sexta-feira, 30 de março de 2018

POSTERIDADE


Quisera poder destrinchar muitas das minhas inquietações. Desdobrá-las em porções para, quem sabe, explicar o emaranhado de ideias que me envolvem, mas que, de forma estranha, não ouso decifrar de forma plena. O fluxo de minhas reflexões é sublinhado pela curiosidade, mas também pela perplexidade diante daquilo que fez parte da jornada. Sigo sondando a vida igual criança. Navego no rio do tempo, enquanto resisto ao seu fluir.

Com os anos, fui deixando de lado muitas das batalhas sentenciadas, em grande medida, apenas pela razão. O que ando querendo com mais vigor nos dias que Deus ainda me conceder, são os caminhos da gratidão e da bondade. Já não idealizo apenas as ideias exatas configuradas nos meandros da racionalidade. Elas incitam verdades derradeiras, mas, no fundo, suplantam gestos de ternura e afeto.

Não tenho mais tanta paciência para continuar explicitando ideias acerca de Deus em contraposição a famigerada discriminação, o abjeto racismo, a vergonhosa misoginia, a asquerosa ganância e o desprezível individualismo. Lamento o tempo que andei jogando fora com pessoas simpáticas ao ódio. Não quero mais aquilo que não promove o diálogo, o amor, a partilha e o desrespeito.

Quero muito respirar o divino na sensibilidade dos poetas e na compaixão solidária de quem necessita do abraço ou da mão estendida. O tempo já é tão curto, para que, afinal, gastá-lo com esta sanha insana do ódio sem eira e nem beira. Prefiro estar ao lado de gente simples, mas leal. Desejo transformar as palavras em alento. Anseio em me tornar em palavras e atitudes, alguém que semeia aquilo que nem o tempo é capaz de apagar.

Ficaria realizado se pudesse descobrir os atalhos que permitissem transformar as dores em expressões de sabedoria para auxiliar quem anda fatigado. Não quero as falsas luzes do sucesso passageiro e nem as cinzas daquilo que fez parte da minha história. Diante as adversidades, busco forças para que o cinismo não destrua a beleza daquilo que as futuras gerações terão em suas mãos.

Quero sentir os ventos de uma percepção capaz de transcender aquilo que não edifica. Romper com todas as formas de preconceito e ser envolvido pelo amor mostrado na parábola do bom samaritano capaz de abrandar tantas dores e sofrimentos. Não pretendo carregar as culpas pela bondade que não foi exercitada e nem pela esperança e afeto, renegados.

sexta-feira, 23 de março de 2018

A FACE DO ABISMO


O fascismo de hoje se disfarça de liberalismo no plano político e de neoliberalismo no plano econômico. Seu discurso e suas guerras podem ser dirigidos contra inimigos externos ou internos. Sua verdadeira natureza não pode ser escondida por muito tempo quando pessoas, quase sempre com as cores da bandeira, descobrem líderes dispostos a defender o racismo, a ditadura, o genocídio e a tortura.

Na maioria das vezes, trata-se de personagens elevados à condição de “salvadores da pátria” de forma artificial. Tem seus rostos exibidos em camisetas, faixas, cartazes, por uma turba que os exalta com os mesmos slogans em todos os lugares. Repetindo sempre os mesmos mantras moralistas contra a política e seus representantes, contra a corrupção e os maus costumes. São as mesmas promessas do passado, mas que, curiosamente, costumam aparecer em momentos de crise superdimensionada pela mídia. Foi assim, só para citar alguns exemplos, com Hitler na Alemanha, com Mussolini na Itália, com Salazar na Espanha, com Pinochet no Chile.

É importante lembrar o decisivo apoio da imprensa para que os objetivos sejam alcançados. Mussolini e Hitler estamparam as capas das mais famosas revistas em sua época. Buscava-se realçar a determinação, a coragem, o patriotismo, o exemplo de fé e a honestidade para nações em dificuldades. Por isso, não é por acaso que em nossos dias uma boa parcela dos jornais e das revistas estejam recheados de manchetes apocalípticas para “justificar” a presença de determinados personagens na arena pública.

Da fabricação do consentimento que leva ao fanatismo até as terríveis consequências de sua imbecilidade ilógica e destrutiva, não faz parte apenas a exagerada perspectiva da crise. É preciso atacar investimentos, obras e meios de produção, aumentando a quebra de grandes e pequenas empresas, para criar, um clima que permita tatuar a marca da incompetência na testa daqueles que não se quer governando no futuro.

Criando, no mesmo processo, novas e até inéditas lideranças, mesmo que, do ponto de vista ideológico, o seu odor lembre o de naftalina. Como se elas estivessem surgindo, por encanto e de forma espontânea, para livrar a nação da crise e salvar o país do abismo. É sempre com a mesma conversa de que é preciso “consertar” a máquina, corrigir a desagregação dos costumes, os erros da democracia, apresentada como podre e corrompida de forma indelével, que se justifica e executa um projeto de conquista do poder.

É com a desculpa de purificar a pátria que se postula a mudança de leis, distorcendo e deslocando as decisões políticas do parlamento para outros setores do Estado e para instituições que se plenificam sem a referência do voto. É por meio de iniciativas aparentemente populares que se desafia a constituição e aumenta o poder jurídico e policial do Estado para eliminar, impedir, sufocar, o surgimento de qualquer tipo de oposição à sua vontade.

Busca-se o controle, por meio de amplo e implacável aparato repressivo dirigido contra qualquer um que venha a oferecer resistência. Vai se aprimorando um discurso hipócrita e mentiroso para justificar a construção de um nefasto castelo de cartas onde se vende a imagem que tudo está do avesso. Sobram apenas miséria, desgraça, destruição e morte.

Esta é, infelizmente, a imbecilidade ilógica vendida e comprada por milhões de pessoas nos últimos tempos. Nunca houve uma sociedade que tenha sobrevivido à manipulação, ao ódio, ao fanatismo de seu povo ou ao ego, a ambição, a cegueira, a loucura e a mais profunda vaidade e distorção praticada por algumas lideranças cujos sonhos de poder costumam transformar-se, infelizmente, apenas depois de muito sangue derramado.

sexta-feira, 16 de março de 2018

PERSISTÊNCIA!


Diante daquilo que tenho visto, resta-me a inabalável percepção de que o mundo sempre andou dividido entre pessoas que pensam apenas nelas mesmas e aquelas que buscam meios para minimizar a desgraça dos outros. Vivemos um tempo no qual as informações deturpadas impedem a divulgação das melhores virtudes para uma sociedade mais justa. Em minha consciência crítica, não pretendo cair no maniqueísmo, e, por isso, digo que se trata de uma luta da solidariedade contra o egoísmo.

Acredito que o mundo já tenha sido pior, mesmo que para alguns o saudosismo seja a palavra de reverência diante das desventuras do cotidiano. Basta uma espiada nos percursos da história para vermos que a guerra foi uma constante na dominação de territórios, sendo escravizados os vencidos, quando não exterminados; a servidão foi base para a economia no passado; as invasões de outros continentes redundaram em genocídios de milhões. Por conta da ganância, erguemos muros e demarcamos fronteiras.

É preciso seguir acreditando. Esforçar-se para que, ao menos, as pessoas tenham as mesmas oportunidades. Que os filhos da empregada doméstica tenham as mesmas oportunidades que os filhos do empresário bem-sucedido. Cabe a todos e todas, vencer este trágico determinismo de uma sociedade profundamente injusta e indiferente à dor dos outros. Que parece estar se acostumando a ser indiferente quando uma criança morre nos braços da mãe por conta da falta de tratamento médico, enquanto outros jogam “dinheiro pelo ralo” em baboseiras e sem qualquer melindre ético ou moral.

A história nos mostra as múltiplas facetas da opressão, exploração e dominação. Quem possui as prerrogativas do poder econômico também consegue a maioria dos instrumentos de coerção e persuasão. Poucas vezes, quem sofre na carne as injustiças, possui o discernimento crítico para entender as artimanhas e o jogo do poder. Vive-se na ilusão e acredita-se em qualquer coisa. Talvez a grande tragédia seja, justamente, não perceber que caminhamos a passos largos para consolidar uma sociedade que, a cada dia, subverte a solidariedade, esquece a compaixão e desdenha da igualdade. Achamos “normal” a competição, a concorrência, o individualismo, o egoísmo e a indiferença para com a dor alheia. Aplausos para o triunfo dos mais espertos!

Antes que alguém ouse “carimbar” estas minhas ponderações, digo que elas não estão alinhadas com alguma ideologia política ou partidária, em particular. São, antes, afirmações de quem não se conforma com a tragédia humana em uma sociedade que relega, por exemplo, crianças e adolescentes a procurar comida no lixo e mães que não tem outra escolha que não seja a de assistir, passivas, seus filhos e filhas morrendo refém das drogas e da mais abjeta violência. Não consigo aceitar, em nome dos valores que sempre ousei defender, que a miséria não cause mais indignação e revolta do que a subtração de privilégios. 

Às vezes, por conta de tanta coisa que anda acontecendo, bate um desânimo e até certo desencanto com a raça humana. Ficamos tentados a pensar que as coisas não têm jeito e que a luta é inglória. Que as nossas aspirações de justiça e equidade contrariam a “natureza das coisas”. Ingenuidade seria, pois, acreditar em uma sociedade igualitária, baseada na solidariedade e no bem comum. Não podemos, no entanto, desistir. É preciso manter a esperança e lutar para que ela, ao menos, oriente a nossa caminhada.

É preciso resistir e não dobrar-se a tantos absurdos que, todos os dias, vivenciamos. É indispensável recuperar alguns valores para orientar os caminhos tortuosos do presente e inspirar as futuras gerações. Continuo acreditando, mesmo que às vezes o desânimo seja perverso e a luta inglória, que uma nova sociedade, um novo tempo e uma nova consciência, são princípios inalienáveis. Afinal, como preconizou Eduardo Galeano: a utopia é como o horizonte, está sempre distante, mas é o que nos faz caminhar.

sábado, 10 de março de 2018

ESTADO DE EXCEÇÃO



A teoria política, de modo geral, justifica o nascimento do Estado moderno enquanto forma de proteção da vida. Os indivíduos abrindo mão de algumas questões acerca da liberdade em troca de segurança. O que sustentaria, portanto, o poder do Estado seria o “contrato social” entre os diferentes sujeitos. Se o Estado nasce para proteger os indivíduos, o direito à vida seria o mais importante e não poderia ser suprimido.

Na prática, contudo, as coisas poucas vezes funcionaram assim. Outras teorias acabaram legitimando aquilo que os filósofos conceituaram como poder soberano. Argumentava-se que o poder soberano teria origem divina e não contratual. Desta maneira, a função do governante seria a plena justiça. Ora, ao se acreditar que o governante era escolhido por Deus, tornava-se inevitável compreendê-lo como sábio. Sendo sábio, justo. Sendo justo, competia-lhe o exercício da justiça, podendo decidir pela vida ou pela morte dos seus subordinados. Com base nesta lógica, a vida estaria nas mãos de quem governa.

A partir do século XIX esta perspectiva assume outras feições. As revoluções resgataram a noção de direitos naturais. No entanto, a grande ambiguidade é que as sociedades regidas por esta lógica foram as que mais mataram. De um lado, estariam indivíduos “normais” ou “superiores”; de outro, aqueles mantidos à margem, segmentados por alguma diferença: racial, biológica, étnica ou religiosa.

O que estava em questão não era o ódio entre pessoas diferentes, mas algo muito mais perverso. A lógica segundo a qual indivíduos inferiores poderiam “infectar” ou “contaminar” a sociedade e, assim, provocar a decadência de toda a espécie humana. A conclusão é bastante simples: para a proteção de toda a sociedade, grupos inteiros deveriam desaparecer. O nazismo foi o exemplo mais contundente desta minha afirmação.

Vale ainda destacar outra questão importante. Se o poder soberano era aquele que decidia quem deveria morrer e quem deveria viver, convinha perguntar e esclarecer a quem caberia tal poder? O risco é que o poder soberano, na maioria das vezes, acontece de forma difusa. Por isso, um judeu na Alemanha nazista poderia ser morto por qualquer militar, mas estudos mostram que as maiores atrocidades do Holocausto foram cometidas em locais em que nem havia autoridade ou força militar presente. A loucura era capaz de se impregnar de tal maneira nas atitudes do cotidiano que a decisão acerca de outra pessoa ser morta não necessitava do consentimento das autoridades. Qualquer individuo poderia se achar no direito de exercer o seu poder soberano.

Partindo dessa reflexão, um importante pensador de nosso tempo, o italiano Giorgio Agamben, propõe o conceito de Estado de exceção. Um mecanismo no qual os direitos e as garantias individuais são suspensos para que um mal possa ser combatido. No entanto, o perigo também é difuso e difícil de ser identificado. O expediente jurídico da exceção tende a se tornar permanente. A prisão de Guantánamo, por exemplo, talvez seja emblemática neste sentido. As pessoas que para lá foram enviadas não possuem nenhum classificação precisa, e, portanto, não possuem direitos. Não são americanos. Não são prisioneiros de guerra. Também não são estrangeiros. É uma anomalia que realça um vazio jurídico onde tudo é possível. Presos que talvez nunca sejam julgados, mas que são torturados todos os dias.

É possível, portanto, nas sociedades atuais, que sejam formados espaços de exceção dentro de um mesmo Estado. Locais onde a lei é respeitada e outros em que há uma espécie de vazio legal. Um fenômeno que faz eclodir um discurso belicista e de autodefesa da sociedade.

Essa dinâmica também ocorre no Brasil, mas a maioria não percebe ou finge não perceber. É principalmente nas periferias onde as mortes, as torturas, as invasões de propriedades e as matanças acontecem e a vida de milhares de pessoas permanece num vazio jurídico. São indivíduos que podem ser mortos por motivos banais e, por serem pobres, negros e residirem em locais no entorno das grandes cidades, são classificados como “delinquentes”.

Em nosso país, os elevados índices de criminalidade geram insegurança. Quanto maior a insegurança, maior será o controle. Mas, nesse caso, a ação do poder central age de forma localizada, pois o perigo é identificado e localizado em espaços específicos. O medo e a insegurança, portanto, legitimam a exceção.

Conforme os dados de uma recente pesquisa feita pelo Instituto Datafolha, para 69% dos brasileiros “o país necessita, principalmente, antes de leis ou planos políticos, é de líderes valentes, incansáveis e dedicados, em quem o povo possa depositar a sua fé”. 85% disseram não se importar com a lei. 60% dos que opinaram disseram concordar com a frase “a maioria de nossos problemas sociais estaria resolvida se pudéssemos nos livrar das pessoas imorais, dos marginais e dos pervertidos”.

Acredito que é justamente por conta desta realidade que corremos o risco de aplaudir quem estimula um discurso destrutivo para lucrar politicamente. A retórica alarmista e inflamada é capaz de transformar o medo em ódio. Este processo abre espaço para todo tipo de discurso radical, que se materializa em ações violentas contra que não tem muito discernimento para compreender o seu papel neste mundo. Forma-se uma corrente destrutiva que pode levar todos à ruína. A desordem gera medo. O medo reverte-se em ódio. O ódio, em exceção. E este, por sua vez, em caos.