terça-feira, 29 de dezembro de 2020

A LEI OU O EVANGELHO?

De um lado, os fariseus, doutores da lei, diligentes e rigorosos na aplicação das normas. Roubou? Deve pagar em dobro. Matou? Deve morrer. De outro, Jesus, tentando ensinar o caminho da misericórdia e do amor. Dois milênios mais tarde, a humanidade parece não ter perdido o impulso para condenar. Talvez o paralelo mais próximo do rigorismo moral e religioso na cultura ocidental seja o linchamento nas redes sociais e a chamada cultura da lacração e do cancelamento.

Essa apropriação do nome de Deus, dos símbolos e a lógica da religião para legitimar um projeto de poder é uma apropriação indevida e totalitária. Nada tem a ver com uma sociedade plural, muito menos com aquilo que se conhece como Estado democrático e de direito. Evidentemente que este tipo de situação não é algo novo, mas, por outro lado, é inegável que tenha se acirrado nos últimos tempos.

Se no Antigo Testamento a divindade era vista como alguém capaz de exigir fidelidade irrestrita sob pena de juízo, podendo tirar a vida e até exterminar o povo, com Jesus, o peregrino de Nazaré, ocorre uma mudança de compreensão. A fé cristã se traduz a partir de uma mensagem na qual Deus é a presença e a consolidação do amor. Trata-se de um Deus que não deveria ser temido, pois é alguém com quem as pessoas podem se relacionar pela linguagem do afeto e da generosidade.

Das coisas que a vida já me permitiu ver e aprender, afirmo sem titubear, julgamentos, condenações ou apedrejamentos, nunca serão parte da essência ou do caráter de Deus. Pelo mesmo motivo, interpretações moralizantes em relação a homofobia, xenofobia ou racismo, também são incompatíveis com aquilo que foi manifestado por Jesus. Ele ama as todas as pessoas independentemente da sua condição existencial, do seu gênero e, também, de suas possíveis transgressões.

Como não lembrar das inúmeras situações que vivenciamos aqui no Brasil no decorrer do ano 2020? Em meio a centenas, talvez milhares de casos, lembro aqui apenas do episódio da menina de dez anos que ficou grávida após ser estuprada por quatro anos por um tio. Por correr perigo de vida e não ter qualquer condição física ou emocional, foi submetida a um aborto por recomendação médica e com autorização judicial. O procedimento foi duramente criticado por alguns grupos religiosos. Reunidos na porta do hospital, manifestantes chamaram o médico de assassino e tentaram impedir a entrada da criança e de sua família no prédio.

Trata-se de um dos episódios mais tristes dos últimos tempos. Um fato vergonhoso e revoltante. O que foi feito com a criança é de uma crueldade inominável. Tanto o abuso sofrido quanto o julgamento e o linchamento moral, são páginas terríveis. Uma criança que deveria ser protegida de todas as formas, acabou sendo condenada em nome de uma pretensa moral religiosa. O caminho da misericórdia recomendado por Jesus, aparentemente, não supunha a preservação da vida da menina. Prevalecia o poder da lei contida no Antigo Testamento.

Vejamos: uma gravidez como consequência de um estupro, e, portanto, de uma violência contra uma criança sem qualquer condição de gerar filhos, coloca um ser humano em um sofrimento absurdo. A despeito de qualquer conhecimento bíblico, cientifico ou médico, é preciso exercitar a solidariedade, o afeto, o apoio emocional, psíquico e espiritual, diante de algo tão trágico. Jesus não estava preocupado em ser um juiz implacável. Buscava, antes, ser compassivo, misericordioso, amoroso. Alguém que se importava em compreender as angústias e vicissitudes inerentes à condição humana.

Parece evidente que nos últimos anos, e de forma cada vez mais incisiva, o espaço público brasileiro vem se notabilizando pela viabilidade de um projeto de poder político que tende a se sustentar de acordo com a lógica do Primeiro Testamento. Fazendo prevalecer um modelo teocrático. Um líder que age e governa em nome de Deus. No entanto, este “governar em nome de Deus” é, sobretudo, impor uma verdade ou lei religiosa. No imaginário popular e, por consequência, no senso comum, se quem governa age em nome de Deus, por definição, não deveria sofrer questionamentos.

A história ensina que qualquer tentativa de dar ao poder político uma inspiração transcendental, em muitos lugares e situações, sempre se mostrou muito perigoso. Alguém que esteja exercitando o seu poder e a sua função no âmbito de um Estado democrático de direito, especialmente em uma sociedade plural e republicana, como no caso do Brasil, estará, invariavelmente, sujeito a questionamentos. É importante nunca desconsiderar o fato de que o poder público existe para defender a equidade, a justiça, a imparcialidade, os interesses de toda as forças presentes em uma sociedade, inclusive aquelas de incidência minoritária.

sábado, 21 de novembro de 2020

João, Mais um João...

Não é a primeira vez que uma pessoa negra é torturada e morta. Cenas assim acontecem aos montes pelo Brasil afora. As tantas histórias macabras até poderiam ser diferentes se a cor da pele também fosse. Mas se prefere dizer que não, negando o preconceito que impregna nosso cotidiano. Seria até mais tranquilo para a consciência dos brasileiros se atitudes de selvageria fossem apenas em supermercados, mas elas acontecem em qualquer espaço público, pelas mãos do Estado, das empresas, da população.

Fico a me perguntar, sem desmerecer outras pautas sociais ou políticas, se este tipo de barbárie não é razão mais do que suficiente para ocuparmos as ruas do país? No entanto, a morte ou a tortura de gente negra, seja pelas mãos do Estado, seja por agentes da iniciativa privada, ao que parece, não vale o tempo dispendido. Mal percebemos que este tipo de coisas não é um acidente, mas, parte de um projeto que é violento com a população mais vulnerável em nome da manutenção de certos privilégios.

Parece exagero? Vejamos: Quando algum professor decide discutir, em sala de aula, a razão pela qual jovens negros são as principais vítimas entre milhares de mortes violentas anuais, logo aparecem os defensores de uma Escola Sem Nada na Cabeça ameaçando processar e impor certas excentricidades sob o pretexto de que isso se trata de alguma "ideologia" nefasta ao bem da humanidade. Afinal, na opinião destes seres de “inteligência superior”, racismo é conversa mole. Não existe genocídio de jovens pobres e negros das periferias pelas mãos da polícia, do tráfico e das milícias. Importa que os 'homens de bem' seguem a lei e nada acontece com eles.

Como um país pode ser decente se a dignidade humana é jogada no ralo todo santo dia? Como pessoas conseguem apoiar ou serem indiferentes com cenas de espancamento e morte? Comemorar ações da polícia que matam jovens nas periferias e depois enchem a boca para falar de justiça ou democracia? Como quereremos construir um futuro se já nem lembramos mais das Ágathas, dos João Pedros e amanhã ou depois, também teremos esquecido do João Alberto. Impressiona que as pessoas sigam nesta toada de que violência se combate com violência. Inacreditável. Se mata e se morre por... nada.

Enquanto isso, o vice-presidente, Hamilton Mourão, sem titubear, afirma: “no Brasil não existe racismo”. Parece brincadeira, mas as imagens de um brasileiro subjugado e brutalmente espancado capaz de emocionar e causar repulsa e indignação em milhões, inclusive no exterior, é apenas fruto do “despreparo”. Uma “fatalidade”, portanto. Talvez seja justamente este o dado mais cruel. A forma como a sociedade brasileira insiste em naturalizar o racismo existente. O racismo arraigado que vai matando muitos “Joãos” a cada dia pela segunda, terceira, quarta... vez, colocando na vítima e na imprensa a culpa pelo que acontece. Os justiceiros dos tribunais da internet revelam sem disfarces a face cruel de uma sociedade perversa. Triste tempos.

domingo, 15 de novembro de 2020

Fanatismos e (Des) Informação


Por muito tempo se imaginou que o acesso à informação seria uma coisa muito boa para o conhecimento e os debates políticos. No passado, os ideais iluministas acentuavam esta possibilidade. Em geral, o fanatismo político de outros tempos era compreendido como resultado da ignorância das populações. Quanto mais informações as pessoas tivessem, mais discernimento elas haveriam de manifestar. Seriam, portanto, mais prudentes, mais tolerantes, mais humildes em suas supostas certezas e mais propensas a ouvir e exercitar a empatia. Além disso, quanto mais fontes de informação tivessem à disposição, mais complexas se tornariam suas ideias e discussões, mais amplas as suas visões de mundo, menos condicionadas por certas paixões.

Infelizmente o que se vislumbra nos dias atuais parece ser bem distante daquilo que se imaginava. Com frequência, não se almeja encontrar a verdade, o esclarecimento mútuo ou a cooperação para compreender a complexidade do mundo. Não. Busca-se, muito mais, a confirmação daquilo que se quer dizer, de preferência, por meio de simplificações reforçadas por conceitos pré-concebidos. Se quer a informação para satisfazer certos anseios existenciais. Parece existir, cada vez menos, a preocupação com o conhecimento.

Vivemos, nos dias atuais, múltiplas possibilidades de acesso a inúmeras fontes de informação. Mesmo assim, ao invés de superarmos o fanatismo do passado, o que se percebe, é a profunda negação a certos princípios elementares do conhecimento e da interação humana. Esta nova dinâmica cibernética exacerbou uma legião de novos fanáticos. A informação não parece ter conseguido consolidar as relações humanas na perspectiva da tolerância e do mútuo entendimento. Ao contrário: é como se a dinâmica favorecesse os mais impetuosos fanatismos. Grupos que há alguns anos construíam pontes, agora, não raro, parecem se digladiar. Cada qual patrulhando gestos e palavras de forma intransigente e atacando sem qualquer cerimônia a aquilo que se entende como fora do lugar. Trata-se, pois, de um paradoxo. Temos muita informação a partir de infinitas fontes, mas, ao mesmo tempo, muita “lacração”, xingamentos e conflitos. Uma vontade incontida para calar oponentes. Quase nenhuma disposição para a crítica sem que o outra seja humilhado, exposto ou punido pela opinião pública.

É importante ressaltar que a informação enquanto atributo propicio ao fortalecimento da democracia, parece ter sido uma questão compreendida de maneira equivocada. O fanatismo não acontecia por que as pessoas tinham falta de informações ou não conseguiam acessar as fontes em sua diversidade. Hoje se percebe que cada pessoa decide aquilo que deseja fazer com as informações que encontra à sua disposição. Alguns se dispõe a utilizar aquilo que observam para o esclarecimento, a tolerância e o entendimento. Outras, ao contrário, se valem delas como se fosse o combustível para arroubos autoritários. Não importa o que se diga ou faça: certas posições parecem inabaláveis. Pouco importam os fatos.

Convém também considerar que a informação não é, em si, instrumento de opressão, de conflitos ou dominação. Ela pode se transformar quando segmentada conforme certas ideologias ou interesses. Em uma sociedade com tanta informação, não falta gente que a busque para multiplicar seus interesses mesquinhos. Pode ser por meio das famigeradas fake news, mas, igualmente, com aquilo que permita reforçar a ignorância e os fanatismos. O sujeito iluminista que em outras épocas se esmerava para olhar com cuidado a realidade por meio da suspensão do julgamento até que pudesse examinar as razões que lhes eram apresentadas, cedeu a vez para o indivíduo que busca informações para satisfazer e confirmar as suas vontades e a sua ideia de mundo.

A diversidade acabou se transformando numa forma rápida de satisfação de necessidades cognitivas. A esfera pública brasileira não deixa de ser o exemplo mais claro desta triste e vergonhosa situação. Não há maluquice que não tenha um professor ou algum pregador nas redes sociais. Para qualquer posição política estúpida, perigosa ou antissocial, haverá sempre um número grande de seguidores. A maior tragédia nestes tempos sombrios é que estamos perdendo a empatia diante das desventuras pelas quais passam nossos semelhantes.

Aos poucos vamos desaprendendo a dialogar. Não conseguimos perceber que a diversidade é bela e inerente à condição humana. Não é ruim que cada qual compreenda o mundo à sua maneira. O problema é que olhamos para o outro não como alguém que apenas pensa diferente, mas, como alguém que por pensar diferente não merece o meu respeito, o meu afeto, a minha amizade. Quem sabe um dia ainda consigamos alcançar um pouco mais de tolerância.

A despeito de tantos infortúnios, que tenhamos a capacidade de seguir adiante cultivando esta esperança sem a qual os olhos, a boca e os corpos definham. Sem esperança, os olhos deixam de sorrir. Sem esperança, as bocas deixam de proclamar palavras de alento. Necessitamos uns dos outros para nos sentirmos vivos nem tanto pela felicidade que nos une, mas, porque na dor e desafios do cotidiano nos enxergamos e conhecemos melhor.

quarta-feira, 19 de agosto de 2020

SOBRE A IMBECILIDADE HUMANA Uma leitura de Ortega y Gasset

O filósofo, historiador e jornalista, José Ortega y Gasset, no início do século 20, relatou a sua angústia e tormento com a experiência de entrar em contato com a imbecilidade e, perplexo, se perguntava pelos motivos de não haver estudos sobre este fenômeno. Passados quase 100 anos, muito se escreveu sobre este comportamento humano. Talvez seja o momento oportuno de analisar a questão frente à realidade brasileira nestes dias sombrios. 

Para a maioria dos pesquisadores do comportamento humano, a imbecilidade seria consequência de um desenvolvimento anormal da psique. Isso, entrementes, condenaria o indivíduo a um eterno estado pueril na compreensão do seu papel no mundo. Os imbecis seriam, portanto, pessoas fáceis de serem sugestionadas. Acreditariam em coisas conforme a sua própria lógica de pensamento. Costumam se deixar levar por discursos descolados da realidade e imaginam conspirações. Não raro, suscitam delírios para além daquilo que os fatos evidenciam. 

Não é nova esta perspectiva de que a sociedade nada mais é do que uma comunhão de pessoas que se comprometem em viver juntas, buscando resultados e a partilha de suas vivências. Mas, como toda organização, é preciso existir uma certa reciprocidade e, principalmente, organização e liderança. Para o pensador espanhol, a civilização só chegou a um nível de desenvolvimento social, científico, econômico e industrial, porque foi liderada, na maioria das vezes, por personalidades que respeitaram o conhecimento histórico, que nada mais é do que a soma dos valores, princípios e saberes acumulados pelos seres humanos em sua trajetória. 

De acordo com Ortega y Gasset os imbecis sempre existiram. Sempre estiveram presentes no cotidiano das interações humanas, mas, em geral, não tinham um papel tão relevante na sociedade: eram desprezados. O que diferencia as pessoas, segundo o pensador, é o espírito reflexivo. Existiria uma categoria de homens e mulheres que se exigem muito e acumulam sobre si dificuldades, deveres e insegurança e, por extensão, começam a descortinar o mundo com curiosidade, pois o mundo é estranho e também maravilhoso para quem se atreve a contemplá-lo com os olhos abertos e as mentes não fechadas. 

Essa categoria de pessoas, na visão de Ortega Y Gasset, constitui um grupo em constante estado de alerta para os fenômenos da vida, da cultura, das artes, da ciência e do conhecimento. Todo aquele que se colocar diante da existência em uma atitude séria, e se fizer plenamente responsável por ela, sentirá certo tipo de insegurança que lhe incita a permanecer alerta. Não é por outra acaso que Albert Einstein, por exemplo, foi alguém que deixou registrado em suas memórias que o mistério da vida lhe causava a mais forte emoção. Um sentimento que suscitava a beleza das descobertas e da ciência. Para Einstein, se alguém não era capaz de conhecer esta sensação, ou não poderia mais experimentar espanto ou surpresa, já seria um morto-vivo, com os olhos absorvidos pela cegueira. 

Importa lembrar também dos enormes contingentes de pessoas que, embora herdeiros de um passado imenso, em inspiração e esforços, parecem nada ter aprendido. Qualquer lição ou experiência do passado não os compromete com os avanços da civilização, com o bem, a paz ou a justiça. Esta ausência de comprometimento com os valores, com certos ideais e com o próprio conhecimento histórico e científico, gerou um ser humano excêntrico. Alguém que olha para a sua incompletude, mas, não ousa buscar maiores explicações para aquilo que não conhece. É um indivíduo que, em geral, faz transparecer que sabe tudo, que opina sobre tudo e, pior, acredita ter razão em tudo. Ao contrário do ser humano que busca segurança nas lições do passado ou em outros indivíduos que deixaram as suas marcas como legado, o que se percebe nos dias atuais, é uma massa de gente com pensamentos imutáveis. São detentores de um repertório de ideias prontas. Se consideraram intelectualmente completos. 

Para o erudito pensador espanhol, durante a história da civilização ocidental, este tipo de atitude sempre esteve presente. O detalhe é que não havia uma inserção destas pessoas na condução da vida pública. Paulatinamente, no entanto, passaram a exercer maior protagonismo na sociedade. Um indivíduo não comprometido com o conhecimento científico, cultural e social, mas, paradoxalmente, seguro de possuir pleno capacidade para lidar com os temas que envolvam a sociedade. Alguém que, na maioria das vezes, almeja impor as suas verdades. Talvez esteja justamente nesta atitude o alicerce para um estado de violência, do uso desmedido da força, da intolerância e da inaptidão para construir caminhos por meio do diálogo. 

Albert Einstein dizia que a violência fascinava os seres moralmente mais fracos. Para ele, o ser humano livre, criador e sensível, seria capaz de modelar o belo e exaltar o sublime. Por sua vez, quem negava este princípio, infelizmente, continuaria a ser arrastado por uma dança infernal de imbecilidade e de embrutecimento. Aliás, esta correlação entre ignorância e violência é bastante antiga na história do mundo. A busca e a valorização do conhecimento; o respeito ao saber histórico; a constante evolução científica e o culto aos valores primordiais da solidariedade e do bem comum, são características que distanciam a sociedade do estado de guerra. Em resumo, trata-se, pois, de entender o papel do conhecimento e da educação. 

É desolador perceber que a imbecilidade parece ter eclodido em cada canto do Brasil nos últimos tempos. Rememorando as indagações de Ortega y Gasset, a mais de um século, pode-se afirmar, sem titubear, que o imbecil dos tempos atuais também não pensa, não avalia o mundo, suas transformações e faz pouco caso de alguma virtude artística, intelectual ou científica. O papel das redes sociais e da evolução dos meios de comunicação de massa, de notícias falsas e outros mecanismos firmados na desinformação tiveram um papel fundamental para chegarmos a esta situação lamentável. Não há dúvida de que o indivíduo dos nossos dias encontrou muitos meios para se conectar, formando agora uma massa de seres humanos que não hesita em cultuar a violência, a ignorância, o não saber histórico e científico, o desapego aos valores importantes da paz e do amor. 

Umberto Eco, outro notável pensador, soube antever este fenômeno no qual as redes sociais dariam o direito à fala a uma legião de indivíduos que, anteriormente, talvez ousassem articular suas asneiras só em algum boteco de esquina depois de entornar algumas cervejas, mas, mesmo assim, sem causar maiores danos à coletividade. Antes, esta meia dúzia ficava restrita a um pequeno círculo de abobalhados. Agora eles parecem ter os mesmos direitos à fala que um ganhador de Prêmio Nobel. O drama dos nosso dias é que a internet promoveu os idiotas a portadores de verdade universais. 

Ainda que sejam compartilhados como verdades e valores particulares, é preciso reconhecer que exercem, hoje, forte influência nos destinos das pessoas. Afinal, não é novidade que o conhecimento científico é diariamente desprezado. Há quem defenda, por exemplo, que a terra não é redonda; que recomenda não ser preciso vacinar crianças e idosos; que o isolamento social em tempos de Pandemia não tem efeitos no controle de contágio; que imagina, genericamente, tratamentos e medicações que não servem para a resolução dos problemas. Todos que, de alguma maneira, lidam com o mundo do conhecimento e a pesquisa devem estar refletindo nestes tempos sombrios sobre o que mesmo tem valido centenas de anos de pesquisa, estudos e dedicação na direção de uma maior evolução científica. 

No campo das relações sociais e da convivência, os imbecis de nossos dias já nem ousam mais esconder seus preconceitos, sobretudo, quando se trata de diferenças de identidade sexual, raça ou cor da pele. Se faz piada daquilo que não tem graça e se trata quem pensa diferente como inimigo. Pior, se despreza o sofrimento. Celebra-se o confronto, a morte e a desunião. É um modelo de sociedade que triunfa exaltando a violência, a ignorância e a desinformação. Não existe empatia ou compaixão com o sofrimento alheio. 

A violência cansa; a ciência sempre comprova a sua importância; as instituições democráticas, ainda que passiveis de muitas críticas, continuarão sendo a melhor expressão do bem comum. Não conseguiremos sair deste momento deplorável se o conhecimento não avançar e as lições do passado não forem assimiladas. Necessitamos, pois, de centelhas da lucidez impactando nesta nossa sociedade tão maltratada. Só com a nossa capacidade crítica, solidária e firmada na empatia que poderemos transformar a realidade de modo que as futuras gerações se inspirem em exemplos que valham a pena serem seguidos. 

Para mim, a constatação é inevitável Se Ortega y Gasset ainda estivesse vivo e presenciasse a realidade que estamos vivendo hoje, ele seria enfático: estamos sendo dirigidos por imbecis!

sexta-feira, 5 de junho de 2020

TRISTES TEMPOS!

          O que fizemos para chegar a um estado de coisas tão absurdo? Será que um dia ainda haveremos de recuperar certos valores elementares à convivência? Acabar com esse abuso diário de mentiras, interesses mesquinhos, falta de empatia? Tenho evitado de me pronunciar nas redes sociais, até por que o que tenho visto é desalentador.

          A poucas semanas lamentávamos surpresos as milhares de mortes na Itália e Espanha. Já passamos estes números e pode ser que nem tenhamos chegado ao pico da doença. Até hoje somamos, conforme dados oficiais, mais de 34 mil mortes. Só ontem foram quase 1.500. Isso significa uma a cada minuto. Em apenas um dia tivemos quase o dobro de mortes da Argentina, Uruguai e Paraguai somados em todo o período da Pandemia. Pior, é certo que os nossos números estão defasados por conta da sub notificação. E o que se vê nas redes é xingamento, desaforo, teoria da conspiração, em um mundo paralelo que desconsidera o próximo.

          É tão tosco, bárbaro e medíocre que minha mente insiste em não acreditar. Como fomos capazes de ser aprisionados por uma loucura dessa envergadura? Há quem diga que sairemos da Pandemia melhores. Não tenho certeza. A impressão é que a cada dia que passa, pioramos. Saudades dos tempos em que sabíamos chorar pelas 70 mortes do avião da Chapecoense ou as 242 mortes da Boate Kiss. Como disse um amigo outro dia: o maior perigo da pandemia parece ser a “humanidade baixa”.

          Estamos perdendo a nossa capacidade para olhar aquilo que está aí de forma clara e inquestionável! Como se não bastasse, somos diariamente esculachados por quem deveria ser o primeiro a cuidar de cada brasileiro e brasileira. Falta sensibilidade, empatia e um pingo de compaixão. Agora atrasam a publicação de mortos para não dar tempo de mostrar nos telejornais e usam as verbas que garantiriam um pedaço de pão a quem não tem para fazer propaganda. Fico a me perguntar o que se passa na cabeça de quem insiste em desprezar a orientação da esmagadora maioria dos cientistas pelo mundo afora? Que loucura!

         É triste ver que o esforço para resguardar a população seja, diariamente, sabotado pelo chefe da nação. Um pandemônio de brigas, insensatez e conflitos. A pandemia é relegada a um lugar secundário em relação à sobrevivência política de quem se encontra envolvido até o pescoço. O que é a morte de alguns milhares?

         Felizmente, sim, felizmente, ainda temos muitas pessoas, grupos e entidades, que buscam fazer a diferença; São as defenestradas ONGs produzindo máscaras; professores distribuindo cestas básicas, estudantes auxiliando quem precisa de cuidados. Gente se virando para amenizar a fome de quem nem conhece.

          Onde estão os tais “patriotas” que nada fazem a não ser xingar e defender as asneiras diárias que se multiplicam em meio ao sofrimento? Pessoas que só sabem usar certos valores para distorcê-los na sua cruzada contra a lista de inimigos que aumenta diariamente. É gente sem noção, sem perspectiva, autocontrole e que nos intoxica diariamente.

          É triste e desalentador.

quinta-feira, 28 de maio de 2020

CRISE OU OPORTUNIDADE?

Nesses tempos de pandemia mundial, há questionamentos sobre o fato da população brasileira ignorar as orientações dos órgãos oficiais de saúde, que indicam o isolamento como forma de conter a propagação do vírus. Para entender os motivos é preciso reconhecer que, para além de certos protagonistas da governança pública, temos a negação histórica do acesso a uma educação capaz de transformar corações e mentes e que, em momentos iguais ao que estamos vivendo, agrava o caos o social.

Esta negação, cunhada na estrutura de uma sociedade racista, patriarcal e de exploração, perdura por meio de nossa herança escravagista colonial, potencializada na recrudescência desta incapacidade para aceitar opiniões divergentes, transformando o outro em inimigo e, portanto, sempre induzindo de que deveria viver em outros países, pois, talvez, não seja digno de exercitar a sua cidadania por estas plagas.

A ignorância funcional de uma camada do povo brasileiro serve a um projeto de poder de gente que sempre deu as cartas neste país e que tem na mercantilização da vida humana a sua principal fonte de dividendos. O sistema capitalista, ao promover a exacerbação do lucro, aprofunda este rompimento da humanidade com valores essências ao bem comum. É a produção e a reprodução de uma dinâmica que não serve a todos e todas. Que morra o povo, mas que não cessem os lucros de alguns.

O que tenho visto, e o faço com muita tristeza, é uma profunda ignorância enraizada em alguns setores da sociedade brasileira. Estamos vivendo um período histórico em que as análises tendem a ser individualizadas e colocadas em certas caixinhas conforme determinadas pretensões pessoais. Existe um rebaixamento da ciência e do conhecimento, em geral, visto como alienante e a aquilo que se cunhou como “ideologia” mesmo que a maioria nem saiba ao certo do que esteja falando, mas, mesmo assim, prefere resposta simplórias presentes em análises facebuqueanas reproduzidas de forma acrítica e agressiva.

Não é por caso que só em 2018, segundo dados oficiais do IBGE, o índice de analfabetismo absoluto no Brasil era de 11,3 milhões de pessoas com 15 anos ou mais de idade, e o analfabetismo funcional chegava a quase 40 milhões de pessoas. Este é o cenário que marca esta incapacidade de compreender a realidade para além de análises simplórias, mas, muito mais, alinhadas por certas simpatias pessoais. O enraizamento da ignorância sempre foi, mas agora parece ter ampliado seus tentáculos nas ideias obscurantistas.

Não são dados menores esses demonstrativos da educação, sobretudo quando se aprofunda o olhar de quando, como e quem acessa o ensino público brasileiro, bem como, sobre qual cartilha a escola fundamenta os seus pilares e a quais interesses ela se submete enquanto projeto de sociedade. Se pensarmos que a educação como um direito social foi instituído na década de 1930, mas que tenha sido somente em 1988 que o ensino obrigatório foi assumido pela Constituição, visualiza-se o tamanho da reparação histórica que este país ainda necessita realizar com a sua população.

Na medida em que a reparação histórica não se realiza, estaremos submetidos à perversidade de quem dá as cartas e que não tem nenhum pudor em garantir os seus interesses. A mesquinhez expõe todo o povo e retira a possibilidade de exercitar a própria soberania. Frear qualquer avanço educacional para superar as injustiças parece não ser a preocupação de quem teria o poder de fazê-lo. A tal democracia brasileira segue sendo uma brincadeira do gato e o rato.

Portanto, podemos estar nas redes sociais lamentando que o povo não está seguindo as regras impostas para esse período ou usar deste tempo para pensar, criar novos métodos de tomada de consciência e enfrentamento à ignorância imposta por um projeto de colonização que segue firme e coeso. Cabe neste momento, sobretudo, questionar se este tempo também não é uma janela histórica para transformar certas verdades e muitos dos nossos valores. Que tal recuperarmos, um pouco que seja, da empatia, da solidariedade e do amor ao próximo?

sexta-feira, 17 de abril de 2020

A CURA PARA O CORONAVÍRUS

      No mês passado, no meio da pandemia de Coronavírus, uma senhora de 90 anos faleceu na Bélgica após ter recusado o respirador mecânico para cedê-lo em favor de alguém mais jovem - “Guarde para alguém mais jovem. Eu vivi uma boa vida” - foram as suas últimas palavras para o médico horas antes de falecer.

       O inimigo invisível e implacável fez os líderes das grandes nações parecerem crianças assustadas, fez o Papa sozinho e cabisbaixo perdoar os nossos pecados, fez judeus e muçulmanos rezarem juntos. As nossas tradicionais armaduras falharam. De nada adiantou o poderio militar. Nossos planos de saúde não foram suficientes para abafar o receio da falta de equipamentos em nossas cabeças e, tampouco, nossos celulares, computadores e televisões sofisticados foram capazes de entreter no meio desta solidão sentida e vivenciada por todos/as.

     A pandemia parece ser mais uma parte de um filme bastante conhecido nesta sucessão de novas doenças que irromperam nas últimas décadas. Ao mudar de forma drástica e abrupta a vida do planeta, também oferece uma grande oportunidade para repensar escolhas. Sentimo-nos amedrontados e sozinhos. Diante de algo que não sabemos como e nem quando vai acabar, vislumbramos a pequenez e a fragilidade.

      Fomos obrigados a aprender que é necessário sair dos nossos tronos, das nossas bolhas, das nossas realidades. Começamos a perceber que a doença que mata alguém de perto, também é capaz de matar quem mora do outro lado do mundo. Passamos a enxergar a importância de profissões que muitas vezes eram vistas pela lógica capitalista como dispensáveis. Constatamos que o medicamento que me falta também faltará para quem mora na favela. Sentimos que a mesma solidão que se abate sobre mim, angustia o meu semelhante. Alguém que tem um nome, cor, origem e religião diferentes dos meus.

      Infelizmente, uma parcela da população continua vivendo em um mundo onde todo este estado de coisas lhes soa como mentira e onde, por extensão, quem diz a verdade, não raro, é visto como mentiroso. É gente que sofre, faz sofrer e não consegue dialogar. Uma escolha política não significa unicamente se declarar a favor de determinado partido, ideologia ou candidato. Quer dizer, principalmente, que é preciso escolher como tratar o vizinho, não jogar o lixo pela janela do carro, sonegar impostos, burlar licitações ou prejudicar um colega de trabalho para obter algum benefício.

      Estamos, pois, sendo obrigados a admitir aquilo que já sabíamos, mas que não queríamos aceitar: somos todos parte desta aldeia global e fazemos parte de uma mesma jornada. No final das contas, pouco importa o dinheiro, o status ou os privilégios. Encolhemo-nos de medo das mesmas coisas e sentimos compaixão diante dos números que crescem, seja na Itália, na Espanha, nos Estados Unidos ou no Brasil.

      Se antes bastava se esconder no próprio cantinho imaginando que a situação não nos afetaria, agora, para que eu seja protegido, preciso proteger também aos outros. A conta do nosso egoísmo chegou, cara e sem nenhum desconto. Não será a cloroquina que haverá de amenizar estes tempos sombrios.

      A cura já existe: ela se chama solidariedade. Pode parecer estranho, não é mesmo? Mas a verdade é que chegamos a um ponto decisivo, uma curva de inflexão na qual, ou mudamos a maneira de conviver como sociedade, ou estaremos sempre à mercê de nosso próprio egoísmo disfarçado de vírus, de guerras, de crises econômicas ou governantes inescrupulosos.

     É a hora de abaixarmos nossas bandeiras ideológicas e substituí-las por um pouco mais de empatia, bom-senso e álcool gel. Construamos, unidos, nesse momento difícil, uma nação melhor e mais solidária, para que possamos deixar, após a crise, um país melhor para as gerações futuras.

     Tempos difíceis servem para algumas coisas. Entre elas, grandes aprendizados e reflexões incômodas. O exemplo daquela senhora na Bélgica que cedeu o seu equipamento, de alguma maneira, também deveria nos impactar. No fundo, não se trata do equipamento, mas, sobre o legado e os valores que estamos construindo nesse momento decisivo em nossa caminhada.

terça-feira, 17 de março de 2020

A Viagem da Vida

A vida é como uma viagem de trem, com suas estações, alguns acidentes, surpresas, tristezas, lições. Quando nascemos, imaginamos que muitas pessoas especiais sempre haverão de nos acompanhar em nossa jornada. No entanto, logo percebemos que pessoas queridas, ficarão em alguma estação do caminho e nós teremos que continuar sem a sua companhia e amor.

Assim como nos despedimos de pessoas especiais, outras haverão de estar conosco no caminho. É provável que algumas tomarão o trem para descer em alguma estação próxima. Poderão até passar meio despercebidas. Mal nos daremos conta de que deixarão seus assentos desocupados. Outros conseguirão fazer da viagem um tempo irritante e dispendioso. Pode ser que até nos façam desejar desembarcar o mais rápido possível.

Sempre existirão aqueles e aquelas que ao descer, deixarão um vazio definitivo. Existirão também os que mesmo amadas, ficarão em vagões diferentes dos nossos. Durante o percurso permanecerão meio distantes sem que tenhamos a oportunidade de nos sentarmos a seu lado.

A jornada desta vida é cheia de desafios, sonhos, fantasias, alegrias, tristezas, esperas e despedidas. Talvez, o conselho mais importante seja mesmo manter um bom relacionamento com todos os passageiros, procurando em cada um o melhor que eles têm para oferecer.

Com o tempo, aprender a conviver com alguns e tolerar outros. Necessitamos aprender a caminhar ao lado de gente que, na verdade, talvez nem gostaríamos de ter por perto. Apesar dos pesares, eles também consolidam importantes lições e sempre haverão de nos desafiar a sermos melhores.

Ao longo da viagem nesta vida encontraremos quem não partilha dos nossos valores, ideais e sonhos. Gente que é capaz de se mostrar mais pelas facetas do egoísmo, da indiferença ou incapacidade para dialogar. Elas também haverão de nos estimular para que a vida não esteja submissa apenas às tristezas ou mágoas.

Um dos maiores ensinamentos sempre será aprender a lidar com quem nos machucou no decorrer da viagem. Com o passar do tempo, uma das grandes empreitadas em nossa existência será nos tornarmos pessoas mais tolerantes, mas, também, olharmos para as diferentes facetas da vida como lições que nos auxiliam a sermos pessoas que buscam contribuir para o bem comum de forma sábia e equilibrada.

Há pessoas que gostaríamos de ter sempre ao nosso lado. Infelizmente, todo mundo haverá de desembarcar em alguma estação. O grande mistério é que não sabemos em qual estação devemos descer, mas, independentemente do trajeto ou momento, é preciso sempre se esforçar para que a viagem valha a pena, afinal, talvez seja a última.

terça-feira, 3 de março de 2020

A Ignorância e o Poder

Nestes dias conturbados em que presenciamos situações esdrúxulas a cada minuto, a figura do autômato descrita pelo Filósofo e Historiador Alemão, Walter Benjamin, parece fazer bastante sentido. Em seu texto “Conceitos Sobre História”, ele caracteriza assim este personagem: “Conhecemos a história de um autômato construído de tal modo que podia responder a cada lance de um jogador de xadrez com um contra lance, que lhe assegurava a vitória. Um fantoche vestido à turca, com um narguilé na boca, sentava-se diante do tabuleiro, colocado numa grande mesa. Um sistema de espelhos criava a ilusão de que a mesa era totalmente visível, em todos os seus pormenores. Na realidade, um anão corcunda se escondia nela, um mestre no xadrez, que dirigia com cordéis a mão do fantoche.”

O que exprime a ideia da figura de um autômato fantoche, deixa claro as nuances da situação brasileira atual. Vivemos como se fôssemos uma população robotizada, passando por falsas transformações que ocultam uma continuidade de engrenagens do poder que se perpetuam desde a formação do país. Assim como em um jogo de xadrez, nossas jogadas são com as cartas marcadas. Embora as peças sejam diferentes ao longo dos anos, nossa situação, graças aos tantos mecanismos que fomos aceitando, garante a perpetuação de uma série de abusos.

Desde o período colonial até o grito do Ipiranga proclamado por um inexperiente português com disenteria; da pompa imperial a república velha e seu voto de cabresto; do Estado novo de Vargas ao período de exceção confluindo para os dias atuais, o que se vislumbra é uma estranha democracia republicana cheia de conveniências. Mudaram os sistemas de governo, as pessoas, os políticos, as premissas da economia, mas a lógica do poder conseguiu se manter independente do período.

São hábitos, costumes e uma certa cultura política e educacional calcada no uso do estado, da nação e de todos os seus dispositivos para perpetuação de um modelo voltado para o ego individualista, onde poucos se beneficiam com as mazelas da maioria. Onde deveriam, sim, existir ações e pensamentos voltados para o bem-estar de todos. Mas, o que vale mesmo é o sucesso individual, baseado na desgraça dos outros.

Instituições, empresas, órgãos públicos ou privados e a própria população são imbuídas de uma crença onde o seu interesse deve ser garantido para que os objetivos, as metas e a satisfação pessoal sejam supridos. Por este caminho, o que ocorre é uma cegueira geral onde a empatia pelo outro passa a ser desnecessária. Onde se busca garantir as necessidades de vida, consumo, lazer, segurança, saúde, educação, mas, onde, em contrapartida, o desenvolvimento atinge as expectativas e a estabilidade para aqueles que pertencem a um seleto grupo. Vale mais o ganho individual em detrimento do interesse coletivo.

É esta a realidade do Brasil. Uma população com suas ilusões criadas por uma política que mesmo mudando jogadas e jogadores, consegue perpetuar processos e atingir os mesmos resultados, não importando se a partida e o sistema forem diferentes. O resultado sempre será o mesmo, ludibriando e dando a falsa ilusão para aqueles que estão envolvidos no jogo, que podem conseguir uma vitória quando uma nova partida se inicia.

sexta-feira, 10 de janeiro de 2020

A APROPRIAÇÃO DA REALIDADE E O FIM DA SOLIDARIEDADE

Existe um conjunto de imagens que se têm do mundo, do Estado, da sociedade, dos indivíduos, das relações sociais, da economia e da religião. Nos dias atuais, esse conjunto de imagens, na maioria das vezes, é chamado de “neoliberal”, na medida em que leva as pessoas a se colocarem a serviço do mercado e dos interesses dos detentores do poder econômico.

O “imaginário”, que faz com que o indivíduo se perceba como parte de uma engrenagem em busca de lucros e que aos poucos foi se transformando em algo “normal”, reforça um modo de pensar e atuar no dia a dia a partir de categorias como “interesse”, “lucro”, “concorrência”. Não por acaso, a percepção que os indivíduos podem adquirir uns dos outros é que estes são concorrentes que precisam ser derrotados de alguma maneira.
O imaginário e o simbólico formam a realidade. Se percebo uma determinada situação é porque um conjunto de imagens passa a produzir um mínimo sentido a partir da linguagem e seus limites. Todavia, esta relação entre o imaginário e o simbólico na construção da realidade é sempre dinâmica e sujeita a muitas variações. O empobrecimento da linguagem e a busca da satisfação dos interesses pessoais, são sintomas desse processo de desaparecimento de valores e do enfraquecimento dos limites éticos que se percebe nas ações tanto dos agentes do Estado quanto das pessoas mais simples.

No imaginário neoliberal, a essência humana, a saber, a verdade, o belo e o justo, são abandonados em razão da ilusão criada pela promessa do consumo e da acumulação como sinônimos da realização plena. Isso leva ao enfraquecimento de certos princípios e, em consequência, da própria ética. O desejo só existe em razão de limites. É a falta que gera o ato de desejar. Por isso, não é um acaso que estejamos vivendo tempos nos quais a própria razão de existir, em alguns momentos, tem mais a ver com o que se pode ter do que aquilo que se consegue sentir.

Trata-se de um entendimento que leva à neutralização do imperativo de pensar. O que se dá, por exemplo, através tanto da promessa de uma simplificação do mundo quanto das falsificações da história. A pouca capacidade de discernimento das imagens da “política’, do “comum” e do “espaço público” ligam-se a essa tentativa de construir uma ideia de que o pensamento é quase desnecessário e a capacidade de reflexão cada vez menor.

As escolhas políticas, da mesma maneira que os julgamentos pelo sistema de justiça, se fazem a partir das imagens que cada sociedade e cada indivíduo que exerce poder faz do que seja “justiça social” ou “economia justa”. Por evidente, a relativização dos valores acerca da “justiça” e a “coisificação” da vida, são imagens típicas dos nosso dias e repercutem sobre nossas escolhas. As nossas decisões partem das imagens que temos sobre nosso lugar na sociedade, como vemos as coisas e de que maneira compreendemos as pessoas com as quais convivemos.

Existem imagens que naturalizam as opressões e os processos de dominação. As relações de forças não são apenas materiais, mas, também ideológicas, ou seja, não é necessário recorrer à violência contra uma pessoa para poder exercer a sua dominação. Ao contrário, os atos de força são exceções, até porque constituem meios pouco eficazes de se exercer poder sobre o outro. Há imagens que podem manipular vontades, imagens capazes de dominar e imagens com a força para naturalizar diferentes formas de opressão. Em nome da pretensa liberdade, portanto, pode-se, inclusive, construir uma lógica para aprisionar corpos e mentes.