sexta-feira, 27 de outubro de 2017

OS 500 ANOS DA REFORMA

A Reforma protestante teve um papel decisivo na redefinição das mentalidades ocidentais. Foi por meio dela que aconteceu a reafirmação da autonomia dos indivíduos frente às autoridades eclesiásticas e às instituições religiosas. A sua repercussão acabou, em grande medida, sendo ampliada por um momento conturbado vivido na Europa, sobretudo, na passagem dos séculos XV para o XVI. Um período que suscitou a renovação e a ruptura no âmbito da cristandade católica.


Ao fulminar uma pretensa unidade religiosa, a consequência foi o enfraquecimento do protagonismo e da supremacia de apenas uma tradição doutrinária. Estimulou-se o crescimento de um Estado moderno, secular, centralizado, confrontando o papa em sua autoridade. Se havia certa relutância em desafiar as monarquias, principalmente em territórios alinhados com o catolicismo, por outro lado, a subordinação da autoridade papal ao trono permitiu a constituição de Estados mais fortes. Algo que no decorrer história viria a nortear os atributos da vida política moderna.


Os precursores do movimento reformista ampliam a ideia de igualdade inspirada nos ideais judaico-cristãos, mediante os quais as pessoas eram criaturas de Deus. Faz-se um contraponto aos paradigmas da sociedade medieval onde o feudalismo reforçava as distinções entre nobres e plebeus. Uma sociedade formada por classes: o povo, a nobreza e o clero. Ao não concordar que somente pessoas do clero podiam exercer funções estratégicas dentro da igreja, algo que, em última análise, era o meio pelo qual as pessoas supunham alcançar a salvação, os ideais protestantes afirmavam uma não supremacia dos padres e bispos em relação aos leigos.


Ao não estar mais condicionado por preceitos “oficiais”, ficava a cargo do indivíduo em seu livre arbítrio a responsabilidade de interpretar a doutrina bíblica de acordo com os ditames de sua consciência, em geral, com vistas a uma inserção comunitária. Já não era mais apenas a igreja que fornecia segurança ou certeza, e, nenhum clero era instigado a interferir de forma arbitrária nas relações entre Deus e as pessoas. Questionava-se a determinação eclesial ao postular que o indivíduo em sua autonomia, livre arbítrio e consciência, iluminadas por Deus e no âmbito de sua comunidade de fé, era a fonte de autoridade. A fé era uma questão que demandava, por óbvio, uma relação pessoal com Deus.

                                                        Rosa de Lutero
 O movimento da Reforma empreendeu uma popularização da leitura bíblica. Sublinhou uma posição contrária a forma como as estruturas da Igreja, à época, condicionavam a adesão de seus fiéis e estimulavam práticas financeiras. Do protesto emergiram reflexões e derivaram lideranças. Mesmo com toda a diversidade que acabou delimitando os percursos da Reforma, é possível identificar bases teológicas importantes: a salvação que vem do amor incondicional de Deus alcançado mediante a fé; a Bíblia, palavra de Deus, fundamento de fé e vida; o serviço a Deus pela fé através de ações cotidianas.


Hoje, as igrejas da Reforma são um segmento diverso. Pautam-se por percepções teológicas, presença geográfica e numérica bastante plural. Tende a ser tarefa complexa a explicação acerca de possíveis categorias ou referenciais precisos para este fenômeno. Em tese, o que existe é uma aproximação com algumas bases do movimento reformista. Diante de práticas rotineiras e até predominantes em muitas denominações, autoproclamadas “evangélicas”, não é novidade que tenhamos pregações que sirvam a um propósito de doutrinação e proselitismo.


Muitas vezes não é enfatizado, portanto, o amor incondicional de Deus pelos seres humanos, uma das questões primordiais do movimento reformista. Ao contrário, o que se apresenta é um Deus que age condicionado às ações humanas: pelo modelo das orações, pelo sacrifício para alcançar o que se espera, tanto por meio de atitudes e obrigações religiosas ou de aportes financeiros, como se estivéssemos no tempo das indulgências.


Esta leitura bíblica instrumentalizada tende a ser descontextualizada e acaba por referenciar os princípios de uma teologia marcada pela lógica do consumo e da satisfação pessoal. O poder e o controle concentrados nos líderes religiosos, por sua vez, também resultam no sufocamento da voz e na ação de cada participante em sua comunidade. Faz-se do protestantismo em suas razões de ser, algo que acaba sendo renegado a um segundo plano. Todavia, não devem ser renegados os inúmeros exemplos do jeito protestante de viver a fé em contraposição a uma lógica utilitária que é uma das mais nefastas características da vida nos dias atuais.


Como não lembrar quem pagou com sua vida o compromisso com a justiça, povoando as prisões, resistindo às torturas, enfrentando o exílio ou a morte? Como não destacar quem segue, em comunidade, o Deus da graça e da vida? Como não falar de quem se sente chamado a caminhar com quem é rejeitado em sociedade por conta de sua cor ou da sua condição sexual? Como não aplaudir quem busca viver em vários esforços de solidariedade com empobrecidos, com dependentes químicos, com presidiários, com vítimas de violência?


Ao escrever sobre o “princípio protestante” o teólogo Paul Tillich reconheceu que a dimensão profética, contestatória, protestante, é própria do Cristianismo, à luz da postura de Jesus, o homem de Nazaré. Para Tillich, a Reforma significou a encarnação deste princípio e uma volta às origens do ser cristão. Trata-se de reconhecer, nesta perspectiva, algo que não é propriedade exclusiva de um grupo religioso, podendo se manifestar em diferentes formas religiosas, culturais e até políticas.

O ideal protestante pode ser entabulado através do legado da Reforma, especialmente, quando se ressalta uma postura dinâmica e de caráter não exclusivista. É algo que concerne a todas as igrejas. A todas as religiões. A todos os seres humanos na medida em que induz para uma revisão da vida, em palavras e atitudes, a partir daquilo que orienta e plenifica a nossa existência cotidiana, à luz da mensagem bíblica.

sexta-feira, 20 de outubro de 2017

O VENTO SERÁ TUA HERANÇA

Quase cem anos atrás, o professor de biologia do Tennessee nos Estados Unidos, John Thomas Scopes, foi processado pelo estado por discorrer acerca do darwinismo em sala de aula. Era crime naquele estado. O caso tornou-se conhecido como o julgamento do Macaco (“Monkey Trial”). Dois dos mais importantes advogados norte-americanos trabalharam no processo. Um liberal iluminista, defendendo. Outro fundamentalista bíblico, acusando. O caso durou 11 dias e foi o primeiro a ser transmitido para o país inteiro pelo rádio. O episódio, mais tarde, foi retratado no filme - O Vento Será Tua Herança - inspirado na frase bíblica do Livro de Provérbios capítulo 11, versículo 29: “Aquele que perturba sua casa herdará apenas o vento”.


Quem perturba a sociedade por meio da intolerância, da fé cega, do fanatismo ou do ódio, haverá de receber apenas o vento como herança. O filme sublinha o poder da razão contra o obscurantismo alienante. Dos que não aceitam uma sociedade mediada pelo diálogo, pela compreensão, pela ética do cuidado em amor. De quem não se importa com o pensar, reivindicar e exercer a autonomia. Em última análise, trata-se de uma angustiante batalha de quem vive convencido de que o outro não é o seu companheiro de jornada, mas um inimigo que necessita ser combatido.


É inegável estarmos vivendo um período complicado em nosso país. Não apenas pelas ultrajantes peripécias políticas, mas, sobretudo, pelo obscurantismo que vai se irradiando no dia a dia. Há tanta intolerância e ódio sendo repercutido em palavras e atitudes. A criminalização da diferença, outrora, uma das marcas do fascismo, agora ecoa sem atalhos e nem melindres. Indivíduos e autoridades se sentem autorizadas a desgraçar quem não é espelho de suas mentes fechadas. Um dia, talvez, possam compreender que aquilo que atacam com tanta agressividade é, no fundo, a liberdade que lhes permite ser o que quiserem.


Milhões, como que encantados, apoiam políticos misóginos, comediantes homofóbicos, religiosos fundamentalistas e celebridades que gostam de rasgar o verbo. Estamos desistindo de buscar o bem comum e o entendimento e sendo conduzidos por imbecis que apenas propagam a tirania. O mais assustador é ver e ouvir gente atolada na servidão exaltando quem lhes maltrata. Presos na cortina de fumaça são gastos tempo e esforço para contestar exposições em museus, difamar professores, ridicularizar artistas. De forma leviana e hipócrita, faz-se de conta que a fome, a violência e a sanha insana do capital impondo seus caprichos, são questões menores.


Costumo dizer que a história tende a se repetir. O problema é que as pessoas insistem em não aprender com as desventuras da jornada e, por isso, acabam percorrendo caminhos que levam a lugares sombrios. Não é um acaso o que estejamos vivendo agora no Brasil. As redes sociais viabilizaram infinitas descobertas, mas, por outro lado, também organizaram a ignorância que andava dispersa. Cada indivíduo virou especialista em qualquer tema. Em nome de uma pretensa liberdade de expressão, ofender ou caluniar, virou coisa corriqueira, trivial. Há uma generalizada incapacidade de colocar-se no lugar do outro e entender que ele ou ela merecem a mesma dignidade que sonhamos para a nossa jornada.


O sociólogo esloveno Slavoj Zizek cunhou o termo “pós-humano” para as pessoas que sofrem com a informação distorcida, a manipulação e imbecilização publicitária. Em um país devastado pela tirania, há gente que, em nome da fé, por exemplo, é capaz de abraçar o demônio com um discursinho infame e oportunista propagando uma suposta “moralidade”. Por isso, resistência em nossos dias é ser sujeito da própria história, mesmo com tanta balbúrdia. Não tenho dúvidas de que quem muito ataca, critica e ofende, um dia, haverá de receber apenas o vento como herança.

sexta-feira, 13 de outubro de 2017

QUE TAL DIALOGAR?



Muita gente não foi devidamente instruída para dialogar sem que o interlocutor seja colocado em uma “caixinha”. Categorizado, embalado, etiquetado, rotulado. Ignora-se a complexidade humana reduzindo os indivíduos a um determinado lugar, geralmente, sem conhecer ou considerar as premissas mais elementares do entendimento humano. Interpreta-se o que é dito de forma aleatória numa simplificação das variações de cores e tons a ponto de sobrar apenas o preto e o branco.
A partir daí, textos são multiplicados com xingamentos sem que tenham sido devidamente compreendidos. O compartilhamento, em geral, não serve para fomentar o debate construtivo sobre a realidade, mas como munição em uma guerra de torcidas organizadas. Se o cidadão critica um governante, logo há quem entenda que esteja abraçado a outro. Se fizer ressalvas ao papel do judiciário, é visto como apoiador da bandalheira. Se assumir a causa dos menos favorecidos, é possível que seja visto como ideologicamente alienado.
É absurdo como somos colocados em “caixinhas” e chamados a uma pretensa coerência com aquilo que nossos interlocutores entendem como conveniente. Por que não é possível reconhecer a complexidade dos processos sociais, políticos e econômicos? Todos podem e devem ter suas preferências, mas o que isso impede em reconhecer no outro a qualidade ou disposição para um diálogo franco, leal e sem deduções esdrúxulas?
O mais triste é que a mensagem é ignorada enquanto a batalha vai sendo travada sobre lugares comuns relacionados ao pretenso ''time'' pela qual o autor ou autora da mensagem ''torcem''. Como se tivéssemos desistido de nossa capacidade de ter opinião a partir de uma reflexão individual proporcionada pelo diálogo com os outros e pela aquisição do conhecimento. Falta-nos disposição para garantir o respeito às divergências. Falta, sobretudo, ver nas diferenças uma dádiva e não um empecilho.
A retórica alarmista e inflamada busca transformar o medo em ódio dentro de um processo que abre espaço para todo tipo de discurso radical e que pode se materializar em ações violentas. Forma-se um ciclo pautado na desordem e que gera apreensão. O medo reverte-se em ódio. O ódio, em exceção. E essa, por sua vez, em caos. É uma engrenagem que retroalimenta a desordem. É justamente nessa espiral do apocalipse que estamos vivendo.
O escritor, poeta e dramaturgo britânico, Oscar Wilde, dizia que havia três tipos de déspotas. Os que tiranizavam o corpo, aqueles que tiranizavam a alma e os que tiranizavam, ao mesmo tempo, o corpo e a alma. Para ele, o primeiro chamava-se príncipe. O segundo, por vezes, foi o papa. O terceiro, o povo. As relações entabuladas nos dias atuais são reflexos da sociedade em que vivemos e não deveríamos ignorá-las. Podemos – e devemos – passar por uma consciente introspecção e reavaliar nossos comportamentos e atitudes. É preciso redefinir valores e colocá-los em prática para fortalecermos vínculos que qualifiquem atitudes e edifiquem vivências.

sexta-feira, 6 de outubro de 2017

DIVERSIDADE E INTOLERÂNCIA



No âmbito internacional, as diferenças religiosas têm exacerbado o preconceito, sobretudo, em relação aos povos muçulmanos, induzindo a pensar que todo adepto da religião islâmica, no fundo, é responsável por ataques terroristas causados por uma minoria radical sem nenhum princípio ético ou humanitário. A intolerância religiosa, a despeito de muitas incompreensões, foi o pano de fundo para quase todos os conflitos armados que ocorreram no século 20.


Historicamente, o Brasil nunca esteve distante deste processo de radicalização em termos de intolerância religiosa. No momento em que o fascismo aterrorizava a Europa, movimentos integralistas ganhavam força em diversos estados da federação. Poucos lembram que as manifestações do candomblé, da umbanda e até mesmo da capoeira, enquanto expressão do patrimônio étnico dos descendentes de escravos, com seus batuques e cantigas, até pouco tempo atrás, eram proibidos no Brasil.


Nosso país é dos locais que apresenta a maior diversidade de credos no planeta. Abriga diferentes comunidades religiosas e culturais. É considerada a maior nação espírita e católica do mundo. Uma nação aparentemente “pacífica”. Constitucionalmente laica e sem uma religião oficial. Somos um país que, pelo menos no âmbito formal, garante a seus cidadãos e cidadãs a liberdade de crença e de expressão.


Convém salientar, no entanto, contraditoriamente, que com a diversidade religiosa há também um agravamento da intolerância e do racismo. São inúmeros os relatos de destruição de imagens de orixás ou santos católicos. Trajar roupas brancas como nos rituais ancestrais, mais do que uma reverência simbólica de quem segue a religiosidade de matriz africana, é visto em certos ambientes, como ofensa. Não são poucos os espaços em programas de televisão que tratam abertamente estas religiões como satânicas e alinhadas com o mal.


São cada vez mais frequentes os casos de queima de terreiros e os relatos de mães de santo e seguidores, sofrendo agressões. É comum, igualmente, a depredação de imagens em capelas católicas, sobretudo, as localizadas em áreas mais isoladas. Infelizmente o poder público, a quem caberia discernir acerca da liberdade de culto, na maioria das vezes, tem sido omisso. Muitos casos nem sequer chegam ao conhecimento dos órgãos competentes. A intolerância religiosa é crime e fere a liberdade e a dignidade humana. Nosso país, que abriga uma das maiores diversidades religiosas do mundo, não deveria isentar-se em seu papel na busca de uma cultura de paz.