sexta-feira, 25 de novembro de 2016

OS PRECEITOS DA UTOPIA



Não tenho dúvidas. Diante daquilo que tenho lido, visto e ouvido, resta-me a inabalável percepção de que o mundo sempre esteve dividido entre pessoas que só pensam em si mesmas e aquelas que se preocupam e buscam meios para minimizar as desgraças dos outros. Vivemos um tempo no qual a pretensa falta de informações ou as informações deturpadas impedem a divulgação dos melhores valores para uma sociedade justa e fraterna. Trata-se, portanto, de uma questão ideológica. Em minha consciência crítica, não pretendo cair no maniqueísmo, e, por isso, digo que esta é uma luta da solidariedade contra o egoísmo.

Acredito que o mundo já tenha sido muito pior, mesmo que para alguns o saudosismo venha como palavra de reverência diante das desventuras do cotidiano. Basta uma espiada nos percursos da história para percebermos que a guerra foi uma constante na dominação de territórios na antiguidade, sendo escravizados os vencidos, quando não exterminados; a servidão foi o alicerce para a economia na idade das trevas; as invasões de outros continentes redundaram em genocídios de milhões de indivíduos. Por conta do racismo e da ganância, erguemos muros e demarcamos fronteiras.

É preciso acreditar na esperança. Agarrar-se na utopia e vislumbrar horizontes que não estejam amarrados à truculência. Esforçar-se para que, ao menos, todos tenham as mesmas oportunidades. Que os filhos da empregada doméstica tenham as mesmas oportunidades que os filhos do empresário bem sucedido. Cabe a todos e todas, vencer este trágico determinismo de uma sociedade profundamente injusta e indiferente à dor dos outros. Que já se acostumou a ser negligente quando uma criança morre nos braços da mãe em razão de falta de recursos para o seu tratamento médico, enquanto outros jogam “dinheiro pelo ralo” sem qualquer melindre ético ou moral.

A história nos mostra as múltiplas facetas da opressão, exploração e dominação. Quem possui as prerrogativas do poder econômico, por consequência, também consegue a maioria dos instrumentos de coerção e persuasão. Poucas vezes, quem sofre na carne as injustiças, possui o discernimento crítico para entender as artimanhas e o jogo do poder. Vive-se uma ilusão e acredita-se em qualquer coisa. Talvez a grande tragédia seja justamente a de não perceber que caminhamos a passos largos para consolidar uma sociedade que, a cada dia, subverte a solidariedade, esquece a compaixão e desdenha da igualdade. Achamos “normal” a competição, a concorrência, o individualismo, o egoísmo e a indiferença com a dor alheia. Aplausos para o triunfo dos mais astutos ou espertos.

Antes que alguém ouse “rotular” estas minhas ponderações, digo que elas não estão alinhadas com determinadas ideologias políticas ou partidárias, em particular. São, antes, afirmações de quem não se conforma com a tragédia humana em uma sociedade que relega, por exemplo, crianças a procurar comida no lixo e mães que não tem outra escolha que não seja a de assistir, passivas, seus filhos e filhas morrendo por não poder tratá-los quando enfermos. Não consigo aceitar, em nome dos valores que sempre ousei defender, que a miséria não cause mais indignação e revolta do que a subtração de privilégios.

Aceitar que esta seja a nossa realidade sem que possamos modifica-la é, por demais, doloroso. É preciso resistir e não dobrar-se a tantos absurdos. É indispensável recuperar alguns valores para orientar os caminhos tortuosos do presente e inspirar as futuras gerações. Continuo acreditando, mesmo que às vezes o desânimo seja perverso e a luta inglória, que uma nova sociedade, um novo tempo e uma nova consciência, são princípios inalienáveis. Afinal, como preconizou Eduardo Galeano: a utopia é como o horizonte, está sempre distante, mas é o que nos faz caminhar.

sexta-feira, 18 de novembro de 2016

A EMERGÊNCIA DO FASCISMO NOS DIAS ATUAIS



O fascismo vem se multiplicando de forma exponencial, sobretudo, nas redes sociais. Transformou-se em algo quase trivial. Assumiu novas roupagens para dissimular velhas posturas. Sempre se apresenta como homem de bem, representante da moral, dos bons costumes e dos verdadeiros valores cristãos e familiares. Prega ideias simples que seduzem aqueles que costumam aderir ao senso comum. Violência se combate com mais violência. Bandido bom é bandido morto. Julgamentos nada mais são do que perda de tempo. Melhor mesmo é o olho por olho, dente por dente. Afinal, se a lei não é capaz de coibir a desfaçatez da corrupção, da malandragem e dos crimes, por qual motivo pessoas “de bem” deveriam supor respeito aos princípios normativos e constitucionais?

Esta exacerbada negação do outro, na verdade, pode ser um caminho para conquistar um lugar ao sol. Em tempos onde os princípios e as competências jurisdicionais encontram-se desfigurados, o fascista é aquele que ousa consolidar e definir “verdades” através de uma lógica particular. Não há um compromisso com enunciados históricos e nem com os horrores que a humanidade já viveu. Preconceitos raciais, sexuais, de gênero, classe, no nível cotidiano, concreto ou virtual, são vistos como ideologias fantasiosas. Não são raras as explosões de ódio que causam espanto a quem olha o mundo e a sociedade em termos minimamente democráticos.
Guardados na intimidade, preconceitos são sementes do fascismo em potencial. A prova de que proliferam no cotidiano é esta desmensurada inépcia para o diálogo. A dificuldade com a opinião contrária. A desqualificação pessoal e moral. As ilações. As expressões verbais intempestivas. O gestual e as atitudes violentas. Humilho, logo existo! É uma espécie de teoria do cotidiano que planifica atitudes, pretensamente éticas, mas muito distantes da equidade, da paz, do entendimento e da justiça. A gritaria, o xingamento e a falta de respeito não se expressam apenas em palavras e frases aleatórias, mas em notícias e discursos dos mais diversos.

Em termos simples, é preciso compreender que há uma vantagem pessoal no ato de negar o outro e de expressar essa negação com palavras e atitudes. Incapaz de supor a existência da “alteridade”, o fascista persegue um modo de ser. A sua ação é resultado desta profunda miséria subjetiva de nossa época. O fascista é um atributo para quem vive o vazio do pensamento, dos afetos e das próprias ações. Ele imagina ser “alguém” por meio da transformação do outro em “ninguém”. A humilhação produzida talvez esconda a humilhação vivida.

A infâmia verbal é fácil e está disponível em qualquer lugar, mas de forma mais efetiva, nas redes sociais. O discurso preconceituoso permite hoje em dia, além de tudo, conquistar fãs, dirigir mentalidades, determinar comportamentos. O fascista é também uma espécie de portador de uma realidade que, em vez de pregar o amor, vende, sem meias palavras, o ódio. Concretiza uma inversão de paradigmas. Ao contrário da vergonha – que seria inevitável caso pudesse perceber a si mesmo naquilo que defende – ele se orgulha do que diz.

Da arrogância em ser “bem macho” passando pela noção de que minorias anseiam por “privilégios” até uma perspectiva de “fazer-se de vítima enquanto é algoz”. Trata-se da mesma lógica. Impotente para a compreensão do outro, para perguntar, para mudar de ideia, para entender os percursos da história do mundo, resta sentir-se sempre cheio de razão. O fascista é detentor de todas as verdades possíveis. Nada do que se diga, mostre ou indique será capaz de mudar a sua maneira de ver o mundo. É uma espécie de “cegueira” não apenas relativa ao saber sobre as coisas, mas relativa ao outro que sempre serve de espelho negativo.

O fascista não gosta dos “formalismos” da lei. Prefere os atalhos e não se constrange em atropelar as regras que norteiam a convivência humana. Sonha com a volta de regimes totalitários. Aspira que os poderes coercitivos “baixem o porrete”. Acha um desperdício gastar dinheiro com quem legisla. Para que congresso nacional? Para que eleições? Para que manifestações ou movimentos que questionem atitudes do executivo? O fascista detesta a tal liberdade de expressão. Para ele, neutralidade jornalística acontece quando a opinião do jornalista coincide com a sua. Isento é quem defende o seu lado.

O fascista retrata um mundo sem que nele existam situações que mostrem a vida na sua diversidade. Não há espaço para um imaginário para além de algumas frágeis “verdades”. O fascista padroniza, uniformiza e elimina as diferenças. A principal característica deste modo de ver o mundo é a naturalização conformista da cultura: “sempre foi assim, assim é que dever ser, é assim desde que o mundo é mundo”. Quem pensa diferente ou é doente ou precisa “ser colocado no seu devido lugar”. O problema do fascismo é que vivemos em uma sociedade complexa, multicultural, aberta, baseada num suposto equilíbrio das diferenças. Uma das maiores tristezas é constatar que o fascismo odeia o diálogo, subverte a noção de mundo e aniquila a pluralidade.

sexta-feira, 11 de novembro de 2016

RESQUÍCIOS




Tenho me esforçado para não deixar a vida encalhar no pântano do cinismo. Quero que meu riso seja espontâneo, minhas lágrimas honestas e minha alegria não fingida.


Contemplo a vida e reconheço-a cheia de ambiguidades. Trama recheada de sofrimentos. Árdua tarefa permeada de encantos e desencantos. Angústias e contingências amargas.


Vivo o esforço de armazenar em algum quadrante da alma, momentos e pessoas insubstituíveis. Colorir fotografias amareladas. Colecionar saudades.


Desejo anular o fluir impiedoso da ampulheta que retrata o tempo fugaz. O passado com seus estranhos lampejos. O presente que se dilui em segundos. O futuro sempre incerto.


Desvendo a própria humanidade sem indiferença ou arrogância. Diante das circunstâncias, não quero ser absorvido pela necessidade de mostrar coragem e heroísmo insanos.


Reconheço a inutilidade do status e do reconhecimento. Afasto-me das desilusões. Jamais esqueço que a morte haverá de chegar para grandes e pequenos sem levar em conta projetos, poder, glória ou riqueza.


Mantenho os traços de minha coragem diante do despropósito de almejar bandeiras messiânicas. Descubro que a vida é frágil. Percebo que não se pode ganhar o mundo deixando a alma pelo caminho.


Lembro que toda a firmeza pode ser instável e que nenhuma escolha oferece garantia de um porvir inabalável. Sei que decisões se multiplicam num emaranhado de consequências imprevisíveis.


Percebo que nenhum credo, religião ou ideologia é capaz de garantir uma existência sem percalços. Que o maior desafio da existência sempre será fugir da tentação de evitar riscos.


Aprendi que o mais importante nesta vida são os afetos, o carinho, a lealdade e o sorriso franco. Que o que é único pode durar o tempo necessário para ser inesquecível. Que o coração tem razões que a razão desconhece.


Intuo que a saudade é o preço que se paga por viver momentos especiais. Ela existe não por que estamos longe, mas por que, em algum momento, já estivemos perto.


Desconfio que não sejam as coisas bonitas que mais marcam a nossa vida, mas sim as pessoas que tem o dom de jamais serem esquecidas. E que chorar é dizer em lágrimas tudo aquilo que o coração não é capaz de transformar em palavras.


Constato que caminho, inexoravelmente, em direção ao crepúsculo da existência. Por isso, acalento o desejo de fazer desta vida um percurso que não seja encadeado tão somente pela banalidade, superficialidade e pequenez.


Busco negar as futilidades que fazem a vida entorpecer. Não desperdiçar um segundo que seja para correr em busca de aceitação. Reaprender a chorar diante da tragédia humana capaz de renegar a história de encontros e afagos.


Batalho para que o ativismo não tenha a última palavra. Esforço-me em ouvir o coração. Acolher os afetos. Acordar para o próximo. Abraçar.

sexta-feira, 4 de novembro de 2016

OTIMISMO OU PESSIMISMO?



No ano de 1940, o filósofo, sociólogo, tradutor, ensaísta e crítico literário, Walter Benjamin, sublinhava que as revoluções seriam as locomotivas da história. O mundo, a despeito de qualquer prognóstico, de fato, tem passado por muitas mudanças. Na atual conjuntura não é preciso muita perspicácia para compreender as facetas que multiplicam palavras e gestos recheados de obscurantismo nos mais diferentes níveis da convivência humana.

Vivemos um tempo onde opinião construída com esmero e lealdade virou tolice. Aquele que se atreve a levantar a bandeira do diálogo é visto com menosprezo. Qualquer questionamento é, com facilidade, rotulado por conta de bandeiras ideológicas mesquinhas que desconsideram qualquer perspectiva histórica. A esmagadora maioria das pessoas não percebe a gravidade do autoritarismo que vai sendo maquiado pelos sorrisos caricatos e pela truculência das atitudes. Achamos que tudo é questão de “opinião”, mesmo que seja, essencialmente, um regime de pensamento que desconsidera o “outro”.

A cada dia são inúmeros os exemplos que, em sentido amplo, se tornam “verdades” que vão subjugando a ciência, a cultura e o senso comum. O autoritarismo poderia ser superado por aquilo que conhecemos como pensamento democrático. Não um pensamento sobre a democracia, mas um pensamento que oportunizasse horizontes de reciprocidade. Um pensamento no qual a diversidade pudesse ser vista como virtude e não como problema. Um pensamento que não se ocupasse apenas em desmerecer o outro. Um pensamento que não quisesse tanto “demonizar” o outro através da prepotência, do poder, da força. Um pensamento que motivasse para o pleno exercício da partilha e do entendimento fraterno.

Falta-nos muita coerência e discernimento. Em meio a tantos absurdos e exemplos esdrúxulos que não cessam de aparecer, é tarefa das mais indigestas entender como em nome da democracia, por causa da democracia e de uma pretensa defesa da democracia, haja milhões de pessoas querendo destruir justamente a democracia? Vive-se uma lógica paranoica que suscita a descrença e a incapacidade para separar “o joio do trigo”. Em nome do bem é possível justificar o mal. Por conta de uma suposta austeridade, não há problemas em aniquilar biografias. Para alcançar determinados fins, valem os meios que estiverem à mão.

A continuarmos andando nesta direção, a desconfiança que predomina haverá de continuar, persistir e até aumentar. A despolitização provocada pelos limites ideológicos, cada vez mais tênues deveriam consolidar caminhos para além das regras do mercado. É preciso entender que o mercado preconiza a geração de riquezas materiais, mas a política deveria fixar as regras para uma convivência, minimamente, harmoniosa. Sem isso, a injustiça torna-se insuportável.

A filósofa Hannah Arendt dizia que a banalidade do mal se instala na ausência de um pensamento crítico. Todavia, nesta sanha insana mediada por valores obscuros, uma avaliação em sentido metafísico como a anunciada pelo célebre pensador germânico, Martin Heidegger, é ilustrativa e exemplar. É através dela que somos desafiados a perceber com mais perspicácia os dilemas que abarcam nossa frágil existência a ponto de propormos caminhos que nos levem a veredas mais sensatas.

“Quando a tecnologia e o dinheiro tiverem conquistado o mundo; quando qualquer acontecimento em qualquer lugar e a qualquer tempo se tiver tornado acessível com rapidez; quando se puder assistir em tempo real a um atentado no ocidente e a um concerto sinfônico no oriente; quando tempo significar apenas rapidez; quando o tempo, como história houver desaparecido da existência de todos os povos, quando um esportista ou artista de mercado valer como grande homem de um povo; quando as cifras em milhões significarem triunfo, – então, justamente então — reviverão como fantasma as perguntas: para quê? Para onde? E agora? A decadência dos povos já terá ido tão longe, que quase não terão mais força de espírito para ver e avaliar a decadência simplesmente como… Decadência. Essa constatação nada tem a ver com pessimismo, nem tampouco, com otimismo… O obscurecimento do mundo, a destruição da terra, a massificação do homem, a suspeita odiosa contra tudo que é criador e livre, já atingiu tais dimensões, que categorias tão pueris, como pessimismo e otimismo, já haverão de se ter tornado ridículas”.