sexta-feira, 27 de maio de 2016

COVARDIA E INDIFERENÇA



Fico a me perguntar sobre as atitudes dos mensageiros da intolerância, os discípulos do olho por olho, dente por dente. Os embaixadores da moral e da tão desejada ética. O que haveriam de dizer acerca de um homem que manifestou seu amor por um ladrão e lhe prometeu o paraíso? Repercutiriam o velho discurso que bandido bom é bandido morto? Quem sabe, repetiriam a admoestação de que a sociedade necessita de um novo Messias?

Tenho para mim que uma boa parcela dos brasileiros e brasileiras assim como os ilustrados moralistas da violência, aqueles que defendem com unhas e dentes a pena de morte e também que se amarrem adolescentes em postes para linchá-los até caírem desmaiados ou sem vida, integram comunidades religiosas, oram, louvam e acreditam que o Filho de Deus, Jesus Cristo, é o exemplo a ser seguido pela humanidade.

Esquecem, no entanto, que Jesus escolheu os oprimidos e renegados. Os miseráveis, leprosos, prostitutas, bandidos. Solidarizou-se com a escória da sociedade. Contestou a ordem vigente. O homem de Nazaré foi um dos primeiros inspiradores e defensores dos direitos humanos e do diálogo. Foi perseguido, castigado e morto pelo Império Romano para servir de exemplo. Da mesma forma como se pretende que sirvam de exemplos os jovens que são amarrados em postes e espancados, na ilusão de que a violência se resolve com violência. Todos são conhecedores da mensagem cristã, mas preferimos a prática romana. Somos implacáveis e impetuosos.

Qual seria o lugar de Jesus nesta nossa Jerusalém carregada de preconceito, intolerância, covardia e desejo de resolver as diferenças pela força e não pelo diálogo? É bem provável que Jesus seria hostilizado, difamado, depreciado. É possível que não sobrevivesse. Afinal de contas, é sempre um risco imenso defender a tolerância, o amor ao próximo e o perdão, quando o ódio é tão desproporcional.

Sua história e seu exemplo demostram que Ele não estaria com as centenas de fariseus que aplaudem a violência sem se darem conta de que este é um problema social crônico e intrínseco às desarmonias políticas, sociais e econômicas do mundo neoliberal. Ele não estaria com aqueles e aquelas que fazem negócios dentro das Igrejas prometendo prosperidade e vida sem percalços. Ele não estaria com políticos inescrupulosos que, em nome Dele, escondem a podridão de suas atitudes.

É uma pena que a sua mensagem não desperte em nós a consciência profética para não fechar olhos e ouvidos neste nosso imenso Brasil onde, por exemplo, mais de 4 mil mulheres são espancadas todos os dias; onde a metade dos índios mortos são crianças; onde 70% dos mais de 30 mil jovens, entre 15 e 29 anos, mortos em 2015, eram negros.

Uma pena que a mensagem de Cristo seja cada vez mais uma incidência circunstancial e não reprise tantas demandas éticas nas ações cotidianas. Uma pena que a redução da maioridade penal tenha virado a solução em tempos de corrupção desenfreada e falta de vergonha na cara. Uma pena que nossos presídios mais se parecem com “centros de amnésia” da nossa desumanidade. Uma lastima que nosso Congresso Nacional seja o local de uma bancada, denominada evangélica, composta pelos parlamentares mais corruptos do país.

Se Cristo voltasse é certo que não concordaria que homossexuais fossem discriminados, mulheres violentadas, índios assassinados, negros linchados em praça pública. Jamais haveria de concordar que o ódio, a intolerância e a mentira fossem usados, deliberadamente, como artimanhas para alcançar o poder. Seu lugar seria com os favelados, carentes de humanidade, sem vez e voz. 

Diante de tanta covardia e indiferença com a dor alheia. Diante de tantos que julgam sem conhecer, interpretam sem preocupar-se com a verdade, emitem juízos carregados de preconceito e cegueira, ainda espero que as ideias e a história de Jesus nascido na pequena Nazaré, sirvam, pelo menos, para induzir à reflexão. Se em nossos dias amar tem sido um ato de coragem, convém deixar o ódio para os covardes e indiferentes.

sexta-feira, 20 de maio de 2016

Lições para a Eternidade


Sempre procurei compreender o passado como lição edificante para a vida. Sem mágoa ou rancor. Levando em conta possíveis erros e acertos, mas, sobretudo, preservando aquilo que tinha sido bom e bonito. Guardando na memória e no coração, aqueles e aquelas que me permitiram o privilégio de sua palavra, seu abraço, seu tempo e carinho. Mesmo assim, existem lembranças difíceis que, insistentemente, pesam em minha alma. Percebo que sou marcado pela dor daquilo que nunca mais haverá de voltar. 

Tem dias em que as palavras não se completam. As frases insistem em não acabar. A melancolia vai se embrenhando em nosso ser. Caminhamos em direção ao porvir, sem levar em conta que o tempo, sim, o tempo, inclemente, nos aprisiona, fazendo esquecer toda a fragilidade e finitude humana.

Tem dias em que reconhecemos com mais nitidez a própria insignificância. Notamos que a valentia se mostrou inútil. Mesmo com todo o esforço, o mundo continuou em alguma direção, por vezes, imperceptível aos nossos sentidos. Vemos que as lágrimas foram desnecessárias e nossas inúmeras palavras, vãs. Sobreviver era preciso. Obedecemos ao imperativo de seguir adiante sem atinar os motivos em sermos resilientes.

Quantas coreografias demoníacas já afastaram daquilo que está na nossa essência? Na busca por enfrentar a condição efêmera e passageira, ansiamos em poder deixar de lado a alienação. Admitir as angústias como parte da condição humana pode tornar-se o meio para nos resgatar da mesmice. Angústia tem força de ensinar o valor do instante que vem, passa e desaparece. 

Introspecção – nunca solidão – pode converter teimosia em virtude. Conscientes da inexorabilidade da dor e do sofrimento, atinamos: a vida se dá no espaço que separa impotência de onipotência. Nesse percurso, reconhecemo-nos humanos, não divinos. Abandonamos possíveis fingimentos arrogantes e supostas certezas acabadas.

Só há alguma chance de escapar de dias assim, lembrando o que nos permitiu partilhar e sentir afeto, carinho, cuidado. Talvez, recordando o rosto meigo, que nos elegeu únicos. Quem sabe, restaurando na memória a mão que nos segurou quando estávamos diante de alguma queda. A palavra que trouxe alento. O olhar que inspirou coragem. É possível trazer à lembrança reminiscências que transformam melancolia em saudade e tristeza em poesia.

Jorge Luís Borges, depois de pensar sobre o tempo e a eternidade, sabiamente, concluiu: A vida é pobre demais para não ser também imortal.  De tão frágil, a existência é, ao mesmo tempo, fugaz e eterna. O tempo não cessa de desintegrar tudo com a mesma força que reconstrói. Morre-se a despeito de qualquer renascimento, e em cada morte se vislumbra novos caminhos.

Os acontecimentos se cristalizam no pretérito. Dos eventos sobram as pegadas. As estradas percorridas se alongam mais do que as que ainda esperam ser trilhadas. A identidade de indivíduos depende deles se reconhecerem na frente de um espelho. Caso não consigam pronunciar o nome de quem está na sua memória, perdem as coordenadas da história. Sem os vestígios do passado, pessoas se condenam a perambular, errantes, em direção a algum futuro insípido. E para sempre, perpetuamente, acreditarão serem o que nunca foram. A memória salva da loucura.

O tempo tudo destrói. A poeira da história, tangida pelo fluir inevitável do tempo, cobre tudo. Depois de séculos, impérios outrora avassaladores, agora suscitam o tédio em ambientes universitários. Exércitos desapareceram. Templos magníficos hoje não passam de escombros. Livros importantes jazem nas bibliotecas. Nós também passaremos.

Viver é aliar virtude à coragem. Se não há como evitar a lastima que nos distancia daqueles que amamos, convém ter braços longos para as despedidas. A angústia da saudade ensina o que há de mais elevado, sublime, triste e doído. Aprende-se a amar o crepúsculo, enamorar-se da lua e casar com a noite. Há dor no findar do dia, lágrima pela madrugada e aflição na alvorada.

Quem deseja subir um degrau na existência, precisa descer dois. Humildade, ao contrário de piedade, significa ter a capacidade de perceber as sombras com a mesma sensibilidade que a luz. Perfeição não aparece nas simetrias extraordinárias. Perfeição se esconde nas trivialidades e só pede um olhar simples.

Não basta destacar as folhas no calendário. Copular, jogar conversa fora, cumprir tarefas. Reclamar do temporal não significa viver. Só vivemos uma vez. Com algum cuidado, uma vez será o suficiente.

sexta-feira, 13 de maio de 2016

OS ABISMOS DA ALMA




A realidade da vida pode ser perversa. O futuro a desafiar nossas inconstâncias e o passado a reivindicar lembranças de um período distante dos olhos, mas perto do coração. Poucos haverão de conseguir dominar as variáveis da existência humana que se desenrola entre dores e anseios com perspicácia e desenvoltura. Os acontecimentos, sejam eles agradáveis ou lúgubres, não estão condicionados a uma engrenagem que julgamos justa e precisa.

A noção aristotélica tomista de que a vida acontece num encadeamento de causas que produzem efeitos numa sucessão infinita, pode não passar de um fatalismo circunstancial. Nossa existência não se arrasta em simetrias. Talvez por isso, parecemos desorientados ao não conseguir controlar os dilemas gerados pela própria história. A vida se dá com um grau de liberdade que possibilita, inclusive, decisões equivocadas. Alegrias e frustrações ocorrem nos espaços da imprevisibilidade.

Viver não consiste tão somente no esforço pragmático em controlar as contingências da jornada. Somos desafiados a encontrar sentido a despeito daquilo que foge de nossa vã capacidade de persuasão. Somos marcados pelo imponderável. A vida vai se desenrolando pelas veredas que trilhamos. Algumas angustiantes, outras inevitáveis, mas todas marcadas pelo aprendizado. Ansiamos por encontrar luz, beleza e sentido no decorrer do caminho.

Viver é resistir ao improvável se alargando em nossos horizontes. É saber que existirão momentos nos quais colheremos o que semeamos, mas também, ocasiões em que a vida haverá de nos colocar diante de situações insólitas que nunca, nem em sonhos, imaginamos encontrar. É preciso remar movido pela teimosia e continuar sem levar em conta os ventos contrários. O porto seguro de nossos sonhos mais lindos pode estar perto e, o mesmo tempo, tão distante quanto o infinito. Viver é teimar.

Homens e mulheres lutam para convencer-se de que são comandantes da própria existência. Mas esta suposta onipotência não subtrai nossas limitações. Muitas vezes, por mais que tentemos não nos antecipamos a incidentes. Não conseguimos dar a grande guinada na vida que tanto idealizamos. Quase sempre nos vemos impotentes para contornar imprevistos: desastres, doenças, perdas. Basta um instante crucial e sonhos são adiados ou se perdem para sempre.

Todos são sabedores de que o passado tem a força de reviver os piores momentos da jornada. Confrontar sonhos que foram aniquilados e idealismos que não puderam subsistir. O fôlego que anima é temporário e perene. Toda a vida não passa de um sopro ligeiro em meio a um universo com as suas próprias regras. Somos parte de uma realidade sublinhada por dois sentimentos, a esperança e o medo. A imprevisibilidade que a esperança suscita, anima, mas o futuro indeterminado é capaz de amedrontar.

Medo de que projetos não sejam concretizados. Mas esperança e teimosia para, mesmo assim, continuar. Medo das distâncias, mas esperança que é revigorada nos abraços, no cuidado e no carinho. Medo da conformidade de que o tempo arraste para o nada todo o esforço empreendido, mas esperança de que o trabalho exercitado tenha fortalecido a justiça e a dignidade humana.

As mesmas dúvidas que atormentavam os filósofos clássicos, salmistas e poetas, ainda ecoam nos dias atuais. Mudaram os rótulos. Continuam as fobias do passado. O avanço da psicologia, da medicina e a multiplicidade de caminhos da espiritualidade não amenizam a perspectiva de que a vida é complexa. A força da angústia resiste a medicamentos e alquimias extravagantes.

Todos somos flâmulas oscilantes. Carregamos sombras na alma. O grande desafio da existência é abrir o coração e deixar que as réstias de luz iluminem nossas sombras. Não permitir que as trevas prosperem. Aprender a construir a própria história sem deixar-se destruir pela perversidade do mundo. Não há códigos suficientes que abarquem todas as nuanças da vida. Viver é amadurecer.

Aprendamos com um dos maiores juristas italianos, Norberto Bobbio, que ao completar 87 anos de idade, escreveu em sua autobiografia: Hoje alcancei a tranquila consciência. Tranquila, porém, infeliz, de ter chegado apenas aos pés da árvore do conhecimento. Não foi do meu trabalho que obtive as alegrias mais duradouras de minha vida, não obstante as honras, os prêmios, os reconhecimentos públicos que aceitei de bom grado, mas não ambicionei e tampouco exigi. Obtive-as dos meus relacionamentos, das pessoas que amei e que me amaram, de todos aqueles que sempre estiveram ao meu lado e agora me acompanham no último trecho da estrada

Quem deseja construir a sua jornada a partir de valores e verdades plenos de sentido precisa fugir da indiferença, rejeitar o ódio, abominar o rancor, desprezar a avareza e desdenhar da inveja. Vive uma vida com sentido quem personifica o afeto, semeia a verdade, promove a paz.