quarta-feira, 19 de agosto de 2020

SOBRE A IMBECILIDADE HUMANA Uma leitura de Ortega y Gasset

O filósofo, historiador e jornalista, José Ortega y Gasset, no início do século 20, relatou a sua angústia e tormento com a experiência de entrar em contato com a imbecilidade e, perplexo, se perguntava pelos motivos de não haver estudos sobre este fenômeno. Passados quase 100 anos, muito se escreveu sobre este comportamento humano. Talvez seja o momento oportuno de analisar a questão frente à realidade brasileira nestes dias sombrios. 

Para a maioria dos pesquisadores do comportamento humano, a imbecilidade seria consequência de um desenvolvimento anormal da psique. Isso, entrementes, condenaria o indivíduo a um eterno estado pueril na compreensão do seu papel no mundo. Os imbecis seriam, portanto, pessoas fáceis de serem sugestionadas. Acreditariam em coisas conforme a sua própria lógica de pensamento. Costumam se deixar levar por discursos descolados da realidade e imaginam conspirações. Não raro, suscitam delírios para além daquilo que os fatos evidenciam. 

Não é nova esta perspectiva de que a sociedade nada mais é do que uma comunhão de pessoas que se comprometem em viver juntas, buscando resultados e a partilha de suas vivências. Mas, como toda organização, é preciso existir uma certa reciprocidade e, principalmente, organização e liderança. Para o pensador espanhol, a civilização só chegou a um nível de desenvolvimento social, científico, econômico e industrial, porque foi liderada, na maioria das vezes, por personalidades que respeitaram o conhecimento histórico, que nada mais é do que a soma dos valores, princípios e saberes acumulados pelos seres humanos em sua trajetória. 

De acordo com Ortega y Gasset os imbecis sempre existiram. Sempre estiveram presentes no cotidiano das interações humanas, mas, em geral, não tinham um papel tão relevante na sociedade: eram desprezados. O que diferencia as pessoas, segundo o pensador, é o espírito reflexivo. Existiria uma categoria de homens e mulheres que se exigem muito e acumulam sobre si dificuldades, deveres e insegurança e, por extensão, começam a descortinar o mundo com curiosidade, pois o mundo é estranho e também maravilhoso para quem se atreve a contemplá-lo com os olhos abertos e as mentes não fechadas. 

Essa categoria de pessoas, na visão de Ortega Y Gasset, constitui um grupo em constante estado de alerta para os fenômenos da vida, da cultura, das artes, da ciência e do conhecimento. Todo aquele que se colocar diante da existência em uma atitude séria, e se fizer plenamente responsável por ela, sentirá certo tipo de insegurança que lhe incita a permanecer alerta. Não é por outra acaso que Albert Einstein, por exemplo, foi alguém que deixou registrado em suas memórias que o mistério da vida lhe causava a mais forte emoção. Um sentimento que suscitava a beleza das descobertas e da ciência. Para Einstein, se alguém não era capaz de conhecer esta sensação, ou não poderia mais experimentar espanto ou surpresa, já seria um morto-vivo, com os olhos absorvidos pela cegueira. 

Importa lembrar também dos enormes contingentes de pessoas que, embora herdeiros de um passado imenso, em inspiração e esforços, parecem nada ter aprendido. Qualquer lição ou experiência do passado não os compromete com os avanços da civilização, com o bem, a paz ou a justiça. Esta ausência de comprometimento com os valores, com certos ideais e com o próprio conhecimento histórico e científico, gerou um ser humano excêntrico. Alguém que olha para a sua incompletude, mas, não ousa buscar maiores explicações para aquilo que não conhece. É um indivíduo que, em geral, faz transparecer que sabe tudo, que opina sobre tudo e, pior, acredita ter razão em tudo. Ao contrário do ser humano que busca segurança nas lições do passado ou em outros indivíduos que deixaram as suas marcas como legado, o que se percebe nos dias atuais, é uma massa de gente com pensamentos imutáveis. São detentores de um repertório de ideias prontas. Se consideraram intelectualmente completos. 

Para o erudito pensador espanhol, durante a história da civilização ocidental, este tipo de atitude sempre esteve presente. O detalhe é que não havia uma inserção destas pessoas na condução da vida pública. Paulatinamente, no entanto, passaram a exercer maior protagonismo na sociedade. Um indivíduo não comprometido com o conhecimento científico, cultural e social, mas, paradoxalmente, seguro de possuir pleno capacidade para lidar com os temas que envolvam a sociedade. Alguém que, na maioria das vezes, almeja impor as suas verdades. Talvez esteja justamente nesta atitude o alicerce para um estado de violência, do uso desmedido da força, da intolerância e da inaptidão para construir caminhos por meio do diálogo. 

Albert Einstein dizia que a violência fascinava os seres moralmente mais fracos. Para ele, o ser humano livre, criador e sensível, seria capaz de modelar o belo e exaltar o sublime. Por sua vez, quem negava este princípio, infelizmente, continuaria a ser arrastado por uma dança infernal de imbecilidade e de embrutecimento. Aliás, esta correlação entre ignorância e violência é bastante antiga na história do mundo. A busca e a valorização do conhecimento; o respeito ao saber histórico; a constante evolução científica e o culto aos valores primordiais da solidariedade e do bem comum, são características que distanciam a sociedade do estado de guerra. Em resumo, trata-se, pois, de entender o papel do conhecimento e da educação. 

É desolador perceber que a imbecilidade parece ter eclodido em cada canto do Brasil nos últimos tempos. Rememorando as indagações de Ortega y Gasset, a mais de um século, pode-se afirmar, sem titubear, que o imbecil dos tempos atuais também não pensa, não avalia o mundo, suas transformações e faz pouco caso de alguma virtude artística, intelectual ou científica. O papel das redes sociais e da evolução dos meios de comunicação de massa, de notícias falsas e outros mecanismos firmados na desinformação tiveram um papel fundamental para chegarmos a esta situação lamentável. Não há dúvida de que o indivíduo dos nossos dias encontrou muitos meios para se conectar, formando agora uma massa de seres humanos que não hesita em cultuar a violência, a ignorância, o não saber histórico e científico, o desapego aos valores importantes da paz e do amor. 

Umberto Eco, outro notável pensador, soube antever este fenômeno no qual as redes sociais dariam o direito à fala a uma legião de indivíduos que, anteriormente, talvez ousassem articular suas asneiras só em algum boteco de esquina depois de entornar algumas cervejas, mas, mesmo assim, sem causar maiores danos à coletividade. Antes, esta meia dúzia ficava restrita a um pequeno círculo de abobalhados. Agora eles parecem ter os mesmos direitos à fala que um ganhador de Prêmio Nobel. O drama dos nosso dias é que a internet promoveu os idiotas a portadores de verdade universais. 

Ainda que sejam compartilhados como verdades e valores particulares, é preciso reconhecer que exercem, hoje, forte influência nos destinos das pessoas. Afinal, não é novidade que o conhecimento científico é diariamente desprezado. Há quem defenda, por exemplo, que a terra não é redonda; que recomenda não ser preciso vacinar crianças e idosos; que o isolamento social em tempos de Pandemia não tem efeitos no controle de contágio; que imagina, genericamente, tratamentos e medicações que não servem para a resolução dos problemas. Todos que, de alguma maneira, lidam com o mundo do conhecimento e a pesquisa devem estar refletindo nestes tempos sombrios sobre o que mesmo tem valido centenas de anos de pesquisa, estudos e dedicação na direção de uma maior evolução científica. 

No campo das relações sociais e da convivência, os imbecis de nossos dias já nem ousam mais esconder seus preconceitos, sobretudo, quando se trata de diferenças de identidade sexual, raça ou cor da pele. Se faz piada daquilo que não tem graça e se trata quem pensa diferente como inimigo. Pior, se despreza o sofrimento. Celebra-se o confronto, a morte e a desunião. É um modelo de sociedade que triunfa exaltando a violência, a ignorância e a desinformação. Não existe empatia ou compaixão com o sofrimento alheio. 

A violência cansa; a ciência sempre comprova a sua importância; as instituições democráticas, ainda que passiveis de muitas críticas, continuarão sendo a melhor expressão do bem comum. Não conseguiremos sair deste momento deplorável se o conhecimento não avançar e as lições do passado não forem assimiladas. Necessitamos, pois, de centelhas da lucidez impactando nesta nossa sociedade tão maltratada. Só com a nossa capacidade crítica, solidária e firmada na empatia que poderemos transformar a realidade de modo que as futuras gerações se inspirem em exemplos que valham a pena serem seguidos. 

Para mim, a constatação é inevitável Se Ortega y Gasset ainda estivesse vivo e presenciasse a realidade que estamos vivendo hoje, ele seria enfático: estamos sendo dirigidos por imbecis!