sexta-feira, 31 de março de 2017

TERRA BRASILIS



A natureza humana se democratiza pelo conhecimento e pela cultura. Aqui no Brasil, como temos visto nos últimos tempos, vive-se a dualidade entre o inferno da vida real e um suposto projeto de paraíso futuro. Estamos há séculos neste dilema sem conseguir decifrá-lo. Tem quem acredite que as agruras também suscitam oportunidades e caminhos para vencer as dificuldades. A despeito de tudo, é preciso compreender aquilo que nos constituiu no decorrer da história.

A nossa identidade sempre viveu de muitos enganos. Desta duplicidade entre o que somos e o que gostaríamos que fôssemos. Diante da arte sacra estampada em tantas igrejas e espaços públicos, por exemplo, ficamos extasiados e orgulhosos com a exuberância e a sensualidade. Quase nunca lembramos que a maioria foi construída por milhares de negros escravizados, vítimas do mais torpe, corrupto e selvagem regime que se tem notícia neste continente. Foi o sangue de muitos que financiou o nosso sublime orgulho.

Ficamos a reboque nesta busca por uma identidade nacional e o desejo de integração cosmopolita ao lado de países mais desenvolvidos. Tentamos vender a imagem de um povo cordial e acolhedor. Gostamos de dizer que não temos preconceitos. Que este chão sempre serviu à bravura e retidão. Sempre soube dignificar valores e virtudes. No fundo, o nosso maior projeto talvez seja continuar jogando futebol e brincando no carnaval para suportar os tantos antagonismos sociais que todos os dias mutilam nossa precária convivência.

Se tivéssemos prestado mais atenção à história do Brasil colônia, do império, da constituição da república em seus primeiros períodos, seriamos capazes de enxergar que o país nunca foi muito diferente daquilo que hoje eclode em seu lado mais sombrio. O mito do brasileiro transmutado infinitas vezes ao longo do tempo é que sempre acabou amenizando a nossa inconformidade com as injustiças e a violência. Hoje sem a proteção dos mitos e com a liberdade de dizer e fazer o que “der na telha”, as coisas adquiriram outra conotação. Não é que o Brasil tenha piorado, nós é que começamos a ver com mais clareza o que sempre existiu, mas que, de forma ingênua ou oportunista, havia sido negligenciado.

Faz parte do nosso jeito de ser esta mania de compreender que a vida política é a única mediação que temos para superar os percalços. A sensação de fracasso das instituições republicanas tende a transformar-se em uma espécie de delírio pessimista que só faz crescer no imaginário popular o protagonismo de uma meia dúzia de abobalhados que repercutem asneiras atiçando toda uma população carente de discernimento. Em meio ao caos, a tendência é acreditar em qualquer coisa.

O poeta e filósofo Antônio Cícero, lembrava que a nossa grande chance talvez estivesse na solução do seguinte paradoxo: o Brasil, sendo capaz de oferecer a solução de alguns problemas que poucos países conseguem efetivamente enfrentar, não ter conseguido enfrentar os problemas que muitos outros países já resolveram.

Quem sabe no despertar de uma consciência nascida das tantas crises que enfrentamos, consigamos construir este caminho glorioso e, ao mesmo tempo, modesto. Levantar catedrais imperfeitas à sombra de gerações que nos antecederam e formaram todas as complexas etnias, de todos os sangues que correm em nossas veias, misturados.

sexta-feira, 24 de março de 2017

Sobre Valores, Caminhos e Estrelas...



É verdade. Aos poucos, vamos percebendo que o sentido da vida não se encontra em paisagens encantadoras ou na ausência de tragédias. Se tivéssemos maior consciência daquilo que falamos e fazemos e do impacto de nossas atitudes, talvez houvesse mais silêncio no mundo. Ao descaracterizarmos o valor da honestidade, da coerência, da temperança, vamos percebendo que as palavras e as ações nem sempre iluminam caminhos ou concretizam a luz. Não é raro, repercutirem ainda mais a escuridão.

Vivemos e somos envolvidos por esta jornada capaz de impulsionar para trilhas infindáveis. O desafio é integrar a dimensão mais profunda da nossa existência, para muitos, referida como sagrada, com uma ética da fraternidade, da comunhão, da lealdade. O dramaturgo grego Sófocles, mais de quatro séculos antes de Cristo, já constatava: “Terrível e misteriosa força do destino: percorre distâncias infinitas e atravessa muralhas para ferir quem escolheu. Dele não escapa o rei, o bravo, o forte, o poderoso, por que o vai apanhar, no céu, o raio, o mar, a tempestade, a terra, a peste ou o inimigo. Mais forte do que o destino é a cegueira dos que não querem ver”.

A vida tende a perecer pela completa insensibilidade que foi adotada pela civilização planetária nos últimos tempos. Criou-se um senso absurdo de convivência alargado, todos os dias, pelas injustiças e o ativismo inconsequente. Os seres humanos tem se tornado cada vez mais frios, impetuosos, pragmáticos. Há um vazio existencial sem precedentes. O sonho de uma maior proximidade talvez só consiga ser concretizado quando não pautado em demasia por argumentos intrínsecos à racionalidade. Quando for compreendido que existe uma necessidade inata de partilha, reciprocidade, carinho, cuidado.

É angustiante perceber que em muitos momentos a vida não passa de competição, de batalha, de constante disputa. Para cada sucesso, inúmeros podem provar a dor do fracasso. Esquizofrenia diabólica alimentando a desenfreada corrida pela sobrevivência apenas dos mais fortes. Os que desistem ou cruzam os braços, apressam a decadência. Tudo o que consideramos vitória se resume a continuar, perseverar, superar-se, cotidianamente. Perseguir as sombras. Procurar a luz. Correr atrás do vento.

É uma pena que nos dias atuais muitos tenham trocado a espontaneidade pelo orgulho. A franqueza pela persuasão. Evitando a autenticidade. Que pena não vermos dilemas éticos ou morais quando a mentira serve de atalho para o reconhecimento ou quando determinadas ações ou condutas buscam apenas os elogios e as palmas. Não é coisa rara ver gente desviando algum caminho. Distorcendo alguma frase. Remodelando episódios do passado. Condenando com facilidade.

O filósofo alemão Georg Friedrich Hegel, já antecipava que o ser humano seria incapaz de aprender com a história, mas que repercutiria suas maiores lições no sofrimento. É como se a existência humana vivesse da utopia escrita nas estrelas. Inatingível, incomensurável, sublime. Estrelas que nunca haverão de ser alcançadas, mas que iluminam a jornada em noites escuras. O céu é a grande integração de todo o mistério da humanidade. O que seria de nossa caminhada sem a companhia das estrelas na vastidão do universo?

sexta-feira, 17 de março de 2017

VIVÊNCIAS



Os seres humanos são sabedores de que o passado tem a força de reviver momentos da jornada. Confrontar sonhos que foram aniquilados e idealismos que não puderam subsistir. Toda a vida não passa de um sopro ligeiro. Somos parte de uma realidade sublinhada por dois sentimentos, a esperança e o medo. A imprevisibilidade que a esperança suscita, anima, mas o futuro indeterminado é capaz de amedrontar.

Fiódor Dostoiévski, um dos maiores romancistas da literatura russa, conhecido pela obra “Os Irmãos Karamazov”, escrita no ano de 1880, soube reconhecer: Somos assim: sonhamos o voo, mas tememos as alturas. Para voar é preciso ter coragem para enfrentar o terror do vazio. Porque é só no vazio que o voo acontece. O vazio é o espaço da liberdade, a ausência de certezas. Mas é isso que tememos: o não ter certezas. Por isso, trocamos o voo por gaiolas. As gaiolas são o lugar onde as certezas moram.

Na memória, perduram as lembranças das adversidades e a trágica sina que embota os sentidos daquilo que, sendo belo, consegue ser contemplado apenas na saudade. O dever de seguir adiante vira um imperativo. Os vendavais não são motivo de orgulho. A vida vai ficando cada vez mais curta. Têm dias em que nos esforçamos para remontar o passado com o intuito de preservá-lo antes que desapareça como fotografia corroída pelas intempéries. Ansiamos em garimpar, no abismo mais profundo de nossa memória, o que trouxe alegria e realização.

Precisamos do coração aberto e da alma leve para desfrutar com um pouco de sabedoria os instantes que nos foram concedidos nesta vida fugaz. Uma pena que a efemeridade da vida seja tão negligenciada e o nosso labor constitutivo daquilo que mal sabemos aonde possa estar levando. As excentricidades do mundo vão esmagando sonhos. A coerência nem sempre antecipa dias amenos. Idealismos não garantem a humanização. Os vendavais não são motivo de orgulho. A vida vai ficando cada vez mais curta.

Assim como o mar toca a praia e arrasta, em seu movimento infindável, sonhos e utopias, também sela destinos, desconstrói devaneios e não toma conhecimento dos murmúrios e das inconstâncias da alma humana. O imperativo da modernidade pragmática em querer explicar, compreender e dominar os mistérios do coração é ridículo. A despeito das aflições, os caminhos do porvir permanecem imperscrutáveis na sua infinita maioria.

Se quisermos encontrar o caminho da partilha, da atenção, do cuidado, é imprescindível exercitar a sensibilidade, o tato, o carinho. Não há respostas prontas para amenizar os sofrimentos da caminhada. Em nossos medos existenciais, alimentamos angústias, deliberadas ou não. Tudo o que sabemos e que já pôde ser alcançado não é capaz de garantir o amanhã. A cada passo, vamos esmiuçando caminhos e dilemas. É preciso manter-se atento para o inesperado.

Não nos damos conta que, poucas vezes, haveremos de ter duas chances na vida. O pulsar do coração avisa, mesmo sem querer, que o tempo é como a areia que escorre por entre os dedos. Nosso fôlego, a cada minuto, se esvai. Por isso, ser amado, ser cuidado, ser compreendido pelo que somos, com nossas virtudes e precariedades, é a maior conquista que se possa merecer nesta caminhada.

Após cumprirmos o destino de nossa existência, restará o quê? Quais vestígios se conservarão da nossa passagem pelo mundo? Que tipo de lembrança haveremos de perpetuar na memória de quem encontramos pela estrada? Sobrarão feitos, gestos, palavras ou algo que valha comentar? Será que houve sensibilidade, gentileza, busca por justiça e alento na dor naqueles que nos foram presenteados? Qual o sentido do ativismo insano ao construirmos nossa essência na indiferença para com a dor e o sofrimento do outro?

A história interior de cada indivíduo continua sendo um horizonte obscuro e difícil de ser decifrado, mas ter pessoas que nos acolham pelo que somos, sem máscaras ou adereços, é um presente incomensurável. Afinal de contas, nossas descobertas são provisórias, nossos acertos, frágeis e nossas certezas, relativas.