A natureza humana se democratiza pelo
conhecimento e pela cultura. Aqui no Brasil, como temos visto nos últimos
tempos, vive-se a dualidade entre o inferno da vida real e um suposto projeto
de paraíso futuro. Estamos há séculos neste dilema sem conseguir decifrá-lo.
Tem quem acredite que as agruras também suscitam oportunidades e caminhos para
vencer as dificuldades. A despeito de tudo, é preciso compreender aquilo que
nos constituiu no decorrer da história.
A nossa identidade sempre viveu de muitos
enganos. Desta duplicidade entre o que somos e o que gostaríamos que fôssemos.
Diante da arte sacra estampada em tantas igrejas e espaços públicos, por
exemplo, ficamos extasiados e orgulhosos com a exuberância e a sensualidade.
Quase nunca lembramos que a maioria foi construída por milhares de negros
escravizados, vítimas do mais torpe, corrupto e selvagem regime que se tem
notícia neste continente. Foi o sangue de muitos que financiou o nosso sublime
orgulho.
Ficamos a reboque nesta busca por uma
identidade nacional e o desejo de integração cosmopolita ao lado de países mais
desenvolvidos. Tentamos vender a imagem de um povo cordial e acolhedor.
Gostamos de dizer que não temos preconceitos. Que este chão sempre serviu à bravura
e retidão. Sempre soube dignificar valores e virtudes. No fundo, o nosso maior
projeto talvez seja continuar jogando futebol e brincando no carnaval para suportar
os tantos antagonismos sociais que todos os dias mutilam nossa precária
convivência.
Se tivéssemos prestado mais atenção à
história do Brasil colônia, do império, da constituição da república em seus
primeiros períodos, seriamos capazes de enxergar que o país nunca foi muito
diferente daquilo que hoje eclode em seu lado mais sombrio. O mito do
brasileiro transmutado infinitas vezes ao longo do tempo é que sempre acabou
amenizando a nossa inconformidade com as injustiças e a violência. Hoje sem a proteção
dos mitos e com a liberdade de dizer e fazer o que “der na telha”, as coisas
adquiriram outra conotação. Não é que o Brasil tenha piorado, nós é que
começamos a ver com mais clareza o que sempre existiu, mas que, de forma
ingênua ou oportunista, havia sido negligenciado.
Faz parte do nosso jeito de ser esta mania de
compreender que a vida política é a única mediação que temos para superar os
percalços. A sensação de fracasso das instituições republicanas tende a transformar-se
em uma espécie de delírio pessimista que só faz crescer no imaginário popular o
protagonismo de uma meia dúzia de abobalhados que repercutem asneiras atiçando
toda uma população carente de discernimento. Em meio ao caos, a tendência é
acreditar em qualquer coisa.
O poeta e filósofo Antônio Cícero, lembrava
que a nossa grande chance talvez estivesse na solução do seguinte paradoxo: o
Brasil, sendo capaz de oferecer a solução de alguns problemas que poucos países
conseguem efetivamente enfrentar, não ter conseguido enfrentar os problemas que
muitos outros países já resolveram.
Quem sabe no despertar de uma consciência
nascida das tantas crises que enfrentamos, consigamos construir este caminho glorioso
e, ao mesmo tempo, modesto. Levantar catedrais imperfeitas à sombra de gerações
que nos antecederam e formaram todas as complexas etnias, de todos os sangues
que correm em nossas veias, misturados.