sexta-feira, 5 de julho de 2019

O Fascismo Eterno

Semanas atrás tive o privilégio de ser presenteado por um amigo querido com um livro instigante e desafiador - O Fascismo Eterno - do consagrado escritor, filósofo e linguista italiano, Umberto Eco (1932-2016). Um dos mais importantes pensadores do nosso tempo. A obra em questão retrata uma palestra realizada na Universidade de Colúmbia, nos Estados Unidos, no ano de 1995.

Na conferência o autor busca situar historicamente os movimentos fascistas do século XX, precedidos pelo fascismo de Mussolini e propagados por toda a Europa e depois pelo Continente Americano. Eco atenta para as diferenças e as inúmeras contradições deste sistema. A centralidade da abordagem está na identificação de traços comuns encontrados em suas diferentes manifestações.

São, pelo menos, 14 características descritas com desenvoltura e rara perspicácia. Não deixa de ser impactante a possível afinidade destas facetas com aquilo que, direta ou indiretamente, vislumbramos na realidade brasileira. De forma sintética, descortino, a seguir, as principais características observadas por Umberto Eco em sua preleção.

1. O culto às tradições: Diante de um sincretismo e também da diversidade religiosa, busca-se um caminho que não mais admita contestações. Trata-se de uma “verdade” que não pode ser contestada. A tradição cristã e a cultura ocidental são os grandes valores da humanidade. Qualquer razão ou saber deverá se submeter a este principio de forma cabal e inalienável.

2. A recusa aos valores da modernidade: A modernidade significa uma espécie de “não” aos valores tradicionais. Trata-se de uma visão hostil ao iluminismo e à razão. Uma perversão ampliada pelos princípios da modernidade. Admite-se apenas a evolução das técnicas e de fatores que acabam se somando, em geral, para um mau caminho.

3. O irracionalismo nas ações: As ações exercitadas pelos indivíduos não necessitam de uma maior reflexão. Por isso, o desprezo pela cultura e pelas universidades. Valem as convicções ou experiências pessoais. Os fatos, os dados, as evidências, perdem a sua relevância. Vale mais o que “eu” quero ou imagino.

4. A não aceitação de qualquer crítica: As críticas geram distinções e as distinções são as marcas da modernidade. Com a modernidade são gerados avanços. Avanços que ferem tradições e valores de um tempo passado. Estar em desacordo com esta premissa significa trair princípios inalienáveis.

5. A não aceitação da diversidade: O sistema não tolera a diversidade de opiniões, de pessoas, de verdades e de religiões. O que ocorre é uma multiplicidade de expressões de desrespeito, intolerância e de ódio para com as diferenças. Por isso, há sempre em seu âmago um fundamento racista, misógino, sexista, etc.

6. A frustração individual ou social: É por conta desta faceta que, em geral, ocorre um apelo às classes frustradas por conta de crises ou humilhações políticas para que assumam as rédeas de sua própria história e exercitem o seu protagonismo. O medo de uma suposta escravidão cultural, politica, social, religiosa e intelectual, necessita ser diuturnamente alimentado.

7. A privação de qualquer identidade social: Em comum apenas o fato de ter nascido no mesmo país. Daí um patriotismo exagerado e uma obsessão por inimigos. Todo imigrante é visto apenas como problema. Há uma constante indicação de inimigos externos e internos que podem prejudicar a liberdade e a soberania do país.

8. A humilhação: Inclinar-se diante de nações mais poderosas. Aliar-se com quem, pretensamente, é rico ou possui maior potencial bélico de modo a vencer inimigos políticos e morais. Este fator impede também qualquer avaliação objetiva da realidade. A submissão é vista como estratégica e positiva.

9. Não há luta pela vida, mas, antes, “vidas para a luta”: O pacifismo seria um conluio com o inimigo. O pacifismo, portanto, é mau porque a vida retrata uma guerra permanente. Vive-se em permanente estado de beligerância. A situações exigem uma "solução final".

10. O elitismo e a aristocracia: Trata-se de um desprezo pelos mais fracos. Não existiriam patrícios sem os plebeus. As massas teriam, pois, a necessidade de um dominador. Um poder obtido pela imposição da força. As pessoas devem se sentir parte da “melhor nação do mundo”.

11. Ser herói: O heroísmo é visto como uma norma. Autoridades são vistas como exemplos de entrega, dedicação, combate ao mal. O heroísmo tem muito a mais a ver com a morte do que com a vida. A morte é a recompensa para uma vida heroica.

12. Poder e sexualidade: Como o poder e o sexo são questões complexas e difíceis de serem retratadas, na maioria das vezes, há um refugio, por exemplo, na intolerância com hábitos sexuais, na homossexualidade, etc.

13. Indivíduos destituídos de direitos: Os seres humanos se realizam apenas como "vontade comum". Isso faz com que sintam a necessidade de um líder, condutor, intérprete. Apenas assumem o papel de povo. Odeiam os parlamentos.

14. Uso de uma “nova” linguagem: Os textos devem ter um léxico simples e uma sintaxe elementar para jamais permitirem raciocínios críticos e complexos. Fuga ao politicamente correto. Agressão verbal.

O perigo de uma política fascista tem muito a ver com as táticas e os mecanismos para se chegar ao poder, mas, muito mais, com a desumanização de alguns segmentos da população. Limita-se, pois, a capacidade de empatia entre as pessoas. Tratamentos desumanos são justificados assim como a repressão e o próprio extermínio. O sintoma de uma política fascista sempre será a divisão. A distinção entre “nós” e “eles” para moldar uma superioridade ideológica, moral e religiosa.

O fascismo de hoje pode não ter a mesma estrutura de quase um século atrás, mas, alicerça e consolida em seus fundamentos os múltiplos sentidos do medo. Um medo que substitui o diálogo e a compreensão histórica acerca da realidade. Um medo que distorce e idealiza o passado. Um medo que estimula a vitimização. Um medo que, em última análise, entende a tolerância e os valores da equidade como ameaças às autoridades constituídas.

A falta de limites parece ter se transformado em regra. Os valores democráticos passaram ser vistos, sob a ótica fascista, como obstáculos para a fraternidade e a paz. É preciso compreender as causas que nos empurraram para este estado de coisas. O que faz com que a população aceite de forma passiva tantas arbitrariedades? Precisamos recuperar a nossa sensibilidade para com a dor do outro e não nos orientarmos apenas pelos imperativos do mercado. A sociedade é formada por pessoas. Pessoas possuem sentimentos, vivências e histórias. É isso que deveria importar!

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