sábado, 10 de março de 2018

ESTADO DE EXCEÇÃO



A teoria política, de modo geral, justifica o nascimento do Estado moderno enquanto forma de proteção da vida. Os indivíduos abrindo mão de algumas questões acerca da liberdade em troca de segurança. O que sustentaria, portanto, o poder do Estado seria o “contrato social” entre os diferentes sujeitos. Se o Estado nasce para proteger os indivíduos, o direito à vida seria o mais importante e não poderia ser suprimido.

Na prática, contudo, as coisas poucas vezes funcionaram assim. Outras teorias acabaram legitimando aquilo que os filósofos conceituaram como poder soberano. Argumentava-se que o poder soberano teria origem divina e não contratual. Desta maneira, a função do governante seria a plena justiça. Ora, ao se acreditar que o governante era escolhido por Deus, tornava-se inevitável compreendê-lo como sábio. Sendo sábio, justo. Sendo justo, competia-lhe o exercício da justiça, podendo decidir pela vida ou pela morte dos seus subordinados. Com base nesta lógica, a vida estaria nas mãos de quem governa.

A partir do século XIX esta perspectiva assume outras feições. As revoluções resgataram a noção de direitos naturais. No entanto, a grande ambiguidade é que as sociedades regidas por esta lógica foram as que mais mataram. De um lado, estariam indivíduos “normais” ou “superiores”; de outro, aqueles mantidos à margem, segmentados por alguma diferença: racial, biológica, étnica ou religiosa.

O que estava em questão não era o ódio entre pessoas diferentes, mas algo muito mais perverso. A lógica segundo a qual indivíduos inferiores poderiam “infectar” ou “contaminar” a sociedade e, assim, provocar a decadência de toda a espécie humana. A conclusão é bastante simples: para a proteção de toda a sociedade, grupos inteiros deveriam desaparecer. O nazismo foi o exemplo mais contundente desta minha afirmação.

Vale ainda destacar outra questão importante. Se o poder soberano era aquele que decidia quem deveria morrer e quem deveria viver, convinha perguntar e esclarecer a quem caberia tal poder? O risco é que o poder soberano, na maioria das vezes, acontece de forma difusa. Por isso, um judeu na Alemanha nazista poderia ser morto por qualquer militar, mas estudos mostram que as maiores atrocidades do Holocausto foram cometidas em locais em que nem havia autoridade ou força militar presente. A loucura era capaz de se impregnar de tal maneira nas atitudes do cotidiano que a decisão acerca de outra pessoa ser morta não necessitava do consentimento das autoridades. Qualquer individuo poderia se achar no direito de exercer o seu poder soberano.

Partindo dessa reflexão, um importante pensador de nosso tempo, o italiano Giorgio Agamben, propõe o conceito de Estado de exceção. Um mecanismo no qual os direitos e as garantias individuais são suspensos para que um mal possa ser combatido. No entanto, o perigo também é difuso e difícil de ser identificado. O expediente jurídico da exceção tende a se tornar permanente. A prisão de Guantánamo, por exemplo, talvez seja emblemática neste sentido. As pessoas que para lá foram enviadas não possuem nenhum classificação precisa, e, portanto, não possuem direitos. Não são americanos. Não são prisioneiros de guerra. Também não são estrangeiros. É uma anomalia que realça um vazio jurídico onde tudo é possível. Presos que talvez nunca sejam julgados, mas que são torturados todos os dias.

É possível, portanto, nas sociedades atuais, que sejam formados espaços de exceção dentro de um mesmo Estado. Locais onde a lei é respeitada e outros em que há uma espécie de vazio legal. Um fenômeno que faz eclodir um discurso belicista e de autodefesa da sociedade.

Essa dinâmica também ocorre no Brasil, mas a maioria não percebe ou finge não perceber. É principalmente nas periferias onde as mortes, as torturas, as invasões de propriedades e as matanças acontecem e a vida de milhares de pessoas permanece num vazio jurídico. São indivíduos que podem ser mortos por motivos banais e, por serem pobres, negros e residirem em locais no entorno das grandes cidades, são classificados como “delinquentes”.

Em nosso país, os elevados índices de criminalidade geram insegurança. Quanto maior a insegurança, maior será o controle. Mas, nesse caso, a ação do poder central age de forma localizada, pois o perigo é identificado e localizado em espaços específicos. O medo e a insegurança, portanto, legitimam a exceção.

Conforme os dados de uma recente pesquisa feita pelo Instituto Datafolha, para 69% dos brasileiros “o país necessita, principalmente, antes de leis ou planos políticos, é de líderes valentes, incansáveis e dedicados, em quem o povo possa depositar a sua fé”. 85% disseram não se importar com a lei. 60% dos que opinaram disseram concordar com a frase “a maioria de nossos problemas sociais estaria resolvida se pudéssemos nos livrar das pessoas imorais, dos marginais e dos pervertidos”.

Acredito que é justamente por conta desta realidade que corremos o risco de aplaudir quem estimula um discurso destrutivo para lucrar politicamente. A retórica alarmista e inflamada é capaz de transformar o medo em ódio. Este processo abre espaço para todo tipo de discurso radical, que se materializa em ações violentas contra que não tem muito discernimento para compreender o seu papel neste mundo. Forma-se uma corrente destrutiva que pode levar todos à ruína. A desordem gera medo. O medo reverte-se em ódio. O ódio, em exceção. E este, por sua vez, em caos.

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