sexta-feira, 25 de agosto de 2017

A AVENTURA DA MODERNIDADE



O filósofo norte americano Marshall Berman, no final da década de 1980, escreveu um livro que viria a ser uma das melhores definições acerca da sociedade contemporânea - “Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade”. A obra é sublinhada por uma afirmação do célebre e controvertido pensador alemão, Karl Marx, que contextualizava a modernidade como um fluxo constante de mudanças e incertezas. A modernidade marcada pela “certeza da dúvida”: o permanente refazer a serviço de um determinado sistema de poder mediado pela exploração econômica liberal.

Marshall sugere a existência de um tipo de experiência compartilhada por homens e mulheres em um ambiente que promete aventura, poder, alegria, crescimento, mas, ao mesmo tempo, ameaça destruir tudo o que temos, sabemos e somos. A modernidade implica na diluição das fronteiras geográficas e raciais. Enseja caminhos de desintegração, de lutas e de contradições. As pessoas sentem-se como se estivessem em um período histórico sem conexão com o passado e nem com o futuro. Trata-se de um período que ameaça muitas tradições, e que, em contrapartida, recria modelos, convicções e crenças.

É um tempo marcado por grandes descobertas nas ciências, na indústria, nos meios de produção. O ritmo da vida tende a ser mais acelerado. Multiplicam-se os problemas advindos das explosões demográficas principalmente no meio urbano. Os sistemas de comunicação de massa exercendo cada vez mais influência no cotidiano. Países em suas batalhas geopolíticas com o intuito de consolidar o seu poder a partir das demandas de um mercado com poucos imperativos éticos.

O indivíduo é alguém que experimenta uma permanente colisão de interesses, fluxos e refluxos. Tudo é absoluto, mas nada parece ser definitivo. As dificuldades com as quais somos confrontados podem parecer complicadas demais, mas, em geral, as pessoas vão se acostumando e, por vezes, o que prevalece é a indiferença e a frieza diante da dor ou dos sofrimentos. As misérias e os mistérios dos nossos dias são vivências que suscitam impulsos movidos em demasia pelo pragmatismo e a incapacidade de pontuar gestos de afeto, compreensão e partilha.

De acordo com Marshall, as nossas possibilidades seriam, ao mesmo tempo, gloriosas e deploráveis. Todos podemos ser caminhos para a felicidade e a realização. Todos também podemos ser atalhos em direção ao caos. Por nos perdermos no ativismo insano, os sentimentos e as aspirações vão ganhando novas cores na medida em que as máquinas substituem a empatia e a reciprocidade. Busca-se uma dimensão na qual o sofrimento, a bondade, o afeto e o amor, parecem, cada vez mais, subtraídos da convivência humana e aniquilados pelo pragmatismo exagerado.

Para muitos, as dimensões mais sensíveis à convivência humana, podem representar um “incômodo” diante das tantas ambições narcísicas. Queremos o controle, o domínio de nossas vidas e daquilo que nos cerca. As pessoas tendem a dar as costas para aquilo que possa questionar ou exigir o repensar de valores que fogem ao controle pessoal. É por isso que a modernidade também fomenta múltiplos sentidos que retumbam em gestos de indiferença e frieza, na precarização do entendimento e da compreensão.

Nas palavras de Marshall Berman, “não só a sociedade moderna é um cárcere, como as pessoas que nela vivem foram moldadas por suas barras”. Somos seres que vivem o vazio, as aparências, a incoerência entre o que se fala e o que se faz. A modernidade, ao constituir-se através da tecnologia e das máquinas, fez com que as pessoas, direta ou indiretamente, não consigam mais desvencilhar-se deste modelo. Se tudo o que é sólido desmancha no ar, convém inspira-se em Eduardo Galeano com “a esperança de que nademos juntos para vencer a correnteza e não sejamos levados por ela”.

sexta-feira, 18 de agosto de 2017

A Terra dos Contrastes



O Brasil é uma terra de contrastes. É pouco provável que em outros países haja tantas peculiaridades e ambivalências. Somos a terra da mistura de raças, mas continuamos a vivenciar atitudes preconceituosas todos os dias, seja de forma velada, em alguma atitude corriqueira, seja de forma explícita, em gestos e agressões.


Gostamos tanto de futebol, mas, fazemos de conta como se o nosso maior craque não tivesse sido negro. Somos uma terra que faz retumbar o discurso da tolerância, embora, a cada dia, estejamos mais intolerantes com certas diferenças. É a homofobia, por exemplo, que eclode em situações e comportamentos. Somos o país do futuro, mas continuamos acorrentados aos vícios de um passado pouco glorioso.


Há lugares no Brasil, como o Rio de Janeiro, em que todos estão misturados e separados ao mesmo tempo. Todos na mesma praia, mas, dependendo da classe ou do status, em algum cantinho particular. Nossos grandes empresários falam mal do Estado, mas não dispensam uma licitação para obras ou financiamento públicos. Nossos moralistas, vira e mexe, andam metidos com baixarias. Nossos humoristas não discernem acerca daquilo que é entretenimento ou ofensa gratuita.


Nossas forças armadas comemoram a salvação do país em sua soberania, mas negam mais de duas décadas de ditadura. Nossa elite reclama estar perdendo vagas em universidades públicas demonizando as cotas raciais. Há quem, inclusive, desconhecendo o nosso passado, sustenta que nada têm contra negros ou índios e que ser chamado de branquela, alemão, gringo ou ruivo, também lhe daria direito a “privilégios”.


Somos abertos aos novos tempos, mas mulher de roupa curta e sensual é sem vergonha. Somos o país da criatividade. A terra de todos os ritmos musicais, mas em nosso “bom gosto” funk é chinelagem que só podia ser coisa de favelado. Sertanejo universitário com letras do ensino fundamental é apenas um detalhe fortuito.


Somos o país da impunidade ainda que as cadeias estejam superlotadas de ladrões de galinha e vazias de quem cometeu crimes de colarinho branco. O país em que a maior instância da justiça, o STF, julga conforme a cara do cliente. Somos, enfim, um país hipócrita, mas que gosta de pregar moral aos quatro cantos sem olhar a própria trajetória ou biografia.

sexta-feira, 11 de agosto de 2017

INFORTÚNIOS E DESVENTURAS



Vivemos, em nossos dias, um verdadeiro culto ao sofrimento humano. Há tantas situações e motivos que redundam em exemplos concretos de desamparo, violência e angústia. São experiências em relação à própria vida e que carecem de sentido. Aprendemos, em nossa cultura, a sobreviver mesmo diante dos percalços e das vicissitudes. Muitos aparentam estar felizes por meio de sorrisos caricatos, mas, no fundo, o que vivem buscando mesmo é tão somente driblar as próprias sombras de sua história.

Há dores que parecem maiores do que deveriam. Elas residem na alma, nas instâncias que agregam sentimentos e que desafiam qualquer capacidade de compreensão. No corpo podem aparecer como incômodos. A dor nos resgata dos absurdos em uma sociedade cada vez mais impessoal. A dor mostra quem, verdadeiramente, somos. Em geral, o sofrimento é experimentado como algo bem pessoal, íntimo. Em nosso cotidiano, há uma tendência em negligenciar o que a dor possa significar para o outro. Imagina-se, pela força que a caracteriza, como sendo uma experiência particular, apenas nossa e não do outro. É uma pena que tenhamos perdido tantos gestos de unidade e amparo recíproco diante das desventuras da jornada.

Num passado, nem tão distante assim, a dor serviu de inspiração nas artes, na literatura, suscitando criatividade, enaltecendo aquilo que estava no mais profundo de cada ser humano e para além daquilo que podia ser visto no dia a dia. Hoje, a dor é o eixo para as enfermidades como a depressão que, sendo patológica e tratável, é também, retrato de nossos desajustes existenciais modernos. O filósofo germânico Arthur Schopenhauer, quase dois séculos atrás, já dizia que o sofrimento representava um sentido inalienável para a própria existência. Era parte da vida, por vezes, tão frágil e pequena. Para ele, sofríamos por desejar, por amar e sonhar.

É na jornada de nossas vidas que a metáfora da dor de viver se reveste de sentido. Cada qual experimenta a sua caminhada, já não mais apenas a partir do que pensa, sente ou sonha, mas, naquilo que sofre. Os indivíduos de nosso tempo necessitam conviver com uma realidade que estilhaçou antigas certezas, consolidou o pragmatismo, a impessoalidade, a solidão. Somos uma geração que a cada dia necessita perguntar-se acerca de seu lugar no mundo. O paradoxo que parece mover nossa biografia é que em um mundo controlado pelo desejo, pelo consumo insano e desenfreado, o caminho para resguardar-se de muitos sofrimentos pode ser, justamente, não desejar tanto os valores e as verdades de uma vida subjugada pelas artimanhas da sociedade consumista.

É triste e quase trágico que por conta das tantas situações absurdas que vemos todos os dias, já quase não nos escandalizamos mais com a dor. Independente daquilo que vemos ou ouvimos, em geral, há uma banalização do sofrimento. O impacto de uma situação dolorosa pode durar semanas, dias, horas ou apenas alguns minutos. A dor é um dos elementos que realça sentidos de uma desmedida perversidade em nossas ações. Digo isso por perceber que muitas pessoas não parecem mover-se em suas palavras e atitudes por gestos que realcem a sensibilidade, a empatia, o cuidado e o carinho. Diante do sofrimento não necessitamos sempre de respostas ou teorias bem elaboradas, mas de gestos que ampliem a partilha e a sensação de que não estamos sozinhos. É o abraço, o ouvido atento e a mão estendida que valem mais que as palavras.

Tenho me perguntado acerca do futuro para uma sociedade onde as pessoas são incapazes de exercitar a compaixão pelo sofrimento alheio. Qual o motivo para não vivenciarmos a solidariedade, mas, antes o descaso e a indiferença? A compaixão é a capacidade de perceber o sofrimento de quem, direta ou indiretamente, faz parte de nossa história e saber que ele não é bom. Sentir a dor do outro como se fosse a sua. Uma sociedade capaz de compreender que os indivíduos não estão imunes ao sofrimento talvez tenha alguma chance de repercutir que a tarefa mais sublime é, sobretudo, exercitar por meio de atitudes, tudo aquilo que faça a nossa jornada ser mais plena, sem tantas dores ou sofrimentos.