terça-feira, 29 de dezembro de 2020

A LEI OU O EVANGELHO?

De um lado, os fariseus, doutores da lei, diligentes e rigorosos na aplicação das normas. Roubou? Deve pagar em dobro. Matou? Deve morrer. De outro, Jesus, tentando ensinar o caminho da misericórdia e do amor. Dois milênios mais tarde, a humanidade parece não ter perdido o impulso para condenar. Talvez o paralelo mais próximo do rigorismo moral e religioso na cultura ocidental seja o linchamento nas redes sociais e a chamada cultura da lacração e do cancelamento.

Essa apropriação do nome de Deus, dos símbolos e a lógica da religião para legitimar um projeto de poder é uma apropriação indevida e totalitária. Nada tem a ver com uma sociedade plural, muito menos com aquilo que se conhece como Estado democrático e de direito. Evidentemente que este tipo de situação não é algo novo, mas, por outro lado, é inegável que tenha se acirrado nos últimos tempos.

Se no Antigo Testamento a divindade era vista como alguém capaz de exigir fidelidade irrestrita sob pena de juízo, podendo tirar a vida e até exterminar o povo, com Jesus, o peregrino de Nazaré, ocorre uma mudança de compreensão. A fé cristã se traduz a partir de uma mensagem na qual Deus é a presença e a consolidação do amor. Trata-se de um Deus que não deveria ser temido, pois é alguém com quem as pessoas podem se relacionar pela linguagem do afeto e da generosidade.

Das coisas que a vida já me permitiu ver e aprender, afirmo sem titubear, julgamentos, condenações ou apedrejamentos, nunca serão parte da essência ou do caráter de Deus. Pelo mesmo motivo, interpretações moralizantes em relação a homofobia, xenofobia ou racismo, também são incompatíveis com aquilo que foi manifestado por Jesus. Ele ama as todas as pessoas independentemente da sua condição existencial, do seu gênero e, também, de suas possíveis transgressões.

Como não lembrar das inúmeras situações que vivenciamos aqui no Brasil no decorrer do ano 2020? Em meio a centenas, talvez milhares de casos, lembro aqui apenas do episódio da menina de dez anos que ficou grávida após ser estuprada por quatro anos por um tio. Por correr perigo de vida e não ter qualquer condição física ou emocional, foi submetida a um aborto por recomendação médica e com autorização judicial. O procedimento foi duramente criticado por alguns grupos religiosos. Reunidos na porta do hospital, manifestantes chamaram o médico de assassino e tentaram impedir a entrada da criança e de sua família no prédio.

Trata-se de um dos episódios mais tristes dos últimos tempos. Um fato vergonhoso e revoltante. O que foi feito com a criança é de uma crueldade inominável. Tanto o abuso sofrido quanto o julgamento e o linchamento moral, são páginas terríveis. Uma criança que deveria ser protegida de todas as formas, acabou sendo condenada em nome de uma pretensa moral religiosa. O caminho da misericórdia recomendado por Jesus, aparentemente, não supunha a preservação da vida da menina. Prevalecia o poder da lei contida no Antigo Testamento.

Vejamos: uma gravidez como consequência de um estupro, e, portanto, de uma violência contra uma criança sem qualquer condição de gerar filhos, coloca um ser humano em um sofrimento absurdo. A despeito de qualquer conhecimento bíblico, cientifico ou médico, é preciso exercitar a solidariedade, o afeto, o apoio emocional, psíquico e espiritual, diante de algo tão trágico. Jesus não estava preocupado em ser um juiz implacável. Buscava, antes, ser compassivo, misericordioso, amoroso. Alguém que se importava em compreender as angústias e vicissitudes inerentes à condição humana.

Parece evidente que nos últimos anos, e de forma cada vez mais incisiva, o espaço público brasileiro vem se notabilizando pela viabilidade de um projeto de poder político que tende a se sustentar de acordo com a lógica do Primeiro Testamento. Fazendo prevalecer um modelo teocrático. Um líder que age e governa em nome de Deus. No entanto, este “governar em nome de Deus” é, sobretudo, impor uma verdade ou lei religiosa. No imaginário popular e, por consequência, no senso comum, se quem governa age em nome de Deus, por definição, não deveria sofrer questionamentos.

A história ensina que qualquer tentativa de dar ao poder político uma inspiração transcendental, em muitos lugares e situações, sempre se mostrou muito perigoso. Alguém que esteja exercitando o seu poder e a sua função no âmbito de um Estado democrático de direito, especialmente em uma sociedade plural e republicana, como no caso do Brasil, estará, invariavelmente, sujeito a questionamentos. É importante nunca desconsiderar o fato de que o poder público existe para defender a equidade, a justiça, a imparcialidade, os interesses de toda as forças presentes em uma sociedade, inclusive aquelas de incidência minoritária.

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