia que construímos é cheia de remendos e deformações. Ela nunca foi capaz de produzir justiça e muito menos memória. Esta é, em parte, uma das explicações para quem sonha com a volta do regime de exceção nos dias atuais. A ditadura enquanto sistema de governo acabou, mas os métodos permanecem. É a justiça que não funciona, são as prisões abarrotadas, é a barbárie em cada canto, é a violência e a repressão do próprio Estado não para garantir a integridade dos seus cidadãos, mas para reprimir uma população, a muito, desamparada.

Quanto mais a crise se aprofunda, mais a deformação de nossa democracia vai se acentuando. Nas cidades e no interior, multiplicam-se ações que se pautam pelo uso da força como solução para qualquer problema. Ao invés do diálogo, o que funciona mesmo é o autoritarismo. A nossa crise não é apenas política ou econômica, mas uma crise de valores. As pessoas reclamam da classe política, mas na primeira oportunidade que dispõe, não hesitam em negligenciar a solidariedade e a partilha. Uma democracia que não produz justiça ou memória sobre a tirania sempre terá uma alma de exceção.

Não é hora de pactuar novos “esquecimentos”. Refundar a democracia no Brasil exige muito mais do que superar a crise política ou a crise econômica. Exige mais do que investigação, julgamento e mudanças promovidas pela Lava Jato em relação a uma cultura da corrupção tão arraigada em nosso país. Refundar a democracia exige responsabilidade coletiva. Exige aquilo que nunca fomos capazes de levar adiante como nação: o valor primordial inerente a toda vida humana.

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