sexta-feira, 31 de agosto de 2018

JORNALISMO EFICIENTE

O avanço dos extremismos suscita a discussão acerca do melhor modo como os líderes políticos deveriam ser questionados. Nos Estados Unidos, na Europa e agora no Brasil, já existem jornalistas buscando descobrir maneiras de entrevistar sem estender propostas antidemocráticas. A experiência americana com Donald Trump dá a entender que o confronto com questões absurdas do racismo e da homofobia, por exemplo, pode não funcionar. São exatamente os absurdos que aumentam o capital político de certos protagonistas da arena pública. Os grandes temas acabam ficando em segundo plano.

No ano passado, o partido alemão AFD conquistou seus primeiros assentos no parlamento explorando um sentimento negativo em relação aos refugiados. Há poucas semanas, Alexander Gauland, dirigente principal do partido, participou de uma entrevista numa das maiores redes de televisão do país. O jornalista Thomas Walde da rede ZDF conduziu sua entrevista sem tocar no tema dos refugiados, a principal bandeira do partido. Durante quase meia hora, o extremista se viu obrigado a tratar de assuntos que estavam fora da sua zona de conforto, como a previdência, mudanças climáticas, economia e educação. Temas muito relevantes para a Alemanha, maiores até do que a questão dos refugiados. O desempenho de Gauland foi desastroso.

Depois da entrevista, Gauland atacou o jornalista dizendo que este havia sido “excessivamente tendencioso”. As perguntas simples irritaram também o exército de militantes virtuais que atacaram o profissional em suas redes sociais. Não é diferente aquilo que ocorre no Brasil quando se busca justificar a incapacidade de argumentação de certo postulante na eleição majoritária.

Acredito que por mais absurdos que sejam certos ideais, são as questões que tratam das propostas de governo para a geração de empregos, para a resolução dos problemas de saúde, educação, economia, segurança, transporte, moradia, saneamento, que deveriam merecer especial atenção. Multiplicar questões menores, em última análise, não deixa de ser uma maneira de desviar o foco daquilo que realmente interessa. Um jornalismo eficiente não pode ceder ao sensacionalismo e nem tergiversar acerca de temas candentes da vida cotidiana.

O fato de um candidato não ter noção e nem proposta para os problemas básicos que poderá vir a enfrentar como presidente deve ser cada vez mais exposto. O povo quer emprego, segurança e comida na mesa, e, para isso, é preciso que fique claro que algumas frases de efeito ou falsas polêmicas em nada corroboram com aquilo que precisa ser enfrentado.

A despeito de alardear certas bobagens para seguidores em alguma bolha nas redes sociais, importa mesmo é que quando o indivíduo sair delas, seja confrontado com questões do mundo real. Não dá para ser presidente de um país em profunda crise apenas polemizando acerca de uma pretensa moral ou bons costumes, enquanto que na economia, na educação e na saúde, as coisas vão de mal a pior. Não se governa um país buscando respostas em algum “posto Ipiranga”.

sexta-feira, 24 de agosto de 2018

O PENSAMENTO AUTORITÁRIO

Quase sete décadas atrás, no ano de 1950, foram publicadas as conclusões de uma pesquisa coordenada por um dos maiores intelectuais de nosso tempo, o filósofo, sociólogo e compositor alemão, Theodor Adorno. Com o fim da 2ª Guerra Mundial e a derrota nazista, o objetivo era compreender em que medida a sociedade e os seus indivíduos alinhados com o fascismo estavam vulneráveis à propaganda antidemocrática. Os dados produzidos não deixaram dúvidas quanto aos sentidos autoritários presentes na sociedade.

As características da personalidade autoritária identificados por Adorno demonstram que as convicções políticas, econômicas e sociais, formavam um padrão de “mentalidade”. Se olharmos para o Brasil, por extensão, o que é possível perceber nos últimos anos é uma mentalidade que vislumbra o conteúdo da democracia como um obstáculo a ser afastado em nome da eficiência do Estado.

Tendo como pano de fundo as questões suscitadas por Adorno, ouso referir que vivemos em adesão a certos valores, mesmo que estes estejam em desconformidade com os direitos e garantias fundamentais escritos na Constituição. Assim, se é possível encontrar apoio ao linchamento de supostos infratores ou à violência policial, o juiz autoritário tende a julgar de acordo com certas opiniões, naturalizando estes fenômenos. Atos como os linchamentos ou os exageros policiais tornaram-se objeto de aplausos e até de incentivo nos meios de comunicação e passam a integrar o repertório das ações aceitas.

Vivemos uma tendência para a intolerância com base em uma distorcida percepção da realidade. É fácil ver gente condenando atitudes que violam certos valores “convencionais”. No entanto, como em geral os indivíduos não estão dispostos a uma autocrítica acerca dos seus próprios valores, a tendência é condenar quem os viola, sem entender as razões pelas quais estas questões se manifestam. É como se existisse uma necessidade compulsiva de escolher um “bode expiatório” para descarregar as próprias mazelas.

O que é possível vislumbrar com clareza em nossos dias é também uma clara oposição à mentalidade subjetiva, imaginativa e sensível. Uma impaciência para exercitar o diálogo e um desprezo por qualquer análise que busque a compreensão mais profunda e elaborada daquilo que acontece à nossa volta. Quem ousa manifestar-se nesta direção, corre o risco de ser criticado sem qualquer compaixão ou empatia. A percepção da realidade acaba sendo meio primitiva, simplista, recheada de preconceitos.

Outro aspecto importante tem a ver com o alto grau de cinismo e hostilidade para desconsiderar os valores atrelados à ideia de dignidade humana. Há um desprezo à humanidade de tal modo que os juízos antidemocráticos são exercidos por meio de agressões vistas como adequadas e até necessárias. Ou seja, o indivíduo busca justificar a agressão ao outro, em especial quando acredita que esta é aceita pelo grupo com o qual ele convive. Quem não conhece esta disposição que algumas pessoas propagam de que vivemos a ameaça de “forças obscuras” a nos empurrar para o precipício? O individuo antidemocrático acredita que o mundo está à beira do caos e que sua função, ainda que insuficiente, é redimi-lo.

Na percepção da realidade autoritária o que acaba sendo recorrente é a criação de inimigos imaginários. O sujeito trabalha com estereótipos e preconceitos distanciados da experiência e do cotidiano. É por isso que vive alardeando fantasias e riscos sem amparo em dados concretos. No combate aos inimigos imaginários são evocados poderes, igualmente, imaginários. Trata-se de um discurso que coloca como condição a própria eliminação do inimigo ou de qualquer ameaça. Tem-se, então, o primado da hipótese sobre o fato. A verdade perde importância.

Entre outras questões, o pensamento autoritário é respaldado pela ignorância e a confusão. Uma personalidade que se desenvolve no vazio do pensamento. A dedução é que se o indivíduo não sabe sobre o que se manifesta, ele tende a substituir o conhecimento pela força em uma postura disfarçada que precisa preencher o vazio com chavões, senso comum, preconceitos. Não deixa de impressionar que nos dias atuais exista um grau de ignorância e confusão tão grande em pessoas com nível de formação relativamente alto.

A ignorância e a confusão vão gerando um quadro de estranhamento e ansiedade. A consequência é, em geral, recorrer a técnicas que afastem a ansiedade e orientem para posturas que busquem dividir o mundo e as pessoas em sua dicotomia: bom e mau, certo e errado, verdade e mentira. É como se houvesse a necessidade de uma etiqueta ou “caixinha”. Com base nesta atitude o indivíduo vive a ilusão de simplificar a realidade para não responder a aquilo que ele não conhece ou é capaz de dominar.

Por fim, uma personalidade autoritária, muitas vezes, caracteriza-se por recorrer a distorções de valores e categorias para alcançar resultados antidemocráticos. Há, nesses casos, um descompasso entre o discurso e a realidade. Isso ocorre, por exemplo, quando alguém defende práticas racistas em uma sociedade racista a partir da afirmação do princípio democrático da maioria. Ou seja, se a maioria for racista, o racismo estaria, pois, legitimado. A questão de fundo é que mesmo quando a pessoa estiver recorrendo ao argumento de uma pretensa maioria, ainda assim, continuará violando direitos e garantias fundamentais indispensáveis à convivência humana.

sexta-feira, 17 de agosto de 2018

OS REFUGIADOS E A CRISE HUMANITÁRIA


As imagens de crianças separadas dos pais pelo governo dos Estados Unidos ao tentarem entrar de forma ilegal no país provocaram comoção pelo mundo afora. Adultos passaram a ser processados criminalmente e encaminhados a presídios federais, enquanto crianças eram destinadas para abrigos. Os vídeos mostravam muitas delas, enjauladas, chorando.


Durante a campanha de Donald Trump à presidência, o tema da migração ganhou destaque com o candidato culpando os trabalhadores estrangeiros por muitas desgraças que aconteciam em solo americano. O postulante à casa branca responsabilizava os imigrantes, sobretudo, pelo aumento dos índices de roubos, estupros, tráfico de drogas. A construção de um muro isolando o México dos Estados Unidos tornou-se uma verdadeira obsessão.

É importante ressaltar que muitas corporações de países ricos ou em desenvolvimento sempre exploraram territórios nas periferias do mundo promovendo conflitos em nome dos recursos naturais ou de interesses geopolíticos estratégicos. Milhões de pessoas sofrem com atitudes assim e são obrigadas a deixar suas casas. Qual a alternativa que resta para esta gente senão buscar refúgio em outros países? No entanto, a dura realidade é que pouquíssimos são recebidos de braços abertos.

Em todo o mundo, a regra é culpar os migrantes por roubar empregos, trazer violência, sobrecarregar os serviços públicos. Na verdade, é mais fácil jogar a responsabilidade em quem não tem voz do que suscitar meios que garantam a dignidade humana. Qualquer pessoa que busca conhecer um pouco mais acerca das migrações sabe que este fluxo também é importante para a economia dos países ricos.

Países desenvolvidos, como os Estados Unidos, Alemanha, França, Itália ou a Suíça, apesar de venderem o discurso de que querem barrar a migração, sabem que dependem dela para ajudar a regular seu custo de mão de obra. É cômodo deixar uma contingente ao largo dos direitos como se fossem invisíveis, mas com muitos deveres e baixíssima remuneração. Para mim, o exemplo brasileiro que poderia ser considerado em perfeita similaridade a esta premissa são os milhões de barracos em nossas favelas. Uma espécie de campo de refugiados onde as pessoas não estão vinculadas a princípios elementares da cidadania.

Os relatórios do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) mostram que em torno de 85% dos refugiados estão nos países em desenvolvimento, muitos dos quais, extremamente pobres. Outro dado importante: Quatro em cada cinco refugiados permanecem em locais vizinhos aos de origem. Semelhante à questão da violência urbana em cidades como o Rio de Janeiro. Quem sofre as consequências são os pobres, mas os ricos acham que são eles os principais atingidos.

O número de pessoas forçadas a deixarem suas casas chegou a quase 70 milhões em 2017. Isso significa uma quantidade de gente equivalente a seis vezes a população do Estado do Rio Grande do Sul. Os principais países atingidos são a Síria (mais de 12 milhões), seguido pelo Afeganistão, Sudão, Mianmar e Somália.

No Brasil, mais que dobrou o número de refugiados, dos que pediram refúgio e daqueles que estão com permissão temporária para aqui residir. Em 2017, foram quase 150 mil pessoas, principalmente por conta da crise venezuelana. É normal que tenhamos medo daqueles que não conheçamos. Todavia, esse medo é, em geral, infundado, equivocado, preconceituoso. Os migrantes estrangeiros vêm em busca de oportunidades de vida, fugindo de guerras, da fome, dos desastres naturais.

Todos estão produzindo riquezas e desenvolvimento. No entanto, sob a perspectiva mal informada de parte da população, muitos acreditam que são eles que aqui vêm para ”roubar” empregos. Isso quando o preconceito não é recheado de uma paranoia infundada onde as pessoas são vistas como ladrões. A verdade é que muita gente quando questionada sobre os imigrantes, no fundo, nem sabe bem de onde vem o incômodo que sente ao constatar pessoas de outros países andando pelas ruas. Acredito que se fossem loiros e ricos, a história poderia ser diferente. No fundo, o problema é o racismo e o preconceito.

A história do Brasil e de outros países incluindo os Estados Unidos, é uma história de migrações. Cada qual a seu modo, foi acolhendo gente de todos os lugares. A maioria de nossos antepassados foi muito explorada quando por aqui chegou. Nossos avós, no passado, eram os forasteiros. Hoje, vejo com tristeza muitos criticando os forasteiros que chegam ao nosso país em busca de um pouco de dignidade.

domingo, 12 de agosto de 2018

BOA VONTADE

As civilizações se fortalecem na medida em que os seus indivíduos as lapidam, consolidando a convivência humana em bases profundas. Numa cruzada de crises e de decepções como as que vivemos no Brasil, carecemos também da boa vontade das pessoas. Precisamos de gente com sabedoria e disposta a abrir espaços em meio a tanta ignorância. Gente que se disponha a lançar os fundamentos para um modo de pensar e agir, para além daquilo que está posto.

É preciso desconfiar dos misticismos opressores e superficiais dos que correm por aí de Bíblia nas mãos e com horóscopos a dizer qualquer coisa que lhes vem à mente, como se fossem verdades absolutas. Talvez seja justamente no âmbito religioso onde mais somos atacados por pessoas despreparadas proclamando besteiras recheadas de preconceitos e enganando multidões. Os espertalhões metidos a inspirados por Deus atacam de todos os lados: no rádio, na televisão, nas mídias sociais, nos templos.

Não basta ficar repetindo filosofias vazias é preciso ir a fundo e compreender que o ser humano dos nossos dias anda a beira do colapso. Vivemos em meio ao ódio, a superficialidade e o descrédito. São tantos os males que tomam conta das pessoas, ameaçando perigosamente o mundo e a desintegração dos laços sociais que, aos poucos, vamos perdendo a compaixão e a humanidade. Chegamos a um ponto em que as divergências parecem ser maiores do que as afinidades.
O filósofo Immanuel Kant (1724-1804) talvez o mais incisivo pensador da ética moderna, fez uma afirmação de grandes consequências. “Não é possível pensar algo que, em qualquer lugar no mundo e mesmo fora dele, possa ser tido irrestritamente como bom senão a boa vontade”. Kant reconhece que qualquer projeto ético possui defeitos. No entanto, todos os projetos possuem algo em comum: a boa vontade.

Diante de tantas coisas que permeiam os dilemas da convivência humana em nossos dias, arrisco dizer que o único caminho a ser descortinado de forma positiva é quando soubermos contar com a boa vontade das pessoas em prol da construção de algo bom para a coletividade. Em momentos de crise, é a confluência de esforços que pode redundar na superação das dificuldades.

No Brasil, se não contarmos com a boa vontade da grande maioria dos cidadãos corremos o risco de não chegar a um bom lugar no futuro. A boa vontade parece ser a última tábua de salvação que nos resta. A chaga social produzida em mais de quinhentos anos de descaso com nosso povo redundou em uma sangria sem precedentes. Nossas elites nunca pensaram em uma solução para o Brasil de forma plural. Sempre estiveram empenhadas em defender privilégios.

Contrariamente ao povo brasileiro que historicamente mostrou imensa boa vontade, as velhas oligarquias se negam a saldar a hipoteca de boa vontade que devem ao país. Sendo a boa vontade decisiva, então convém suscitá-la em todos os cantos. Se cada pessoa, de fato, quiser que o Brasil dê certo, com boa vontade e esforço de todos e todas, ele seguramente pode dar certo.

sexta-feira, 3 de agosto de 2018

O OVO DA SERPENTE

Há uma fábula oriental que traz a história de um homem que, enquanto dormia, teve a boca invadida por uma serpente. A serpente alojou-se no seu estômago de onde passou a controlá-lo. A liberdade desapareceu: ele estava à mercê da serpente e já não se pertencia mais: a serpente era a responsável por todos os seus atos. Um dia, o homem acorda e percebe que a serpente havia partido e que, novamente, ele era livre. Deu-se conta, então, que não sabia mais o que fazer com a sua liberdade e que havia perdido a capacidade de desejar e agir de forma autônoma.

Acredito que somos todos escravos da serpente. Se não tentarmos destruí-la ou vomitá-la, nunca veremos um pouco mais de humanidade em nossas relações. As diversas manifestações do cotidiano parecem confirmar a hipótese de que a serpente já existe e está dentro de cada um de nós. Em outras palavras, há uma tradição autoritária, uma cultura e uma crença no uso da força em detrimento do conhecimento.

A aposta em soluções sublinhadas pela força com o propósito de elucidar os mais variados problemas revela uma enorme desconfiança. Desconfia-se do conhecimento e, não raras vezes, tem-se ódio de quem demonstra saber algo que afronte ou abale algumas verdades alinhadas com o senso comum. Ignorância e confusão pautam a postura de muita gente na sociedade atual. O recurso nos termos de uma irracionalidade faz com que sejam criados inimigos imaginários. Na maioria das vezes, o “diferente” passa a ser aquele que deve ser combatido.

Ao lado da aversão ao conhecimento, há também o medo da liberdade. O indivíduo desconfia e, em geral, não sabe como exercê-la, razão pela qual aceita abrir mão dela para fundir-se com algo ou alguém a fim de adquirir a força que acredita ser necessária para resolver seus problemas reais ou imaginários. Trata-se de um sujeito que tem certa compulsão à submissão e, ao mesmo tempo, à dominação. É um submisso, que demonstra dependência com poderes ou instituições externas, mas que, ao mesmo tempo, quer dominar os outros e eliminar os diferentes. Não hesita em transformar o outro em objeto e acha bonito vê-lo sofrer.

Diz-se que o fascismo recebeu seu nome na Itália, mas um dos seus principais ativistas, o ditador Benito Mussolini, nunca esteve sozinho. Diversos movimentos semelhantes surgiram com a mesma receita. Muito ativismo, pouca reflexão, violência desmedida. Hoje, parece existir um consenso de que o fascismo é uma mistura de significações. São teorias, valores, princípios, estratégias e práticas à disposição dos governantes ou lideranças que disseminam o ódio para conquistar o poder e impor suas concepções de mundo.

O que existe é, portanto, uma ideologia de negação. Nega-se quase tudo. As diferenças, as qualidades, as conquistas históricas, as lutas. Os fascistas talvez não saibam o que querem, mas sabem bem o que não suportam. Não suportam a democracia, a educação para a liberdade e os limites ao exercício do poder. Essa mistura vem produzindo reflexos muito negativos para toda a sociedade brasileira nos últimos tempos.