sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

UM NOVO TEMPO





É um ano que termina. Outro que se inicia. Com a mudança do calendário, na carona, vão se multiplicando expressões antigas, habituais, por vezes, bem desgastadas. São os clichês e os chavões sem muita imaginação, sentido ou conteúdo. Repete-se o desejo ou o compromisso de cuidar melhor da saúde, ter mais tempo para o lazer, fazer alguma ação social. Promessas e mais promessas que em poucas semanas, ou mesmo dias, correm o risco de ficar pelo caminho. Retórica superficial, desejo volúvel, votos vazios.

Esperamos sempre que os ventos do destino sejam favoráveis e o futuro nos propicie percursos nos quais a realização seja plena. Acontece que os percalços não costumam fazer acepção de pessoas premiando apenas alguns escolhidos. A esmagadora maioria dos seres humanos haverá de enfrentar a dura realidade da qual não conseguirá se esquivar repetindo frases aleatórias. A vida é esforço, dedicação, suor e lágrimas.

A vida não acontece em um desenrolar cronológico alheio aos dilemas de nossa jornada no dia a dia. Tem muito mais a ver com a coragem, a perseverança e o discernimento para reagir aos impasses do cotidiano. As decisões, os gestos, as palavras e as atitudes geram responsabilidades e também consequências. As oportunidades estarão ligadas às escolhas, deliberadas ou não. Quem deseja construir a sua própria história a partir de verdades e valores que valham alguma coisa, precisará deixar de lado a indiferença, rejeitar o rancor, desprezar a inveja. Viverá de forma bonita quem souber acolher o afeto e difundir a gratidão.

Esperar, com pensamento positivo e frases de efeito, que o novo ano traga a superação da crise econômica, política ou moral sem muito esforço e, de igual maneira, haja mais empregos, mais justiça, mais segurança e menos miséria é subverter a lógica dos fatos, desconsiderar a realidade, viver uma fantasia. Para que tenhamos um mínimo de transformação é imprescindível colocar abaixo as perversas estruturas que fomentam as atrocidades. Qualquer ser humano pode imaginar uma vida melhor desde que busque acolher valores que não perpetuem a maldade e a mesquinhez, mas o diálogo, a lealdade e a partilha.

Sem ficar esperando datas, buscar a construção de novos caminhos. Dias melhores virão como fruto de nossa sintonia com os propósitos e atitudes de homens e mulheres dedicados aos valores da dignidade e do bem comum. É preciso ter compromisso com a vida e almejar mais a ternura do que a força. Aprender que o mal nos ronda dia e noite. Que a guerra continua a seduzir e que a perversidade se multiplica sem parar. Entender que milhares de inocentes padecem sem vez e voz. Que mulheres são violentadas. Crianças escravizadas, prostituídas e traficadas. Há cinismo, ingenuidade e manipulação em demasia. Esquecemos que a vida não passa de um breve suspiro e que todo o instante é sagrado.

O futuro não obedece aos trilhos do destino, do fatalismo ou da fortuna. A maturidade não acontece sem percalços. Só quem se sente amado tem segurança para humanizar-se. Quem não consegue lidar com as suas próprias sombras, jamais saberá conjugar verbos como: tropeçar, falhar, cair, sofrer. Só os dissimulados procuram o convencimento de que a perfeição pode ser conquistada. O tempo é o entalhe onde os sonhos podem ser esculpidos, mas também aniquilados. O presente, a despeito de tudo, sempre será o prelúdio daquilo que desejamos.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

INSPIRAÇÃO NATALINA



Qual o mistério encarnado em Jesus de Nazaré? Por que ele continua nos lábios de quem o confessa, na súplica dos doentes e no grito de esperança dos sonhadores? Passados tantos séculos, a história do filho de um singelo carpinteiro e de uma camponesa ainda adolescente continua a despertar sentidos e sentimentos. História de alguém que não deixou uma só linha escrita para a posteridade, não arregimentou nenhum soldado, não conquistou nenhuma cidade pela imposição da força, mas que foi o protagonista de uma das maiores transformações de todos os tempos.


Que verdades este andarilho soube divulgar? Como ousou acolher quem a sociedade rejeitava? O que fez para despertar a ira das poderosas elites de seu tempo? Como conseguiu conciliar em um só grupo, pescadores sem qualquer instrução e opositores ao império romano? Como gente tão simples conseguiu ser força transformadora das mais incisivas? Como compreender que tenha sido capaz de acolher com afeto e carinho os mais humildes, as crianças, as viúvas, os doentes, as mulheres condenadas pela lei mosaica?


São questionamentos que ultrapassam deduções elementares e continuam a intrigar historiadores, confundir filósofos e a perturbar aqueles e aquelas que almejam compreender seus ensinamentos de forma crítica. Talvez nunca consigamos responder a muitas destas indagações. O homem nascido na minúscula e longínqua Belém continua sendo a inspiração para milhões de pessoas. É o tema recorrente nas canções infantis. A inspiração dos combalidos. O auxílio para quem é confrontado com as desventuras da jornada.


As diferentes expressões religiosas na face da terra sempre buscaram narrar, cada qual à sua maneira, aquilo que ligava os seres humanos com a sua divindade. No entanto, sem qualquer precedente histórico, a narrativa cristã foi forjada nos termos da simplicidade. Jesus não nasce de modo espetacular. Numa noite qualquer, que jamais poderá ser descortinada com precisão em qualquer calendário, alguns cuidadores de ovelhas percebem o aviso das estrelas na madrugada.



A história do menino nascido na Galileia poderia ser a história de tantos que nascem sem ter um lugar e que tem de experimentar a vida dura marcada pelo preconceito, pela pobreza, pela falta de dignidade. Em sua missão, jamais impôs, jamais buscou a força, jamais buscou submeter quem lhe era diferente. Sua intenção foi a de partilhar as dores, celebrar as alegrias, inspirar a busca por justiça e fazer o bem. Em palavras e atitudes, foi o alivio para quem estava fatigado. A mão estendida para quem havia caído. O alento nas lágrimas. Sua verdadeira e maior glória: lavar os pés de seus amigos.


Que bom que uma vez por ano, pelo menos, acendemos luzes e, de alguma forma, nos conectamos ao Deus menino, que não abriga qualquer sombra em seu exemplo. Nas nossas ambiguidades e diante do convívio cada vez mais precário, é o espírito do natal que induz e inspira para gestos de candura em meio aos dilemas da existência. Pelo menos, por algumas horas, há um esforço para deixar de lado a escuridão triste e dissimulada que tende a reinar sobre a humanidade. Pelo menos, por algum tempo, somos capazes de escrever ou pronunciar votos de alegria, reanimando a esperança e apostando na grandeza dos nossos semelhantes.


Ao celebrarmos o Deus menino, festejamos a fragilidade do bebê que dependeu dos braços maternos para sobreviver. Esvaziado, humilde e carente, Deus se revelou à humanidade numa estrebaria. Este homem mostrou ser possível rejeitar um sistema corrompido sem insuflar o ódio. Jesus é a metáfora para uma humanidade indiferente. Ele, apesar de tudo e a despeito daquilo que sugere a negação aos seus ideais, continua sendo conselheiro, príncipe da paz, o escolhido entre milhares para redimir a todos e todas.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

AS VIRTUDES DO AFETO



Ao desejar fazemos escolhas. Somos movidos pelas pulsões que a filosofia e a psicanálise qualificaram como desejo ou energia. Podemos, simultaneamente, gerar vida ou trilhar caminhos desconhecidos, mas necessários. Pessoas são movidas por algum fascínio ou anseio capaz de trazer alento, ainda que passageiro. Desejo e aversão nascem dessas pulsões onde não existe mais o ‘certo’ ou ‘errado’. Qualquer consciência crítica sucumbe diante do desejo, da vontade e da liberdade.


Na redoma das decisões, todos são protagonistas. Quanto maior a cordialidade, maior a disposição para sentir-se acolhido. Aquele que quer bem se abre para o que aprecia. Ternura é capaz de colocar abaixo eventuais desalinhos. Quem fala não se cansa de repetir e quem ouve não se fatiga em acolher as mesmas palavras. Quem tem o coração aberto e exercita a lealdade evita os disfarces.


Simone de Beauvoir disse certa vez que não há como se escapar da expressão do amor. Por ele vivemos, com ele estamos e por ele passamos. O amor é sina e passagem. Encontro e desencontro. Vida e morte. Causa e efeito. É verdade que em nome de bons momentos novas possibilidades são vislumbradas, mas a dureza ou a indiferença do olhar e sentir é capaz de constranger, subjugar e inviabilizar gestos de dignidade e diálogo.


Humildade para compreender e sentir deveria estar acompanhada de boa vontade. Desarmar-se de respostas prontas. De argumentos que pretendam justificar as próprias incertezas. Sabedoria carece de ambientes serenos. Humildade e graça precedem supostas verdades alicerçadas na eloquência. Não é por acaso que Rubem Alves de forma brilhante sentenciou: o que as pessoas mais desejam é alguém que as escute de maneira calma e tranquila. Em silêncio. Sem dar conselhos. Sem que diga: Se eu fosse você...


Se quisermos encontrar o caminho da partilha, da atenção, do respeito e da dignidade, será imprescindível exercitar a sensibilidade, o tato, o carinho antes dos argumentos. A coerência e a ternura para aprender e desejar um caminho melhor pra mim e para o outro. Ter pessoas que nos acolham pelo que somos, sem máscaras ou adereços, é um presente incomensurável.


Não há respostas prontas para amenizar os sofrimentos inerentes à caminhada. Nascemos e aos poucos vamos percebendo que a realidade induz a nadar contra a maré. Em nossos medos existenciais alimentamos a angústia. Dela vem o choro, a pequenez e a dor. A angústia que se associa a depressão. Angústia que dói, desestabiliza, lateja e faz sofrer. Angústia que nos faz perceber com mais intensidade que a soma dos choros e risos, desejos e realizações, frustrações e sonhos, poderiam ser aplacados, em grande medida, se desejássemos dar as mãos.


Tudo o que sabemos e que já pôde ser alcançado não pode garantir o amanhã. A cada passo vamos esmiuçando novos caminhos e dilemas. É preciso manter-se atento para o inesperado. É possível que, de repente e de forma abrupta, a vida possa se transformar. O chão desaparecer debaixo dos pés. O pesadelo se prolongar para além da noite. Nossos pés adentrarem em águas profundas.


Pessoas vivem com as suas máscaras mostrando uma faceta para cada situação. Viver com muitas máscaras é algo doloroso para o coração, porque vai sendo perdido o que existe de mais precioso, a própria identidade. As pessoas não sabem com quem estão lidando porque são criadas barreiras. Talvez a maior solidão que existe seja aquela que nos faz ficar longe de nós mesmos.

Viver sem criar vínculos, supostamente, para continuar dominando as prerrogativas da tal “liberdade”. Não nos damos conta que ser amado, ser cuidado, ser compreendido pelo que somos, com nossas virtudes e precariedades, é a maior conquista que se possa merecer nesta caminhada. Pablo Neruda ilustra magistralmente esta realidade. O maior dos sofrimentos: não ter por quem sentir saudades, passar pela vida e não viver.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

OS CAMINHOS DA DEMOCRACIA




É imprescindível, nos dias atuais, refletir de forma profunda e serena sobre os percursos da democracia. Seus dilemas, aspirações, esperanças e limites. Receio que não tenha melhor companhia para alargar horizontes e revelar os desafios desta empreitada do que a primorosa análise feita pelo pesquisador da Universidade de Brasília, Luís Felipe Miguel em seu livro - Democracia e Representação: Territórios em Disputa. A obra foi lançada no ano de 2014 pela editora da UNESP de São Paulo.


Para o autor, a democracia encontra-se diretamente ligada em nosso país a, pelo menos, quatro problemas fundamentais. O primeiro seria a separação entre governantes e governados. Depois, em segundo lugar, estaria a formação de uma elite política distanciada do povo em geral. Em terceiro lugar, haveria uma ruptura dos vínculos entre a vontade dos representados e a vontade dos representantes. E, por último, o abismo entre o momento em que se afirmam os compromissos nas campanhas eleitorais e o seu efetivo exercício através dos mandatos legislativos.


Uma das questões importantes ao se tratar da democracia é saber como evitar que a mesma não se perca num circulo permeado por promessas ilusórias e que acabem trasbordando para a conhecida demagogia. Afinal de contas, vivemos épocas turbulentas e de exacerbação negativa e quase generalizada das representações políticas. Esta noção depreciativa de que todo político é corrupto e que a maioria não nos representa, não é uma exceção, mas vai sendo repercutida e ampliada todos os dias. O significativo índice de votos brancos e nulos nas últimas eleições tem muito a ver com o vazio programático capaz de despertar, nem tanto, adesões ou contestações, mas, pior, a indiferença.


A constatação de que vivemos dentro de um sistema ambíguo e que não é capaz de nos representar não é uma particularidade restrita ao contexto brasileiro, trata-se de algo que transcende fronteiras geográficas e vem suscitando demoradas reflexões pelo mundo todo. No fundo, a sensação que vai sendo multiplicada é aquela descortinada pelo saudoso Eduardo Galeano ao ensinar que as eleições nos dias atuais, mesmo que tragam consigo as premissas de um ideal democrático, no fundo, só nos permitiriam escolher em qual molho preferimos ser cozinhados.


Não é de se estranhar que neste pretenso cardápio eleitoral vamos encontrando pratos que mais suscitam a repugnância do que o apetite. Diante do vazio de uma consciência crítica, figuras conhecidas e dotadas de um forte apelo messiânico tendem a triunfar. A verborragia vazia vai sendo vista, com facilidade, não como afronta à ética ou negação do outro, mas como premissa de coragem, de valentia, de uma suposta idoneidade. Radicalismos viram solução para uma sociedade acostumada ao caos.


Receio que não exista igualdade entre as pessoas quando se vive em uma sociedade onde os acessos aos meios de produção, ao capital cultural e às tecnologias são geradoras de fraturas sociais. A extrema concentração de capital nas mãos de alguns conectada à miséria a que são condenados milhões, faz da grande maioria dos países que se autodenominam “democráticos” uma fraude hipócrita onde a igualdade existe como forma vazia, mas não como conteúdo real nos espaços do cotidiano.


Outra questão crucial diz respeito aos meios de comunicação de massa que podem representar um inestimável auxilio ao ideal democrático, ou, ao contrário, solapar suas bases mais elementares ao fornecer percepções particulares em uma espécie de simulacro da realidade. O poderio midiático é capaz de multiplicar os seus interesses e distanciar-se de servir à participação igualitária, à construção de uma sociedade onde todos e todas tenham voz e vez. O objetivo é que os meios de comunicação soubessem representar de maneira adequada às diferentes posições presentes na sociedade, incorporando o pluralismo.

Por fim, o desafio para os caminhos da democracia nos dias atuais é tornar mais equânime o acesso aos meios de difusão das representações do mundo social. Isto significa, principalmente, dar espaço às diferentes vozes presentes na sociedade de forma respeitosa e construtiva. Mas significa também, e crucialmente, gerar espaços que permitam a todos e todas formularem seus interesses e necessidades dentro de um modelo que não feche as portas para determinadas demandas através dos poderes constituídos em nome de uma pretensa maioria. É preciso sublinhar que os conflitos são o efeito das relações de dominação e o seu sufocamento, em última análise, impede o pleno exercício da democracia.