sábado, 29 de setembro de 2018

O Fascínio da Barbárie

Quem ousa descortinar os caminhos da história recente, certamente haverá de perguntar, ainda hoje, como foi possível a barbárie nos campos de concentração na Alemanha nazista de Hitler. Como foi possível que uma das mais desenvolvidas nações europeias, uma verdadeira potência cultural, econômica e política, berço da filosofia de Kant e Hegel, Marx e Freud, de gênios como Bach, Beethoven e Goethe, tenha sido sequestrada pela loucura de um líder insano? Como compreender tanta irracionalidade em uma nação que se dizia evoluída? Como imaginar que a democracia pudesse ser condenada e conduzir para o holocausto?

Para mim, entre os muitos fatores que podem explicar esta tragédia, por certo, o maior deles foi o peso de quem se alinhou com a insanidade de Hitler e permitiu, por adesão ou indiferença, que os alemães fossem seduzidos pela barbárie. O desemprego, a corrupção, a falta de perspectivas dentro do próprio sistema eleitoral, engendrou um nacionalismo exacerbado que condenava imigrantes, comunistas, homossexuais. Diante de um quadro nebuloso, não foi um acaso que um militar de patente inexpressiva e sem qualquer preparo tenha sido alçado ao principal cargo do executivo.

As pessoas acreditaram no discurso que ilustrava uma suposta moralidade, um amor à pátria, a fé acima de tudo. Hitler chegou ao poder com o apoio de uma grande parcela dos intelectuais, das igrejas, dos mais pobres. Gente que, mesmo percebendo a grande falta de preparo e o um discurso que condenava as minorias, entendia que a mudança se fazia necessária. As pessoas estavam cansadas daquilo que haviam vivenciado. Buscava-se o novo, sem atinar, contudo, que a barbárie haveria de se concretizar de forma inapelável.

É um fato que nenhum regime totalitário seria possível sem que uma “grande ignorância” se disseminasse entre os indivíduos como um alicerce para a descrição de um quadro catastrófico. O Brasil, ao que parece, também é uma terra fértil para muitos moralistas de plantão que não se sentem desconfortáveis ao se calarem diante de crimes abomináveis como a tortura, por exemplo. Mas, em contrapartida, não hesitam em indignar-se quando se trata de questões acerca da sexualidade. É desta forma que vai sendo produzida uma alienação moral e uma conivência estratégica. A tal corrupção é denunciada com unhas e dentes quando resvala para o lado dos adversários, mas inspira um silêncio vergonhoso quando alcança o próprio ninho.

Para além de tudo aquilo que já vivenciamos aqui em nosso país, nada, absolutamente nada, se assemelha ao horror de um discurso político que proponha a violência e o ódio como estratégia de ação. Muitos eleitores no Brasil são jovens, pobres, das periferias, sem emprego, com pouca escolaridade, desiludidos e vítimas da criminalidade. Quando estas pessoas multiplicam um discurso que sugere resolver os problemas “na bala”, é possível perceber que a situação é muito preocupante. Estes segmentos buscam a cidadania que lhes foi tirada, mas ao se alinharem com um discurso fácil trazido por alguém que personifica a solução para tudo por meio da força, o que parece inevitável é que as portas para a insensatez estejam se abrindo.

O que dizer, no entanto, quando se observa pessoas das classes mais abastadas, empresários, médicos, advogados, a maioria com formação universitária, apoiando este mesmo estado de coisas? Muitos dirão se tratar de gente preocupada com certos valores ou princípios para uma sociedade melhor. Pode até ser, a democracia, mesmo não sendo um regime ideal, ainda é o melhor por permitir que posições políticas ou ideológicas diversas tentem dialogar. O problema, a meu ver, é o apoio de pessoas, presumidamente esclarecidas, a uma plataforma que pode nos conduzir para a barbárie. Não se trata aqui de um exagero pessoal, o risco existe e é cada vez maior.

sexta-feira, 21 de setembro de 2018

Dia do Gaúcho

Conta-se que, no passado, grandes homens consolidaram as bases do Brasil com a força das suas mãos, com a energia dos seus ideais e com o sangue que aceitaram verter em nome do futuro. Esses homens, em dado momento, saíram da história para se transformar em mitos. Hoje, figuram em livros ou em nomes de ruas. Quem foram eles? O que fizeram? Conhecer a história é também produzir um imaginário. Um modo de desvelar o mundo, de descobrir e de tecer novamente os acontecimentos. A história nunca para de ser feita, escrita, inventada.

Toda cultura expressa reconhecimentos e cria realidades. Quando perde a dimensão de representação da complexidade humana e se converte em civismo, tende a ser uma força alienante. A população do Rio Grande do Sul, afinal, sabe o que se comemora no dia 20 de setembro? A data suscita o culto a um imaginário perdido no tempo. Receio que a maioria da população não tenha uma ideia muito clara acerca daquilo que aconteceu no passado. A visão que predomina no conjunto da sociedade é a elaboração feita pelo tradicionalismo, convertida em civismo. Qual o significado e os dilemas desta minha afirmação?

O Rio Grande do Sul, na pretensão tradicionalista, foi transformado em uma espécie de país, como se todos que aqui viviam tivessem o interesse de combater o Império. Trata-se de uma visão equivocada, porque os farrapos eram a minoria da população. Eles jamais passaram de cinco ou seis mil pessoas, num contingente de quase 500 mil. Há, portanto, distorções nesta visão. A revolução foi um movimento dos ricos para os ricos. Dos poderosos para os poderosos. Liberdade para se ganhar dinheiro, igualdade na hora de se cobrar impostos e humanidade para quem mais tinha.

O povo do Rio Grande do Sul, na sua expressiva maioria, ficou ao lado do Império. A revolta era dos estancieiros e charqueadores. Não era, pois, uma reivindicação do conjunto da população. Era um protesto contra a taxação da terra e do charque. Simbolizava os interesses de uma classe proprietária e de pessoas que lidavam no mercado internacional do charque, pois durante todo o período colonial, por mais de três séculos, nunca havia sido cobrado o imposto da terra.

Por outro lado, nos primeiros anos da independência as oligarquias de muitos estados disputavam o poder com as elites das outras regiões do Brasil. Não por acaso foi também o período de outras revoltas pelo país afora, como, por exemplo, a cabanada, sabinada, balaiada, etc. O fato da maioria do Rio Grande do Sul ficar ao lado do Império, significava ser a favor de uma noção de brasilidade e não perder a identidade que a independência havia trazido. Foi por isso que a população, especialmente nas cidades, lutou ao lado do Império, e não ao lado dos farroupilhas.

É preciso descontruir o ideal de que o Rio Grande do Sul se levantou como um todo contra o Império. Trata-se de uma distorção histórica. Um mito inventado, em grande medida, para legitimar os ideais de criação de um novo país na carona daquilo que havia sido preconizado pela separação do Uruguai. Esta premissa de que houve um momento no passado onde um estado inteiro se levantou contra o império não tem consistência. Na verdade, a população mais pobre, além de ter parte de suas terras invadida e saqueada, em alguns casos, foi, inclusive, arregimentada a força.

O maior expoente da revolução, Bento Gonçalves, morreu rico. Deixou entre outros bens, mais de 50 escravos para seus herdeiros. A lenda criada tende a romantizar sua biografia retratando que ele tinha acabado a vida como o mais pobre dos homens. Outro elemento histórico é que em dez anos de guerra, teriam morrido por volta de 3000 pessoas, uma média de 300 por ano, menos de uma por dia. Durante a revolução praticou-se de tudo: estupros, degolas, saques, apropriação de terras alheias e sequestros.

Antônio Vicente da Fontoura, o encarregado de negociar a anistia com o Império, foi um dos que mais denunciou a corrupção neste período. Com o fim da revolução, as principais lideranças farrapas receberam anistia e polpudas indenizações do Império. Nunca houve um tratado de paz de Ponche Verde. Canabarro e Caxias não estiveram juntos às margens do rio Santa Maria para um aperto de mão e a assinatura de um documento de paz. Muitos farroupilhas acabaram ingressando no exército imperial.

Para além de possíveis incompreensões, gostaria de deixar claro que não sou contra e, inclusive, me alegro com os festejos gaúchos cultuando a bravura dos antepassados e a atividade do campo e a vida rural. Porém, é distorcida esta visão de se comemorar a Semana Farroupilha como um movimento libertador e vitorioso. Não é possível descortinar a história num presente alheio aos fatos.

sexta-feira, 14 de setembro de 2018

A ERA DA DESCONFIANÇA

A cada ano os brasileiros confiam menos uns nos outros e desconfiam mais das instituições que os governam. Os dados constam nos Índices de Confiança Social, o ICS, realizado pelo Ibope. Não há registro de um ano no qual a desconfiança tenha sido maior do que em 2018. É nessa estrada cheia de percalços que acontece a atual corrida eleitoral.

Todas as instituições perderam confiança aos olhos da população em comparação com períodos anteriores, com uma única exceção - o Congresso Nacional - que ficou na mesma situação. Pode até parecer esquisito, mas este “mesma” tem a ver com percentuais muito baixos. Portanto, não chega a ser uma vantagem. Bombeiros, presidência da república, polícias, ministério público, meios de comunicação, justiça, sindicatos, partidos, sistema eleitoral e forças armadas. Nenhuma instituição está funcionando melhor agora em comparação com anos anteriores.

Em grande parte a queda na confiança é só mais um degrau escada abaixo, numa descida quase ininterrupta desde que as pesquisas começaram a ser feitas pelo Ibope. A que naufragou com mais rapidez foi justamente a presidência da república: foi do céu ao inferno nos últimos anos. Com Michel Temer no comando a confiança caiu tanto a ponto de ser considerada a instituição menos confiável de todas.

Olhando de longe, tudo isso soa como algo conhecido e dá a impressão de não ser nenhuma novidade. Tão longo e repetitivo é o período de decadência institucional do Brasil que nem dá vontade de prestar atenção em outras percepções, mas, é preciso dar-se conta de que estamos diretamente implicados em todo este arsenal de péssimas constatações.

Alçadas ao protagonismo político por Temer, as forças armadas, por exemplo, começam a pagar o seu preço em termos de confiança. Foi com Temer que acabaram sendo chamadas para reprimir manifestações, debelar a greve dos caminhoneiros, respaldar a intervenção no Rio de Janeiro. Embora maior se comparada às instituições políticas, a confiança nas forças armadas caiu em 2018, após anos em alta. Regrediu ao patamar de 2013, ano em que a insatisfação eclodiu em centenas de protestos pelas ruas de todo o país.

Acredito que o ano de 2013 tenha sido uma espécie de ponto de inflexão na confiança dos brasileiros em suas instituições e também em relação aos seus compatriotas. De lá para cá, não é coisa rara vermos vizinhos, amigos e até familiares, perdendo a confiança e a capacidade para dialogar de forma franca e aberta e em respeito a opiniões divergentes. A desconfiança acabou sendo exacerbada inclusive por meio da truculência na interação das mídias digitais. O facebook, por exemplo, virou trincheira para defender questões de forma incisiva, apaixonada e até irracional.

A universalização dos smartphones e seus aplicativos de mídias antissociais colaboraram com esse processo de desconfiança recíproca e de acirramento das polarizações. Dificilmente teríamos alcançado um grau de hostilidade tão grande se os sistemas partidário e eleitoral brasileiros não sofressem uma crise crônica de representatividade. Quando a política não consegue mais dar conta de resolver os conflitos, são as pessoas que acabam se voltando para o mundo virtual em busca de soluções.

Como é que esta desconfiança generalizada pode impactar no resultado daquilo que está em nosso horizonte? Difícil saber, mas, os sinais já estão aparecendo por todos os lados. Mesmo diante de um clamor por mudanças, a resposta talvez seja que tenhamos mais e do mesmo. Qual a probabilidade de as eleições de outubro servirem para desanuviar o clima negativo que norteia a opinião pública? Desconfio que seja a mesma de Temer eleger um Meirelles como seu sucessor. A tempestade está só começando a se aperfeiçoar, infelizmente.

segunda-feira, 10 de setembro de 2018

AS CINZAS DE NOSSA HISTÓRIA

O incêndio que destruiu o Museu Nacional no Rio de Janeiro, e com ele mais de duzentos anos de história, não foi apenas um incêndio. As chamas são um triste símbolo de um país que nos últimos tempos resolveu abandonar a ciência, as artes e a cultura, em detrimento de uma estratégia mesquinha concebida a partir de interesses pessoais de quem deveria ser guardião de uma de nossas maiores riquezas: a própria memória.

As imagens das labaredas queimando parte de nossa herança cultural e histórica poderiam ser apenas um triste presságio às vésperas de uma eleição que se anuncia incendiária e incerta. Quem acha estranho tantos absurdos que estamos observando deveria analisar a tragédia sem deixar de lado os tantos desleixos de quem nunca soube preservar o seu legado. O Brasil parece ter uma vocação insana para ser um construtor de ruínas.

Um país que deixa sua memória virar cinzas corre o risco de aniquilar o seu presente para jamais alcançar um bom lugar em seu futuro. Um povo que ousa abandonar certos valores hoje, certamente buscará explicações para o insucesso na formação de novas gerações. Os seres humanos se constroem e se aperfeiçoam na sua percepção de mundo a partir daquilo que lhes é transmitido. Sem discernimento, crianças e jovens, acabarão como náufragos sem bússola, num mar já muito agitado pelas incertezas e os obscurantismos.

Sucessivos cortes de recursos para a educação e a falta de investimentos em áreas essenciais fizeram com que o nosso mais importante Museu fosse aniquilado. Enquanto isso, a poucos metros dele, há um estádio que recebeu mais de um bilhão de reais. Um descompasso tremendo e vergonhoso. O estrangulamento de nossas universidades, o descaso e o desdém, não denota apenas falta de interesse, mas, é o resultado de “um projeto” como já dizia Darcy Ribeiro. A destruição do Museu Nacional é uma vitória da intolerância que foi capaz de tragar mais de 20 milhões de bens culturais insubstituíveis para o Brasil, para a América latina e para a humanidade.

O incêndio é um crime contra a ciência que poderia produzir um conhecimento para uma vida melhor. Uma tragédia anunciada em uma nação que parece não se sentir incomodada com a destruição de sua fauna, de sua flora, da história dos povos indígenas, da colonização. É uma destruição não apenas de livros, de peças, de áudios, de imagens e de fósseis que sobreviveram a milhares de anos. Trata-se de vidas inteiras dedicadas à pesquisa, de um conhecimento acumulado para a humanidade, de um acervo imprescindível para as futuras gerações. Para mim, uma fotografia perfeita do país que nos tornamos. Insensível, ignorante, desigual, autoritário.