sábado, 28 de julho de 2018

DESESPERANÇA À BRASILEIRA

O Brasil mergulha fundo na sua própria incapacidade em lidar com os descompassos da história. As pessoas se sentem atormentadas com o futuro e tem dificuldades em perceber a democracia como caminho plausível. Repete-se a grande interrogação sobre a duração do estado de exceção que andou transformando o judiciário em um poder hipertrofiado. Muita gente se considera autoridade moral para qualquer assunto.

O fascismo fortalece ‘autoridades’ que em outros tempos seriam apenas pessoas desinformadas. Colegas na escola, trabalho, lazer. Gente que se sente como se estivesse investida de um poder sem precedentes. São guardiões de uma ordem idealizada. Por toda parte, mobilizando sentimentos de que agem em nome de uma lei nem sempre escrita, mas interpretada de acordo com as conveniências.

Na carona das controvérsias patrocinadas pelos homens de toga, crescem o moralismo, a defesa do armamentismo e a intimidação. São ideias que se infiltram onde não há tanta resistência. O escritor, jornalista e ensaísta britânico, George Orwell, dizia que “quanto mais uma sociedade se distancia da verdade, mais ela odeia aqueles que a revelam”. Os absurdos à brasileira derrubam máscaras, expõe convicções, revelam ignorâncias.

O país não pode olvidar que tenha sido colonizado por criminosos, governado por corruptos, por escravocratas e espoliadores que nunca tiveram misericórdia nem piedade pelo sofrimento alheio. Esta bestialidade desumanizada foi constituindo uma mentalidade perversa, sanguinária e predatória. Os principais postos do Estado foram sendo ocupados, ao longo dos tempos, por gente portadora de uma mentalidade corrupta.

Raros foram os momentos da nossa história em que pessoas de índole honesta, com propósitos orientados para o bem comum ocuparam altos cargos nas instâncias do poder. Nos últimos tempos, contudo, o despudor, a desfaçatez, a imoralidade, a indecência, vem se mostrando sem rodeios. O Brasil vai sendo arrastado para a destruição, o descontrole e a violência. Está cada vez mais distante do caminho do entendimento e caminha a passos largos para a desesperança.

A incapacidade em descortinar exemplos de coragem e virtude vai abrindo as portas para que tenhamos de conviver com tantos absurdos. Somos um país em que as coisas passaram a ser vistas pelos olhos da normalidade e da indiferença: candidato preso, candidato pregando a matança, quadrilha no governo, juízes rasgando a constituição, crime, violência, saúde deficitária, educação em frangalhos. Os escândalos perderam o sentido. É como se a população estivesse anestesiada.

terça-feira, 24 de julho de 2018

Dialogando com o Espelho

No espelho somos capazes de reconhecer, pelo menos, três inimigos. Ainda que busquemos desafiá-los, sabemos que eles sempre andam a nos espreitar. São adversários sorrateiros. Gostam de assombrar pelas trilhas das vivências cotidianas. Ouso chamá-los pelos seus nomes: fracasso, impotência e culpa. 

Fracasso é sentimento, jamais constatação. Não é preciso muitas derrotas para que alguém se sinta fracassado com os ideais que ousa defender. Trata-se de um sentimento que tem muito a ver com a incapacidade em lidar com as inadequações da jornada. Afinal, cada indivíduo, no decorrer de sua vida, vai absorvendo o discurso da perfeição como se este fosse o único caminho plausível em sua história.

As cobranças e expectativas colocadas sobre as nossas costas, fustigam. O peso dos erros vai gerando sensações negativas. As demandas religiosas, as pressões culturais, as vicissitudes do trabalho. Tudo acaba confluindo para que o indivíduo se sinta desafiando a perscrutar horizontes para além de sua capacidade em lidar com os fracassos, desafinando na melodia da vida.

Em geral, temos dificuldades com certas divisões. Somos ensinados que os erros devem ser evitados a qualquer custo. Não nos damos o direito de aprender com as desventuras. Não sabemos lidar bem com as dores e angústias que perfazem a essência de nosso ser. Não fomos escolados para perceber que não temos as respostas para tudo e de que nem sempre haveremos de encontrar as melhores realizações pelos caminhos que decidimos percorrer.

Em nossos percursos, não é coisa rara ver pessoas alimentando a ilusão. Faz bem não perder a sensibilidade para as coisas simples e lembrar que as máscaras, em algum momento, tendem a cair. Os anos correm velozes. Não somos onipotentes. Deveríamos deixar de lado esta estranha obrigatoriedade em sermos eficientes com aquilo que a vinda colocar em nosso cotidiano.

O sociólogo polonês Zygmunt Bauman lembra que a busca por liberdade em nossos dias vem acompanhada do medo da liberdade dos outros. A insegurança de se entregar acompanhada pelo desejo de total entrega do outro. A necessidade de tranquilidade acompanhada de uma constante expectativa em relação aos outros.

Acredito que diante de tantas questões, no fundo, não precisamos chegar primeiro ou sermos sempre vitoriosos. Para alguns a vida parece uma eterna competição. Importante é poder celebrar a própria identidade sem precisar ficar se explicando o tempo todo e sem atender aos imperativos de quem supõe a perfeição sem compreender as incompletudes do ser.

O nosso valor não depende de cumprir um roteiro que outros rabiscam em nosso lugar. Recuperar aspectos positivos de tempos passados talvez nem seja necessário, mas redefinir valores para a existência buscando colocá-los em prática, já é um bom começo para fortalecermos vínculos de gratidão, afeto e bondade pelas estradas do fracasso, da impotência e da culpa.

domingo, 15 de julho de 2018

BRASIL: MOSTRA A TUA CARA!

Ter como um dos candidatos presidenciais mais fortes hoje no Brasil um sujeito que não hesita em defender quem torturou e matou gente é como comparar um adorador de Hitler ou apreciador do nazismo como favorito a chanceler na Alemanha. Não se trata apenas, como alguns gostam de imaginar, de um contraponto a quem governou este país nas últimas décadas. Um hitlerista ou neonazista não seria apenas uma ofensa aos judeus. Mais do que isso, tem a ver com um completo ultraje à democracia e aos valores elementares da convivência humana.

Na Alemanha é impensável que haja qualquer candidato neonazista ou negador do Holocausto na linha de frente da sucessão majoritária. No Brasil, no entanto, o nosso principal revisionista histórico é chamado de mito e lacrador, carregado nos braços pelas multidões e considerado, especialmente pelos jovens, o novo Messias da política brasileira. Como entender que uma pessoa tão excêntrica tenha se tornado no atual cenário o “salvador da pátria”?

O Brasil é um país com dimensões continentais. Isso, sempre dificultou a formação de uma identidade nacional entre seus habitantes, somado aos séculos da colonização com sua produção de riqueza e formação social fundada no escravagismo. O Brasil só começa a formar um princípio de identidade lá pelo fim da República Velha. Alguns intelectuais ajudaram também a formular questões sobre a constituição do povo brasileiro, como Gilberto Freyre, Raymundo Faoro e Sérgio Buarque de Holanda.

As análises feitas por alguns destes intelectuais nos levam a crer que as características do povo brasileiro estariam ligadas com aquilo que se convencionou chamar de “homem cordial”. Um indivíduo que se impõe por meio da força e da violência, mas, que, por outro lado, é sempre envolvido por muitas paixões. Na raiz desta sua forma de ser, estaria o ideal de um Estado patrimonialista onde não se distingue os limites entre o público e o privado. Onde tudo tende a desaguar no famoso “jeitinho” brasileiro.

Na minha opinião, trata-se de uma concepção que foi sendo moldada por muitos e muitos anos. É esta forma de olhar para a realidade que acabou sendo assimilada em boa parte das universidades ou escolas, influenciando aquilo que, por exemplo, o jornalista escreve ou o juiz decide num tribunal. É essa percepção elitista que vai legitimando os interesses privados em detrimento dos interesses públicos. Ou seja, as imagens que carregamos de nós mesmos vem dos primeiros circuitos intelectuais do país. São estas percepções que haverão de consolidar a opinião pública.

Em minhas conversas cotidianas, no trabalho, na rua ou nas redes sociais, o que tenho presenciado são algumas pessoas se referindo à política e a sociedade sempre a partir de um sentido de moralidade, apelando para uma ética platônica, muito distante do mundo real. Imagino que sejam pessoas que acreditam que os problemas mais cruciais de nossa complexa sociedade podem ser resolvidos apenas com boa vontade, questões de ordem e discursos genéricos. Frases de efeito, ainda que soem bem aos ouvidos, não resolvem aquilo que vivenciamos todos os dias. Este modelo platônico que tenta vender a imagem de um ser imaculado, com autoridade e caráter, honestidade e “Deus no coração”, traz consigo, no mesmo pacote, afirmações de desprezo escancarado pelas minorias e pessoas mais vulneráveis.

Esta discussão binária e maniqueísta, quando encarada apenas de forma imediata, encontra amparo nas redes sociais e em alguns grupos midiáticos, mas não se sustenta quando levamos à reflexão sobre o tamanho do Brasil, a diversidade do nosso território, a forma como fomos nos desenvolvendo econômica e socialmente desde os tempos coloniais, como foi sendo constituído o nosso sistema político e suas respectivas rupturas e também os motivos para vivermos em uma sociedade tão desigual.

Tenho para mim que enquanto continuarmos embasados por conceitos duvidosos alinhados, em grande medida, por uma meritocracia alimentada por padrões morais e encarada como um processo ideologicamente natural, uma parcela da população que adora exemplos morais de virtudes, que nada mais são do que artifícios criados para manter privilégios para alguns, seguiremos ladeira abaixo. Muitos dos que hoje pregam uma pretensa moral, mal se dão conta de que o seu discurso também é, em grande medida, a manutenção de um status quo. No final, o que aparece mesmo é a hipocrisia. Quem rouba é sempre o outro, quem usurpa o patrimônio público é sempre o outro, quem não presta é sempre o outro.

Estarmos vivendo tempos complexos e cheios de tantas excrescências só demostra que nosso país é pródigo em suscitar maluquices. Se para alguns, um notável revisionista histórico é visto como “mito”, eu, de minha parte, prefiro olhar para o nosso tempo e lembrar o quanto evoluímos pouco em nossa humanidade. Sinto tristeza e me vai um tanto da esperança em dias melhores ao ver tanta gente querida multiplicando aquilo que deveria nos envergonhar como seres humanos, brasileiros e, na sua maioria, cristãos.

terça-feira, 10 de julho de 2018

OS NÚMEROS DA VIOLÊNCIA


Há poucos dias foram publicadas duas importantes pesquisas acerca da violência nas cidades e no campo no Brasil. O Atlas da Violência do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e o Caderno de Conflitos no Campo em 2017, da Comissão Pastoral da Terra (CPT). Os dois estudos revelam um aumento gigantesco da violência e das mortes pelo país afora. Além de indicar as regiões, os estados, as faixas etárias, circunstâncias e fatores, as pesquisas apontam também quem são os homens e as mulheres mais atingidos: os moradores das periferias, os jovens negros, mulheres camponesas, indígenas e quilombolas, moradores ribeirinhos em localidades de conflito com grandes empreendimentos.

É importante observar que os dados institucionais, como os trazidos pelo Atlas da Violência, apesar de ter números alarmantes, ainda não conseguem dar conta de uma realidade onde são comuns as muitas violências cometidas pelo Estado quando este se ausenta em solucionar os conflitos. Os estudos colocam o ano de 2017 como de maior número de assassinatos no campo dos últimos 20 anos. São constatações preocupantes em um cenário onde as pessoas percebem a crescente violência vivida em todas as regiões do país.

A população negra e pobre, por exemplo, é a que mais morre nas cidades brasileiras. A taxa de homicídios entre negros cresceu quase 30% nos últimos 10 anos. No mesmo período, a taxa entre os não negros teve uma redução de quase 10%. A taxa de homicídios de mulheres negras foi de quase 80% superior à de mulheres não negras. Nos últimos dez anos, a taxa de homicídios para cada 100 mil mulheres negras aumentou por volta de 20%, enquanto que entre as não negras houve queda de 10%.

O estudo do IPEA chama de juventude perdida o conjunto de dados e violências que revelam o aumento sobre a população com a faixa etária entre os 15 e os 29 anos, destacando que, entre homens de 15 a 19 anos, os homicídios são a causa da morte de 60%. Sergipe é o estado que tem o maior número de mortes de jovens no país. Para cada 100 mil, 65% são jovens. De modo geral, as violências contra a população negra (pretos ou pardos) aumentou em quase 30% nos últimos 10 anos.

Sobre a violência contra as mulheres, os dados demonstram que os homicídios, feminicídios e estupros, podem ser fruto de processos violentos visíveis e também não visíveis, como a violência psicológica, a patrimonial, a física e sexual. Quase 70% dos registros são de estupros com menores de idade (até 13 anos). Isso revela como a violência doméstica e familiar também tem crescido, pois os agressores são, em sua maioria, pessoas do convívio mais próximo, como, por exemplo, os pais e os padrastos. Trata-se de uma violência recorrente e que, em geral, ocorre nas casas das crianças.

Houve um aumento assustador relacionado à violência no campo. As tentativas de assassinatos subiram quase 70% e as ameaças de morte 20%. O número de conflitos apenas em 2017 foi de quase 1.500. Isso corresponde a um assassinato para cada 20 conflitos, ou então, um a cada três dias. Os relatos dos acontecimentos pontuam altos níveis de brutalidade. Afora isso, o que fez o ano passado ser diferente, foi uma incidência de massacres. Ocorreram, pelo menos, cinco massacres com mais de 30 vítimas.
Ao trazer os dados destes dois documentos, o que fica em termos de reflexão e aprendizado é a evidência de que tanto no campo como na cidade, a impunidade segue como um dos pilares que sustenta a violência. O Estado não é quem atira ou executa em primeiro plano, mas, aquele que nega políticas públicas e a efetiva resolução jurídica justa e necessária. É imperioso desnaturalizar tanta violência e encarar este assunto como responsabilidade pública e de interesse da sociedade. Cobrar o enfrentamento não apenas das consequências, mas, sobretudo, das causas por conta da ausência de ações que garantam a inclusão e a cidadania em sua plenitude.