A
teoria política, de modo geral, justifica o nascimento do Estado moderno enquanto
forma de proteção da vida. Os indivíduos abrindo mão de algumas questões acerca
da liberdade em troca de segurança. O que sustentaria, portanto, o poder do
Estado seria o “contrato social” entre os diferentes sujeitos. Se o Estado
nasce para proteger os indivíduos, o direito à vida seria o mais importante e
não poderia ser suprimido.
Na
prática, contudo, as coisas poucas vezes funcionaram assim. Outras teorias
acabaram legitimando aquilo que os filósofos conceituaram como poder soberano.
Argumentava-se que o poder soberano teria origem divina e não contratual. Desta
maneira, a função do governante seria a plena justiça. Ora, ao se acreditar que
o governante era escolhido por Deus, tornava-se inevitável compreendê-lo como
sábio. Sendo sábio, justo. Sendo justo, competia-lhe o exercício da justiça,
podendo decidir pela vida ou pela morte dos seus subordinados. Com base nesta
lógica, a vida estaria nas mãos de quem governa.
A
partir do século XIX esta perspectiva assume outras feições. As revoluções resgataram
a noção de direitos naturais. No entanto, a grande ambiguidade é que as
sociedades regidas por esta lógica foram as que mais mataram. De um lado,
estariam indivíduos “normais” ou “superiores”; de outro, aqueles mantidos à
margem, segmentados por alguma diferença: racial, biológica, étnica ou
religiosa.
O
que estava em questão não era o ódio entre pessoas diferentes, mas algo muito
mais perverso. A lógica segundo a qual indivíduos inferiores poderiam
“infectar” ou “contaminar” a sociedade e, assim, provocar a decadência de toda
a espécie humana. A conclusão é bastante simples: para a proteção de toda a
sociedade, grupos inteiros deveriam desaparecer. O nazismo foi o exemplo mais
contundente desta minha afirmação.
Vale
ainda destacar outra questão importante. Se o poder soberano era aquele que
decidia quem deveria morrer e quem deveria viver, convinha perguntar e
esclarecer a quem caberia tal poder? O risco é que o poder soberano, na maioria
das vezes, acontece de forma difusa. Por isso, um judeu na Alemanha nazista
poderia ser morto por qualquer militar, mas estudos mostram que as maiores
atrocidades do Holocausto foram cometidas em locais em que nem havia autoridade
ou força militar presente. A loucura era capaz de se impregnar de tal maneira
nas atitudes do cotidiano que a decisão acerca de outra pessoa ser morta não
necessitava do consentimento das autoridades. Qualquer individuo poderia se
achar no direito de exercer o seu poder soberano.
Partindo
dessa reflexão, um importante pensador de nosso tempo, o italiano Giorgio
Agamben, propõe o conceito de Estado de exceção. Um mecanismo no qual os
direitos e as garantias individuais são suspensos para que um mal possa ser combatido.
No entanto, o perigo também é difuso e difícil de ser identificado. O
expediente jurídico da exceção tende a se tornar permanente. A prisão de
Guantánamo, por exemplo, talvez seja emblemática neste sentido. As pessoas que para
lá foram enviadas não possuem nenhum classificação precisa, e, portanto, não
possuem direitos. Não são americanos. Não são prisioneiros de guerra. Também
não são estrangeiros. É uma anomalia que realça um vazio jurídico onde tudo é
possível. Presos que talvez nunca sejam julgados, mas que são torturados todos
os dias.
É
possível, portanto, nas sociedades atuais, que sejam formados espaços de
exceção dentro de um mesmo Estado. Locais onde a lei é respeitada e outros em
que há uma espécie de vazio legal. Um fenômeno que faz eclodir um discurso belicista
e de autodefesa da sociedade.
Essa
dinâmica também ocorre no Brasil, mas a maioria não percebe ou finge não
perceber. É principalmente nas periferias onde as mortes, as torturas, as invasões
de propriedades e as matanças acontecem e a vida de milhares de pessoas
permanece num vazio jurídico. São indivíduos que podem ser mortos por motivos
banais e, por serem pobres, negros e residirem em locais no entorno das grandes
cidades, são classificados como “delinquentes”.
Em
nosso país, os elevados índices de criminalidade geram insegurança. Quanto
maior a insegurança, maior será o controle. Mas, nesse caso, a ação do poder
central age de forma localizada, pois o perigo é identificado e localizado em
espaços específicos. O medo e a insegurança, portanto, legitimam a exceção.
Conforme
os dados de uma recente pesquisa feita pelo Instituto Datafolha, para 69% dos
brasileiros “o país necessita, principalmente, antes de leis ou planos
políticos, é de líderes valentes, incansáveis e dedicados, em quem o povo possa
depositar a sua fé”. 85% disseram não se importar com a lei. 60% dos que
opinaram disseram concordar com a frase “a maioria de nossos problemas sociais
estaria resolvida se pudéssemos nos livrar das pessoas imorais, dos marginais e
dos pervertidos”.
Acredito
que é justamente por conta desta realidade que corremos o risco de aplaudir
quem estimula um discurso destrutivo para lucrar politicamente. A retórica
alarmista e inflamada é capaz de transformar o medo em ódio. Este processo abre
espaço para todo tipo de discurso radical, que se materializa em ações
violentas contra que não tem muito discernimento para compreender o seu papel neste
mundo. Forma-se uma corrente destrutiva que pode levar todos à ruína. A
desordem gera medo. O medo reverte-se em ódio. O ódio, em exceção. E este, por
sua vez, em caos.