sexta-feira, 25 de janeiro de 2019

AS NOSSAS PEGADAS

Somos feitos de muitas partes. Nossas histórias e trajetórias se misturam e confundem. Na maior parte do tempo, somos desafiados a entulhar a vida com realizações. Há quem tenha receios de encontrar verdades, mas, também, não consegue fugir das mentiras. Conheço muitos que guardam uma estranha capacidade de buscar o inédito, mas, por outro lado, não hesitam em manter na sua jornada, valores que não ampliam o amor, a lealdade e a paz.

Nossas ambiguidades podem multiplicar morte e ressurreição, anjos e demônios, destreza e covardia, angústias e esperanças. Cada qual pode, simultaneamente, ser menino ou ancião, indiferente ou amável, realista ou poeta. Todos os dias nascem em nós o joio e o trigo. Podemos nos sentir únicos, mas também supérfluos. Rasgar ou costurar; ferir ou curar; ser sinal de alento nas asperezas da vida. Sonhar que o sol haverá de nascer de novo e que o amor e a bondade são virtudes essenciais.

O único bem genuíno que a vida nos concebe é a graça de sermos donos e donas da própria alma sem nunca desistir de sermos “caçadores” de nós mesmos. Escapamos da infelicidade por sabermos que a história acontece como exceção nas decepções, ingratidões e traições. Eu, da minha parte, reconheço também o oposto: desde meus dias de menino, nem um dia se passou sem que alguém não fosse luz em meus caminhos. Esta luz, que dou o nome de bondade, reanima a esperança.

Quando a bondade aparece, contemplamos novas possibilidades. Fugimos da desesperança. Conseguimos ver além da luz da lua e seus raios se tornam beleza infinita, que desvela o esplendor das muitas noites. Rechaço a ideia de que a vida segue vazia em direção ao nada. Tenho sede de transcendência. Quero ir além do horizonte. Desafio praias seguras, mas, sem grandes belezas. Talvez não saiba evitar certos desalentos, mas sigo acreditando que um abraço pode curar mil angústias.

Cada pessoa carrega consigo as vivências moldadas a partir de infinitos fragmentos. Ninguém é frágil por falhar ou tropeçar. Nossa fortaleza vem com a teimosia de seguir em frente como o marinheiro náufrago, que se segura nos pedaços de sua embarcação. Esperança pode ser também uma maneira de dizer: “continuarei a nadar, ainda que pareça inútil”.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2019

A CIÊNCIA DO “ACHISMO”

O que é absolutamente paradoxal é o fato de conseguirmos visualizar o aumento do conhecimento científico e, ao mesmo tempo, o aumento da estupidez humana. É bem provável que já tenhamos escutado a frase: “é só minha opinião”. É provável, também, que o “só” seja acompanhado por um sorriso arrogante, sugerindo que o “só” não seja tão “só” assim. É um “só” que atropela evidências, anos de pesquisa e a própria ciência como um todo.

O renomado físico e filósofo estadunidense, Thomas Kuhn, buscou estruturar a evolução das ciências com base no conceito de paradigma, que, de modo simples, pode ser definido como um saber científico aceito durante determinado período. A pergunta que se encontra por trás desta afirmação é se os tais períodos da história podem mesmo ser fracionados? Seria possível afirmar que as rupturas ao longo do tempo excluem métodos e pensamentos antecedentes?

Temos, hoje, pesquisas que passam a valorizar aspectos antes desprezados pelas ciências: intuição, emoções, fé, identidades, entre outros. Isso não quer dizer que essas pesquisas são menos científicas, mas, que temos uma ciência mais abrangente (e menos fechada), capaz de acolher outras perspectivas, outros agentes e outras interpretações do mundo. Uma ciência menos fechada, menos excludente e menos preconceituosa continua sendo ciência, na medida em que permanecem métodos, verificações, elaborações.

Algo que difere totalmente de grupos que “acham” tudo fora de qualquer circuito de pensamento. São simples devaneios, e o mais preocupante é que esses devaneios ganham adeptos. Temos cada vez mais gente acreditando nessas coisas. E o mais estranho é a dificuldade que temos em localizar os autores desses enunciados. Temos pessoas que, diante de uma escolarização precária, buscam discursos fáceis. Vivem as suas convicções sem evidências, argumentos ou plausibilidade, apenas, simplismos.

São discursos que pulam etapas e que sugerem um raciocínio quase infantil. “Meu filho tomou vacina – meu filho vomitou após tomar vacina – vacina faz mal à saúde”. Vivenciamos, hoje, um misto de creche com mesa de bar, mesmo com todos os avanços. Não podemos falar que o problema se deve apenas à escolarização precária. Trata-se de algo muito mais perverso. Temos oportunistas que manipulam pessoas em cada canto.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

DEMAGOGIA E ESPERTEZA

“O conhecimento não só amplia como multiplica nossos desejos. Portanto, o bem-estar e a felicidade do Estado requerem que o conhecimento dos trabalhadores fique confinado dentro dos limites de suas ocupações e jamais se estenda […] além daquilo que se relaciona com sua missão. Quanto mais um pastor, um arador ou qualquer outro camponês souber sobre o mundo e sobre o que lhe é alheio ao seu trabalho, menos capaz será de suportar as fadigas e as dificuldades de sua vida com alegria e contentamento.” 

Esse trecho foi extraído de um famoso compêndio de filosofia moral do século XVIII: A fábula das abelhas: vícios privados, benefícios públicos, de Bernard de Mandeville (1670-1733). A lição preconizada na obra volta a fazer sentido no momento atual da educação brasileira, cuja herança de inovação se depara com potenciais ameaças. Cito algumas, a seguir. 

A cada novo dia, somos induzidos a apontar episódios de pretensa doutrinação ideológica perpetrada por docentes de escolas e universidades, até mesmo fora de sala de aula, sobretudo, em opiniões difundidas à exaustão, nas redes sociais. O discurso persecutório é evidente, e as “acusações” abundam, num linguajar grotesco que denuncia desde a defesa dos direitos elementares, até a análise das condições de trabalho presentes em livros de história, como opiniões de esquerdistas malucos. 

Nada mais partidarizado que uma Escola sem Partido, por exemplo. Com o pretexto de expurgar um suposto viés político dos professores, seus militantes querem extirpar da escola sua institucionalidade pública, seu espaço de debate e formação acima e para além das crenças familiares e dos valores religiosos de caráter privado. O verdadeiro pavor de uma Escola sem Partido é a inserção das crianças no mundo fora da família, que, em geral, começa justamente por meio da escola. O que o movimento combate é a ideia de escola como espaço público na qual as crianças e os jovens vão ao encontro da diferença, transcendendo a vida privada. 

Outra situação comum nos dias atuais, e, não por acaso, coadunada com a ideia anterior, é a defesa incondicional da militarização das nossas escolas públicas. A publicação dos últimos indicadores da violência no Brasil expõe a situação dramática na segurança pública. As estatísticas, incluindo a impressionante cifra de homicídios, não escondem a principal vítima dos crimes contra a vida: o jovem pobre, morador das periferias e dos grandes centros urbanos. Famílias assustadas viram alvos fáceis de soluções simplórias, mas equivocadas, para um complexo problema da violência juvenil e, por consequência, correlato à evasão escolar. 

A militarização dos colégios consiste, grosso modo, em colocar na direção e nas coordenações das escolas, oficiais da polícia. Com sua autoridade, estes restaurariam a disciplina, eliminariam os desvios e melhorariam o rendimento dos alunos. Os indicadores dos colégios militares brasileiros seriam a prova da eficiência deste modelo. 

Enquanto os países com os melhores indicadores de educação são aqueles nos quais se adotam metodologias ativas e se investe fortemente na formação de professores para que as aulas sejam dialogadas, baseadas em problemas reais e no desenvolvimento do raciocínio e pensamento crítico, nos colégios militarizados, este modelo não tem vez. O professor fala, o aluno ouve, anota e obedece. 

É preciso entender que o que ocorre nos colégios militares jamais haverá de se repetir nesta proposta. Lá há rigorosa seleção prévia e os alunos seguem uma vocação para a carreira alinhada com certa ordem, disciplina e hierarquias. O que importa é que, ao contrário dos filhos das famílias mais abonadas, os jovens com menos condições estejam sujeitos à disciplina, aquela necessária a quem vai se inserir na sociedade em posição subalterna. 

O Ministério da Educação é hoje campo de atuação de fundações privadas financiadas por grandes grupos estratégicos. A reforma do ensino médio e a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) nasceram das demandas dessas entidades. Não nego aqui a situação precária da educação básica, cuja evasão chega quase à metade dos alunos matriculados, tampouco a necessidade de um currículo nacional bem embasado. A condução de tais temas, no entanto, a meu ver, objetiva mais a preparação de mão de obra do que às condições de produção do conhecimento. 

Por outro lado, grupos gigantescos e que controlam dezenas de instituições de ensino, incluído faculdades, avançam no mercado da educação. Recentemente, uma destas empresas, a Kroton, adquiriu a rede “Somos Educação” que agrega colégios, cursos pré-vestibulares como Anglo e as editoras Saraiva, Ática e Scipione, que têm como principal fonte de receita a venda de livros didáticos para o governo. 

Trata-se de empresas privadas sustentadas, em grande medida, por recursos públicos. Para estas grandes corporações educacionais uma simples reforma como a do ensino médio, por exemplo, pode representar o ganho de milhões de reais. Lucra-se, e muito, com a elaboração de livros adequados às novas normas e programas de ensino vendidos às escolas de todo o país. 

A histeria aparece na mídia e a demagogia vai ganhando a adesão de mais pessoas, mas é o capital que faz a sua parte de forma estratégica e discreta. Enquanto os palhaços ocupam o palco e distraem o público, os diretores do espetáculo fazem seu trabalho de forma silenciosa. Não importa a ética ou a mudança daquilo que, historicamente vem mal. Importa mesmo o resultado material e o lucro.

domingo, 6 de janeiro de 2019

Tempo de viver

A vida acontece também na desobediência. Nem todos os ideais conseguem ser alcançados. A rebeldia pode conduzir para lugares repletos de beleza e verdade. Há momentos onde é necessário transgredir, desafiar, contestar para não continuar preso a certos caprichos.

Tenho para mim que nem sempre sofremos os efeitos de alguma situação pontual. Nossas dores não se explicam, necessariamente, na lei da semeadura. Nem sempre colhemos o que plantamos. Há o imprevisível. Decepções chegam, igualmente, para justos e injustos. Os desgostos não escolhem portas para bater. O infortúnio pode nos encontrar a qualquer momento.

Para ressurgir, é, pois, preciso questionar determinadas certezas. Descortinar vivências que nasçam da sensibilidade para aprender com a dor do outro. Um conhecimento que esteja recheado de poesia. Que permita, diante do imperceptível, sentir o Eterno.

Intuo que talvez seja doloroso demais aplainar algumas das estradas que se alongam em nosso horizonte. Corremos o risco da frustração ao tentar domar alguns momentos da vida. O prenúncio bíblico contido no livro do Eclesiastes também ensina que nem sempre os fortes vencem ou os justos alcançam a paz. Experimentar a dor ao ver certos ideais tragados, pode ensinar mais do que momentos de glória fugaz.

A nossa existência é frágil e, por isso, não deveríamos confundir quietude com covardia. Propor novas trilhas e não apenas resmungar diante daquilo que se estende no horizonte. A vida plena também se esconde nos riscos que ousamos correr. O tempo é esta noção indelével no qual a esperança pode renascer nos resquícios da memória.

Convém se reinventar para não sucumbir diante de quem sempre busca patrulhar os escrúpulos alheios. Não ser escravo daquilo que os outros esperam. De que vale impressionar a quem jamais será amigo de verdade? Importa mesmo deixar de lado a rispidez e exercitar a bondade no falar e no agir.

É preciso garimpar verdades que geram lealdade. Aprender a reverenciar o próximo para redescobrir Deus no rosto da criança sofrida, na mão de quem suplica e no olhar de quem se sente pequeno. Celebrar a solidariedade e a obstinação de quem defende o oprimido. Jamais confundir franqueza com arrogância.

Que cada um seja capaz de cultivar a obstinação em aprender com as voltas da própria existência. Buscar a disciplina no amor à poesia, olhos e ouvidos atentos para a beleza de alguma sinfonia cotidiana a aliviar dias tristonhos.