terça-feira, 30 de julho de 2019

Fundamentalismos e Perversidades

O fundamentalismo parte de uma afirmação absoluta a respeito de sua própria verdade e rejeita os argumentos discordantes, considerando-os falsos. No Brasil, a aliança de dois modelos fundamentalistas bagunçou as coisas: o fundamentalismo econômico e o fundamentalismo religioso. No primeiro, a existência humana gira em torno do dinheiro. A acumulação de riquezas é o principal argumento. Trata-se de uma verdade apoiada por uma ciência econômica como meio ou caminho. A economia como ciência se sobrepondo à política; o individualismo servindo como parâmetro. Segurança, saúde, educação, transformadas em ativos econômicos.

No segundo caso, o fundamentalismo religioso, constituído por uma mistura de moralismos (comportamentos) e meritocracias (prosperidade). Deus se submetendo às ambições humanas. Sendo usado como elemento do discurso político. A "bandeira" política é identificada como vontade de Deus. Decisões políticas são "obras do Senhor". A ação política, as instituições públicas e os governantes sendo guiados pelas verdades da religião. Os adversários são vistos como inimigos de Deus.

Não é raro ver gente invocando o nome de Deus para justificar determinadas “verdades”, sobretudo, quando estas se referem a usos e costumes. O repertório varia, mas, em geral, negros, indígenas, mulheres e homossexuais, passam a ser vistos em contraposição aos parâmetros bíblicos. Há quem, inclusive, em nome da própria fé não veja dilemas ou melindres em apoiar a tortura, a pena de morte e a violência. A Constituição e o Estado de Direito passam a ser constantemente ignorados.

Uma das primeiras regras de quem adere à retórica fundamentalista é demonizar quem não concorda com o seu ponto de vista. A aliança entre fundamentalismo econômico e fundamentalismo religioso vem reconfigurando as esferas do poder em nosso país. Os "escolhidos" tem uma missão recebida de Deus e do mercado. A religião e a economia se fundem. Representantes de igrejas são nomeados para funções estratégicas. Enquanto isso, a pobreza e o desemprego seguem alcançando milhões de familias. A perversidade parece ser o preço da ignorância.

quinta-feira, 11 de julho de 2019

Lavagem Cerebral

Fora do Brasil, poucos acreditam no que anda acontecendo por estas plagas. Tenho falado com gente que não é daqui e o sentimento é de perplexidade, consternação e até pena acerca do momento que vivemos. A imagem do povo cordial e afetuoso vai ficando de lado. Sobram questionamentos. Os brasileiros com um pouco mais de lucidez percebem que há algo de muito estranho acontecendo. Como nos tornamos o que somos?

Na Alemanha, por exemplo, foi o ódio aos judeus que encabeçou o ódio geral; no Brasil a coisa vem resvalando para o ódio às esquerdas, às lutas feministas, às universidades e aos professores, colocados sob o guarda-chuva de uma paranoia sem precedentes e qualificados como “comunistas”. Qualquer um que tenha um pouco de discernimento haverá de concordar que o fato de existirem pessoas que se guiem ética e politicamente pela utopia de um mundo sem tantas desigualdades nada tem a ver com “comunistas”. É um evidente exagero chamar de “comunista” qualquer pessoa simplesmente porque ela tenha um pensamento diferente ou por defender os direitos fundamentais. Isso tem muito a ver é com maldade ou burrice!

Não é tarefa das mais fáceis explicar o que temos vivenciado. Há uma espécie de “lavagem cerebral” em curso que justifica a violência, as catástrofes, à manipulação de crises que fazem com que as pessoas aceitem coisas que não aceitariam em sã consciência. Sejam objetos, sejam ideias estapafúrdias, tudo serve como chave que abre janelas emocionais em qualquer pessoa. A experiência da perturbação emocional nas massas é provocada. Você tem de estar muito protegido pela reflexão, o amor próprio e compreensão dos valores democráticos para não sucumbir a certos delírios.

A cultura e a educação tendem a dar algum sentido e explicação para as pessoas diante deste estado de coisas. Mas esta percepção vai sendo manipulada nos discursos estrategicamente concebidos, especialmente dentro das corporações televisivas e nas mídias sociais. A indústria cultural manipula o pavor e o êxtase, reduzindo os indivíduos a uma passibilidade diante de múltiplas desinformações. Nesse cenário, exercitar o discernimento e a lucidez parece ser uma tarefa bastante complexa.

O sociólogo e jurista português, Boaventura de Sousa Santos, um dos maiores pensadores do nosso tempo, sublinha que as guerras, catástrofes e crises, são cada vez mais necessárias ao capitalismo. A capacidade de produzir, acumular e circular valores a partir da desgraça e do infortúnio explica, em grande medida, o sucesso de um modelo que muitos acreditavam estar fadado a desaparecer a partir de suas contradições. O ato de destruir para, em seguida reconstruir, torna-se natural e, ao mesmo tempo, pode ser visto como fundamental à manutenção de uma estrutura em que até a dor e o sofrimento acabam se transformado em mercadorias.

Para compensar o caos social, produzido em razão da adoção de medidas impopulares, os detentores do poder econômico estimulam promessas e discursos que satisfazem um imaginário que projeta o retorno a um passado idealizado de segurança. A falta de limites entre política e religião, o abandono dos valores da modernidade como a “liberdade”, a “igualdade” e a “fraternidade”; os limites às garantias fundamentais em detrimento do Deus-Mercado.

Trata-se, no fundo, de um modelo de civilização no qual se imagina vender e comprar, quase tudo. Armas ao lado de bíblias, obras de religiosos “cristãos” que negam a escravidão, o holocausto, defendem a tortura e a violência ou de “intelectuais” que ainda contestam a heliografia e a teoria da relatividade. O trabalhador tornou-se, cada vez mais, dispensável. No entanto, uma das maiores mudanças deste tempo, fruto desta racionalidade que realça o ser humano como objeto sempre passível de lucro, foi transformar os sujeitos em indivíduos sem discernimento crítico mesmo com tantas informações e conhecimentos à disposição.

Há uma regressão que pode ser percebida nas interações sociais, na dificuldade de argumentação, na incapacidade de apreender e seguir normas éticas e jurídicas. Tem-se o declínio da verdade e o desaparecimento da objetividade. Os fatos, a ciência e a reflexão vão perdendo a importância. O pensamento é simplificado e a linguagem empobrecida. A capacidade de refletir acerca de sua própria condição, faz com que o indivíduo tenha possibilidades múltiplas para construir um mundo melhor em que os valores da liberdade, da igualdade e, principalmente, da fraternidade voltem a importar na sociedade.

A hipótese que sustento é bastante simples: para a manutenção daquilo que vivemos é necessário que as pessoas NÃO pensem ou então, pensem CADA VEZ MENOS. O empobrecimento da linguagem e a transformação de tudo e todos em objetos negociáveis são fenômenos que funcionam como elementos que naturalizam as injustiças. Permite que convivamos com a banalidade do mal em cada canto. Criou-se uma espécie de racionalidade que naturaliza o empobrecimento da linguagem e leva à crença de que a simplificação do pensamento é uma dádiva e não um problema. Dá a impressão que o egoísmo virou virtude e o conhecimento, bobagem.

sexta-feira, 5 de julho de 2019

O Fascismo Eterno

Semanas atrás tive o privilégio de ser presenteado por um amigo querido com um livro instigante e desafiador - O Fascismo Eterno - do consagrado escritor, filósofo e linguista italiano, Umberto Eco (1932-2016). Um dos mais importantes pensadores do nosso tempo. A obra em questão retrata uma palestra realizada na Universidade de Colúmbia, nos Estados Unidos, no ano de 1995.

Na conferência o autor busca situar historicamente os movimentos fascistas do século XX, precedidos pelo fascismo de Mussolini e propagados por toda a Europa e depois pelo Continente Americano. Eco atenta para as diferenças e as inúmeras contradições deste sistema. A centralidade da abordagem está na identificação de traços comuns encontrados em suas diferentes manifestações.

São, pelo menos, 14 características descritas com desenvoltura e rara perspicácia. Não deixa de ser impactante a possível afinidade destas facetas com aquilo que, direta ou indiretamente, vislumbramos na realidade brasileira. De forma sintética, descortino, a seguir, as principais características observadas por Umberto Eco em sua preleção.

1. O culto às tradições: Diante de um sincretismo e também da diversidade religiosa, busca-se um caminho que não mais admita contestações. Trata-se de uma “verdade” que não pode ser contestada. A tradição cristã e a cultura ocidental são os grandes valores da humanidade. Qualquer razão ou saber deverá se submeter a este principio de forma cabal e inalienável.

2. A recusa aos valores da modernidade: A modernidade significa uma espécie de “não” aos valores tradicionais. Trata-se de uma visão hostil ao iluminismo e à razão. Uma perversão ampliada pelos princípios da modernidade. Admite-se apenas a evolução das técnicas e de fatores que acabam se somando, em geral, para um mau caminho.

3. O irracionalismo nas ações: As ações exercitadas pelos indivíduos não necessitam de uma maior reflexão. Por isso, o desprezo pela cultura e pelas universidades. Valem as convicções ou experiências pessoais. Os fatos, os dados, as evidências, perdem a sua relevância. Vale mais o que “eu” quero ou imagino.

4. A não aceitação de qualquer crítica: As críticas geram distinções e as distinções são as marcas da modernidade. Com a modernidade são gerados avanços. Avanços que ferem tradições e valores de um tempo passado. Estar em desacordo com esta premissa significa trair princípios inalienáveis.

5. A não aceitação da diversidade: O sistema não tolera a diversidade de opiniões, de pessoas, de verdades e de religiões. O que ocorre é uma multiplicidade de expressões de desrespeito, intolerância e de ódio para com as diferenças. Por isso, há sempre em seu âmago um fundamento racista, misógino, sexista, etc.

6. A frustração individual ou social: É por conta desta faceta que, em geral, ocorre um apelo às classes frustradas por conta de crises ou humilhações políticas para que assumam as rédeas de sua própria história e exercitem o seu protagonismo. O medo de uma suposta escravidão cultural, politica, social, religiosa e intelectual, necessita ser diuturnamente alimentado.

7. A privação de qualquer identidade social: Em comum apenas o fato de ter nascido no mesmo país. Daí um patriotismo exagerado e uma obsessão por inimigos. Todo imigrante é visto apenas como problema. Há uma constante indicação de inimigos externos e internos que podem prejudicar a liberdade e a soberania do país.

8. A humilhação: Inclinar-se diante de nações mais poderosas. Aliar-se com quem, pretensamente, é rico ou possui maior potencial bélico de modo a vencer inimigos políticos e morais. Este fator impede também qualquer avaliação objetiva da realidade. A submissão é vista como estratégica e positiva.

9. Não há luta pela vida, mas, antes, “vidas para a luta”: O pacifismo seria um conluio com o inimigo. O pacifismo, portanto, é mau porque a vida retrata uma guerra permanente. Vive-se em permanente estado de beligerância. A situações exigem uma "solução final".

10. O elitismo e a aristocracia: Trata-se de um desprezo pelos mais fracos. Não existiriam patrícios sem os plebeus. As massas teriam, pois, a necessidade de um dominador. Um poder obtido pela imposição da força. As pessoas devem se sentir parte da “melhor nação do mundo”.

11. Ser herói: O heroísmo é visto como uma norma. Autoridades são vistas como exemplos de entrega, dedicação, combate ao mal. O heroísmo tem muito a mais a ver com a morte do que com a vida. A morte é a recompensa para uma vida heroica.

12. Poder e sexualidade: Como o poder e o sexo são questões complexas e difíceis de serem retratadas, na maioria das vezes, há um refugio, por exemplo, na intolerância com hábitos sexuais, na homossexualidade, etc.

13. Indivíduos destituídos de direitos: Os seres humanos se realizam apenas como "vontade comum". Isso faz com que sintam a necessidade de um líder, condutor, intérprete. Apenas assumem o papel de povo. Odeiam os parlamentos.

14. Uso de uma “nova” linguagem: Os textos devem ter um léxico simples e uma sintaxe elementar para jamais permitirem raciocínios críticos e complexos. Fuga ao politicamente correto. Agressão verbal.

O perigo de uma política fascista tem muito a ver com as táticas e os mecanismos para se chegar ao poder, mas, muito mais, com a desumanização de alguns segmentos da população. Limita-se, pois, a capacidade de empatia entre as pessoas. Tratamentos desumanos são justificados assim como a repressão e o próprio extermínio. O sintoma de uma política fascista sempre será a divisão. A distinção entre “nós” e “eles” para moldar uma superioridade ideológica, moral e religiosa.

O fascismo de hoje pode não ter a mesma estrutura de quase um século atrás, mas, alicerça e consolida em seus fundamentos os múltiplos sentidos do medo. Um medo que substitui o diálogo e a compreensão histórica acerca da realidade. Um medo que distorce e idealiza o passado. Um medo que estimula a vitimização. Um medo que, em última análise, entende a tolerância e os valores da equidade como ameaças às autoridades constituídas.

A falta de limites parece ter se transformado em regra. Os valores democráticos passaram ser vistos, sob a ótica fascista, como obstáculos para a fraternidade e a paz. É preciso compreender as causas que nos empurraram para este estado de coisas. O que faz com que a população aceite de forma passiva tantas arbitrariedades? Precisamos recuperar a nossa sensibilidade para com a dor do outro e não nos orientarmos apenas pelos imperativos do mercado. A sociedade é formada por pessoas. Pessoas possuem sentimentos, vivências e histórias. É isso que deveria importar!