A Reforma protestante teve um papel decisivo
na redefinição das mentalidades ocidentais. Foi por meio dela que aconteceu a reafirmação
da autonomia dos indivíduos frente às autoridades eclesiásticas e às
instituições religiosas. A sua repercussão acabou, em grande medida, sendo ampliada
por um momento conturbado vivido na Europa, sobretudo, na passagem dos séculos
XV para o XVI. Um período que suscitou a renovação e a ruptura no âmbito da cristandade
católica.
Ao fulminar uma pretensa unidade religiosa, a
consequência foi o enfraquecimento do protagonismo e da supremacia de apenas
uma tradição doutrinária. Estimulou-se o crescimento de um Estado moderno,
secular, centralizado, confrontando o papa em sua autoridade. Se havia certa relutância
em desafiar as monarquias, principalmente em territórios alinhados com o
catolicismo, por outro lado, a subordinação da autoridade papal ao trono
permitiu a constituição de Estados mais fortes. Algo que no decorrer história
viria a nortear os atributos da vida política moderna.
Os precursores do movimento reformista ampliam
a ideia de igualdade inspirada nos ideais judaico-cristãos, mediante os quais
as pessoas eram criaturas de Deus. Faz-se um contraponto aos paradigmas da
sociedade medieval onde o feudalismo reforçava as distinções entre nobres e
plebeus. Uma sociedade formada por classes: o povo, a nobreza e o clero. Ao não
concordar que somente pessoas do clero podiam exercer funções estratégicas
dentro da igreja, algo que, em última análise, era o meio pelo qual as pessoas
supunham alcançar a salvação, os ideais protestantes afirmavam uma não
supremacia dos padres e bispos em relação aos leigos.
Ao não estar mais condicionado por preceitos
“oficiais”, ficava a cargo do indivíduo em seu livre arbítrio a
responsabilidade de interpretar a doutrina bíblica de acordo com os ditames de
sua consciência, em geral, com vistas a uma inserção comunitária. Já não era
mais apenas a igreja que fornecia segurança ou certeza, e, nenhum clero era instigado
a interferir de forma arbitrária nas relações entre Deus e as pessoas.
Questionava-se a determinação eclesial ao postular que o indivíduo em sua
autonomia, livre arbítrio e consciência, iluminadas por Deus e no âmbito de sua
comunidade de fé, era a fonte de autoridade. A fé era uma questão que demandava,
por óbvio, uma relação pessoal com Deus.
O movimento da Reforma empreendeu uma
popularização da leitura bíblica. Sublinhou uma posição contrária a forma como
as estruturas da Igreja, à época, condicionavam a adesão de seus fiéis e
estimulavam práticas financeiras. Do protesto emergiram reflexões e derivaram
lideranças. Mesmo com toda a diversidade que acabou delimitando os percursos da
Reforma, é possível identificar bases teológicas importantes: a salvação que
vem do amor incondicional de Deus alcançado mediante a fé; a Bíblia, palavra de
Deus, fundamento de fé e vida; o serviço a Deus pela fé através de ações
cotidianas.
Hoje, as igrejas da Reforma são um segmento
diverso. Pautam-se por percepções teológicas, presença geográfica e numérica bastante
plural. Tende a ser tarefa complexa a explicação acerca de possíveis categorias
ou referenciais precisos para este fenômeno. Em tese, o que existe é uma
aproximação com algumas bases do movimento reformista. Diante de práticas
rotineiras e até predominantes em muitas denominações, autoproclamadas
“evangélicas”, não é novidade que tenhamos pregações que sirvam a um propósito
de doutrinação e proselitismo.
Muitas vezes não é enfatizado, portanto, o
amor incondicional de Deus pelos seres humanos, uma das questões primordiais do
movimento reformista. Ao contrário, o que se apresenta é um Deus que age
condicionado às ações humanas: pelo modelo das orações, pelo sacrifício para
alcançar o que se espera, tanto por meio de atitudes e obrigações religiosas ou
de aportes financeiros, como se estivéssemos no tempo das indulgências.
Esta leitura bíblica instrumentalizada tende
a ser descontextualizada e acaba por referenciar os princípios de uma teologia marcada
pela lógica do consumo e da satisfação pessoal. O poder e o controle
concentrados nos líderes religiosos, por sua vez, também resultam no
sufocamento da voz e na ação de cada participante em sua comunidade. Faz-se do
protestantismo em suas razões de ser, algo que acaba sendo renegado a um
segundo plano. Todavia, não devem ser renegados os inúmeros exemplos do jeito
protestante de viver a fé em contraposição a uma lógica utilitária que é uma
das mais nefastas características da vida nos dias atuais.
Como não lembrar quem pagou com sua vida o
compromisso com a justiça, povoando as prisões, resistindo às torturas,
enfrentando o exílio ou a morte? Como não destacar quem segue, em comunidade, o
Deus da graça e da vida? Como não falar de quem se sente chamado a caminhar com
quem é rejeitado em sociedade por conta de sua cor ou da sua condição sexual? Como
não aplaudir quem busca viver em vários esforços de solidariedade com
empobrecidos, com dependentes químicos, com presidiários, com vítimas de
violência?
Ao escrever sobre o “princípio protestante” o
teólogo Paul Tillich reconheceu que a dimensão profética, contestatória,
protestante, é própria do Cristianismo, à luz da postura de Jesus, o homem
de Nazaré. Para Tillich, a Reforma significou a encarnação deste princípio e
uma volta às origens do ser cristão. Trata-se de reconhecer, nesta perspectiva,
algo que não é propriedade exclusiva de um grupo religioso, podendo se
manifestar em diferentes formas religiosas, culturais e até políticas.
O ideal protestante pode ser entabulado
através do legado da Reforma, especialmente, quando se ressalta uma postura
dinâmica e de caráter não exclusivista. É algo que concerne a todas as igrejas.
A todas as religiões. A todos os seres humanos na medida em que induz para uma
revisão da vida, em palavras e atitudes, a partir daquilo que orienta e
plenifica a nossa existência cotidiana, à luz da mensagem bíblica.