sábado, 21 de setembro de 2019

20 de Setembro

Conta-se que, no passado, grandes homens consolidaram as bases do Brasil com a força das suas mãos, com a energia dos seus ideais e com o sangue que aceitaram verter em nome do futuro. Esses homens, em dado momento, saíram da história para se transformar em mitos. Hoje, figuram em livros ou em nomes de ruas. Quem foram eles? O que fizeram? Conhecer a história é também produzir um imaginário. Um modo de desvelar o mundo, de descobrir e de tecer novamente os acontecimentos. A história nunca para de ser feita, escrita, inventada.

Toda cultura expressa reconhecimentos e cria realidades. Quando perde a dimensão de representação da complexidade humana e se converte em civismo, tende a ser uma força alienante. A população do Rio Grande do Sul, afinal, sabe o que se comemora no dia 20 de setembro? A data suscita o culto a um imaginário perdido no tempo. Receio que a maioria da população não tenha uma ideia muito clara acerca daquilo que aconteceu no passado. A visão que predomina no conjunto da sociedade é a elaboração feita pelo tradicionalismo, convertida em civismo. Qual o significado e os dilemas desta minha afirmação?

O Rio Grande do Sul, na pretensão tradicionalista, foi transformado em uma espécie de país, como se todos que aqui viviam tivessem o interesse de combater o Império. Trata-se de uma visão equivocada, porque os farrapos eram a minoria da população. Eles jamais passaram de cinco ou seis mil pessoas, num contingente de quase 500 mil. Há, portanto, distorções nesta visão. A revolução foi um movimento dos ricos para os ricos. Dos poderosos para os poderosos. Liberdade para se ganhar dinheiro, igualdade na hora de se cobrar impostos e humanidade para quem mais tinha.

O povo do Rio Grande do Sul, na sua expressiva maioria, ficou ao lado do Império. A revolta era dos estancieiros e charqueadores. Não era, pois, uma reivindicação do conjunto da população. Era um protesto contra a taxação da terra e do charque. Simbolizava os interesses de uma classe proprietária e de pessoas que lidavam no mercado internacional do charque, pois durante todo o período colonial, por mais de três séculos, nunca havia sido cobrado o imposto da terra.

Por outro lado, nos primeiros anos da independência as oligarquias de muitos estados disputavam o poder com as elites das outras regiões do Brasil. Não por acaso foi também o período de outras revoltas pelo país afora, como, por exemplo, a cabanada, sabinada, balaiada, etc. O fato da maioria do Rio Grande do Sul ficar ao lado do Império, significava ser a favor de uma noção de brasilidade e não perder a identidade que a independência havia trazido. Foi por isso que a população, especialmente nas cidades, lutou ao lado do Império, e não ao lado dos farroupilhas.

É preciso descontruir o ideal de que o Rio Grande do Sul se levantou como um todo contra o Império. Trata-se de uma distorção histórica. Um mito inventado, em grande medida, para legitimar os ideais de criação de um novo país na carona daquilo que havia sido preconizado pela separação do Uruguai. Esta premissa de que houve um momento no passado onde um estado inteiro se levantou contra o império não tem consistência. Na verdade, a população mais pobre, além de ter parte de suas terras invadida e saqueada, em alguns casos, foi, inclusive, arregimentada a força.

O maior expoente da revolução, Bento Gonçalves, morreu rico. Deixou entre outros bens, mais de 50 escravos para seus herdeiros. A lenda criada tende a romantizar sua biografia retratando que ele tinha acabado a vida como o mais pobre dos homens. Outro elemento histórico é que em dez anos de guerra, teriam morrido por volta de 3000 pessoas, uma média de 300 por ano, menos de uma por dia. Durante a revolução praticou-se de tudo: estupros, degolas, saques, apropriação de terras alheias e sequestros.

Antônio Vicente da Fontoura, o encarregado de negociar a anistia com o Império, foi um dos que mais denunciou a corrupção neste período. Com o fim da revolução, as principais lideranças farrapas receberam anistia e polpudas indenizações do Império. Nunca houve um tratado de paz de Ponche Verde. Canabarro e Caxias não estiveram juntos às margens do rio Santa Maria para um aperto de mão e a assinatura de um documento de paz. Muitos farroupilhas acabaram ingressando no exército imperial.

Para além de possíveis incompreensões, gostaria de deixar claro que não sou contra e, inclusive, me alegro com os festejos gaúchos cultuando a bravura dos antepassados e a atividade do campo e a vida rural. Porém, é distorcida esta visão de se comemorar a Semana Farroupilha como um movimento libertador e vitorioso. Não é possível descortinar a história num presente alheio aos fatos.

terça-feira, 10 de setembro de 2019

CIÊNCIA E PESQUISA

É impossível não perceber a gravidade daquilo que estamos vivendo em relação a ciência e a pesquisa no Brasil. Não são apenas milhares de pesquisadores que ficarão sem bolsa - para muitos deles, a única fonte de renda - e de projetos sem continuidade. Não é apenas a quebra unilateral e arbitrária de milhares de contratos que tinham gerado expectativas e investimentos pessoais.

Isso já seria muito grave, mas há mais. Vamos abrir mão de vez da expectativa de sermos um país soberano e nos acomodar passivamente à posição de receptores de conhecimento produzido em outros lugares? Vamos aceitar o aniquilamento da nossa inteligência? Vamos ficar como espectadores do avanço científico e tecnológico? Vamos negar a nós mesmos a possibilidade de construir um projeto de nação? Vamos abraçar de vez o atraso?

A destruição da pós-graduação e da pesquisa terá um efeito cascata nos outros níveis de ensino, fazendo decair ainda mais a qualidade da educação oferecida no Brasil. Trata-se de antever um país de trabalhadores com uma formação cada vez mais precária. Há, por óbvio, uma parcela da população que acredita em teorias estapafúrdias e que, por isso mesmo, entende o conhecimento como uma forma de perversão. Alardeiam bobagens descrevendo as universidades como antros de drogados, da promiscuidade e da bandalheira política e ideológica.

A defesa da pesquisa científica e da pós-graduação no Brasil não deixa de ser um teste para ver de que lado as pessoas se encontram nos dias atuais. Que pactua com os retrocessos e prefere dar voz a certos preceitos destituídos de um mínimo de bom senso talvez nunca consiga perceber que a educação é a única alternativa para construirmos um país melhor. Nossa tarefa é apontar a gravidade do que está acontecendo, esclarecer as implicações e estabelecer as condições de uma ação ampla e efetiva.

Os dados mostram mais de 21 mil novos trabalhos acadêmicos de pesquisadores do Brasil desenvolvidos com verba do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) somente no ano de 2017. Isso representa um terço de toda a ciência do país. Para se ter uma ideia, são quase 60 novos trabalhos por dia. Em um deles, por exemplo, os pesquisadores brasileiros exploraram a aplicação de células-tronco em doenças cardíacas - a principal causa de morte no Brasil. Apenas em 2017, houve 51 novos estudos sobre o zika vírus com financiamento do CNPq. Praticamente uma nova descoberta sobre a doença por semana.

A verba destinada para as pesquisas, entrementes, vem sendo usada para comprar insumos e equipamentos de laboratório na medida em que muitas de nossas Universidades, por conta dos sucessivos cortes, não consegue disponibilizar os meios adequados ao fomento dos projetos. O CNPq também paga diretamente bolsas de pesquisa a pós-graduandos –uma espécie de salário para que cientistas em formação se dediquem exclusivamente a suas pesquisas. Um bolsista de doutorado recebe R$ 2.200 e um de mestrado R$ 1.400 mensais. O valor não é reajustado há mais de seis anos.

Alega-se que o CNPq não terá mais recursos para pagar os cerca de 85 mil bolsistas financiados pela agência. Antes disso, o órgão já havia congelado as bolsas "especiais", voltadas para cientistas com alto nível de produção acadêmica. É o caso de quem está realizando estudos de pós doutorado. O aporte à realização de congressos, seminários, simpósios e eventos científicos também foi suspenso.

Além da paralisação de pesquisas essenciais para o desenvolvimento do país, o possível corte de bolsas pode levar à fuga de capital humano. Trata-se da perda de pós-graduandos e de cientistas já formados no país, inclusive com dinheiro público, que buscarão recursos para fazer ciência em instituições estrangeiras. Criado com pompa e ligado diretamente à presidência da república, em 1951, o CNPq tem sofrido cortes imensos nos últimos anos. Hoje, o orçamento do órgão é a metade daquilo que representava no ano de 2012.

Os cortes de bolsas e de investimentos na pesquisa apontam para um país mais desigual, mais dependente e mais submisso. Afinal, na pesquisa científica não se aperta a tecla "pause" para depois retomar de onde parou. É necessário continuidade. Os sucessivos cortes nos farão recuar décadas. Podemos perder gerações.

Não é difícil entender este quadro. No entanto, o déficit cognitivo atual é tão gritante que vamos aceitando que as pessoas não sejam capazes de se dar conta desta realidade. Os cortes se transmutam em dramas pessoais. São milhares de projetos de vida cortados em plena jornada. São pessoas que fizeram escolhas, que deixaram de aceitar outras oportunidades porque se sentiram vocacionadas para a ciência, que investiram anos e anos de suas vidas - e agora são jogadas no vazio.

Gente que abandonou emprego. Gente que recusou emprego. Gente que mudou de cidade e não tem como se manter. E o que faz o ministro da Educação? Exibe sua total insensibilidade. Quanto tem chance, debocha. É pior do que ser iletrado. É pior do que ser desinformado. É pior do que ser reacionário. É pior do que ser obscurantista. Se fosse só isso, estaríamos muito mal. Estamos pior. Ele é perverso!