sexta-feira, 27 de abril de 2018

IMPERATIVOS DE VIDA


O sociólogo, poeta e fotógrafo francês, Jean Baudrillard, dizia que os seres humanos da contemporaneidade se encontram amarrados a uma vida que se alicerça, em grande medida, pelos contornos do desencanto, mas, que busca ser preenchida, equivocadamente, pela hiperatividade, pelas relações sem pertencimento reciproco, pela falta de compaixão e insensibilidade com a dor do outro. Para Baudrillard a sociedade adquiriu velocidade e perdeu o sentido, de tal maneira que temos muita pressa, mas não sabemos para onde ir. 

Nesta vida tão dura e, por vezes tão vazia, nem sempre sabemos recolher os encantos, pois as adversidades paralisam nossas resiliências. Insistimos em capturar sentidos escondidos. O grande desafio é descobrir que há um encanto em cada minuto da existência que só poderá ser desvendado na medida em que nos empenharmos em não reter a vida. A despeito de todo ativismo, de toda balbúrdia sublinhada no mundo atual pelo tecnicismo exacerbado, é certo que não seremos lembrados numa posteridade pelos meandros da materialidade de nossos esforços. Palavras, obras, projetos, haverão de passar. Por melhores que tenham sido nossas intenções, por maior que tenha sido nosso esforço. 

Nesta caminhada cheia de percalços e adversidades confrontar-se com a tristeza poderá ser inevitável, mas provar da vida apenas o amargo talvez seja um castigo muito grande. Momentos de introspecção, sim, mas de solidão atroz, não. Ceticismo, talvez, mas, jamais o cinismo. Ser sincero, mas não inconveniente. Buscar a proximidade, o diálogo e a partilha, mas nunca de forma agressiva. Sorriso sem leviandade. Realização sem imposições narcísicas. 

Oportuno lembrar que chegará o dia onde o desejado não será mais desejado. As lutas travadas para alcançar determinado propósito perderão o seu valor. Restarão sombras de um caminho sem atalhos ou explicações. Olharemos desejando apenas um pouquinho daquilo que já tivemos a oportunidade de sentir e sonhar. Saberemos pelo viés mais duro que o vazio e a saudade sempre serão feridas abertas. Os valores e as ações esculpidos em nossas lembranças ganharão contornos de heroísmo ou desalento. 

Não ter que conviver com as próprias inconstâncias parece ser o caminho mais largo para aliviar o receio de uma vida sem grandes dilemas. Sensações momentâneas que se transformam em felicidade oportunista. Quem sabe, a resposta às grandes perguntas da vida esteja na capacidade de conviver com o vazio. Inquietações, enigmas e caminhos, podem não vir da racionalidade, mas das noites escuras do não saber, do não compreender, de sentir-se pequeno. 

Em tempos passados, na antiguidade, os místicos acreditavam que o convívio com as profundezas de nosso ser deveria indicar o rumo para as nossas verdades mais profundas. Não ter respostas prontas para as maiores inquietudes pode ser a razão mais plausível para nos deixar na companhia do essencial. O mistério da vida talvez venha do convívio com o que não dominamos. Longe das demandas da competência, sem as vozes da onisciência, talvez consigamos conquistar o abismo que nos impede de achar a nossa verdadeira história.

sexta-feira, 20 de abril de 2018

COERSÃO E CONSENSO

                                                
Convicções ou ideais podem ser modificados ao longo do tempo. Há, no entanto, questões estruturais que se consolidam de forma mais lenta. Um dos pressupostos da história é que cada indivíduo, inevitavelmente, haverá de mudar ao longo da vida. Há muitos exemplos para sublinhar esta minha afirmação.

Não tenho a lembrança do meu pai me incentivando a colocar um cinto de segurança ao entrar em algum carro quando eu era criança. Todavia, seu exemplo e sua conduta no decorrer da vida me serviram de inspiração na jornada. Não posso dizer que tudo sempre tenha sido igual, pois, hoje, as pessoas acabam utilizando o cinto de segurança sem hesitar. Outro exemplo: no passado não era comum ouvirmos acerca de casos de câncer de pele. Ficávamos expostos ao sol o dia todo sem qualquer proteção. Houve mudanças desde então: a consciência dos riscos fez com que as pessoas passassem a se cuidar mais e melhor.  

Diferentes percepções sobre um mesmo problema podem mudar conforme o tempo. Aqui no Brasil, vivemos há pouco mais de trinta anos um regime democrático. Daí o grande descrédito com a política, os políticos, as instituições públicas e, sobretudo, com a própria democracia. Há quem olhe para o presente com saudades dos tempos da ditadura. Como se no passado todas as coisas tivessem sido boas. Trata-se de uma característica humana este olhar mais saudoso. 

Nenhuma criança acorda um dia dizendo: “que maravilhoso é ser criança”. Você vai amar mais a infância no momento em que a vida adulta tiver te encontrado. Por isso, quando dizemos que no passado, entre outras coisas, não havia assaltos, este também poderia ser um argumento que valeria para descrever o período no qual os índios dominavam estas terras. O caso é que ali não havia propriedade privada, logo não poderiam existir casos de assaltos aos bens de uma pessoa. Numa perspectiva mais extrema, alguns até poderiam dizer que antes da imigração não havia assaltos por que aqui sequer havia pessoas. Trata-se, pois, de idealizar um período a partir de gostos pessoais.

O mundo em que vivemos é um mundo conturbado. Trata-se de uma realidade que preocupa e incomoda. Para mim, a solução para a maior parte dos problemas que vivenciamos na atualidade tem muito a ver com duas questões elementares: a coersão e o consenso. A coersão pode ser alcançada por meio das leis. Exemplo para isso é a tipificação de crimes como de racismo, homofobia, violência contra mulheres e crianças. A segunda estratégia, a do consenso, só pode ser alcançada por meio da educação. Ela deveria ser superior, mas, infelizmente, não é o que acontece. 

É preciso que as pessoas entendam que a escola é um espaço de discussão e ampliação dos horizontes. Não é lugar para vigiar, censurar ou perseguir. Ela é, por excelência, espaço de formação através do diálogo e da partilha. O problema é que a escola nos dias atuais necessita concorrer com múltiplos valores. Ao chegar à escola a criança e o adolescente já tiveram acesso a uma infinidade de informações. Portanto, a construção do consenso através do processo de formação é uma tarefa desafiadora e complexa. 

O risco é que possamos estar aumentando o consenso da violência como eliminadora das divergências. Isso se revela quando, por exemplo, a pessoa defende que todos deveriam andar armados. É como se buscássemos reviver os ideais da idade média como descritos por Thomas Hobbes numa espécie de luta de todos contra todos. O ódio não é igual em todos os lugares, mas continua sendo um dos maiores desafios para a convivência humana.

sexta-feira, 13 de abril de 2018

A Arte da Mentira


Vivemos em um tempo que alguns ousaram definir como a era da pós-verdade. Na minha modesta opinião, melhor seria qualificar este período como a era do engano ou da mentira mesmo. Trata-se de um neologismo sublinhado pelas teorias narcisistas freudianas. O resultado é que os fatos objetivos acabam, paulatinamente, perdendo espaço para moldar a opinião pública. Valem mais os apelos à emoção e as crenças.
 
O francês Jean-François Lyotard referiu em seu livro, condição pós-moderna, publicado em 1979, que no mundo “não há fatos, apenas interpretações”. Mais tarde, o norte americano Richard Rorty supôs que a “a verdade representava simplesmente aquilo que se revela útil enquanto objeto de crença”. Para eles, a verdade humana mais profunda era a emocional, subjetiva, capaz de prescindir dos fatos. 

É uma visão que tem maior valor quando estão em jogo preferências amorosas, sexuais, artísticas, esportivas ou até alimentares. Quando aplicada à política, à ciência ou ao jornalismo, seria pura lorota. No mundo virtual a emoção recuperou o seu lugar de destaque e a verdade foi ficando cada vez mais capenga. As redes sociais forneceram um canal a todo tipo de fato alternativo. Clicamos e compartilhamos sem checar, apenas por que gostamos ou achamos legal.
 
A tecnologia permite, nos dias atuais, que se manipule qualquer documento ou imagem. Não é coisa rara a desqualificação de quem busca reagir de forma dialogal, baseando-se em dados factíveis. O que o outro diz, ainda que seja respaldado por informações e parâmetros bem embasados, pode ter pouco valor. Em certos casos, manchetes sensacionalistas, mesmo sem credibilidade, são multiplicadas à exaustão. Chegamos a um paradoxo no qual as pessoas tendem a não acreditar em quase nada, mas, ao mesmo tempo, são capazes de difundir qualquer coisa. 

A mentira requer formas estratégicas para se sustentar. Existem técnicas muito eficazes nos dias atuais. Uma delas é a insinuação. Não é preciso dados ou comprovações, basta imaginar que determinado fato possa existir. Na insinuação, as palavras e as imagens sublinham algum aspecto em particular, mas, as conclusões, inevitavelmente, vão muito além. A pessoa vai deduzindo ou subentendendo aquilo que achar conveniente. 

Pode existir também uma inversão de valores. Pessoas defendendo o que não é importante. Faz-se disso uma bandeira para atacar adversários. Os costumes, a religião, o caráter. Mesmo sendo algo subjetivo, pode ser explorado como objetivo, e, portanto, relevante. Muitos não toleram qualquer ideia que não esteja plenamente sintonizada com a sua própria visão de mundo. Não é raro ver gente que é capaz de linchar quem, a seu ver, atenta contra o que eles consideram verdadeiro. 

Nesse processo, as pessoas vão se dando conta de que é arriscado sustentar certas opiniões, e podem até desistir de defendê-las, para maior glória da pós-verdade, da pós-mentira e da pós-censura. Assim, o círculo da manipulação fica cada vez mais fechado. O que mobiliza raivas e ódios, não é apenas algum mecanismo acionado por uma percepção diferente de mundo. É a expressão acerca de uma distorção. 

O mundo virtual abriu as portas para manifestações alicerçadas na covardia. É gente que faz do ódio seu alimento e que não hesita em descarregar, sempre que possível, suas próprias frustrações. O que vemos é um alarido autoritário, agressão gratuita e a negação daquilo que deveria estar na base da convivência humana. 

O que me preocupa é que talvez estejamos vivendo apenas uma antecipação de momentos ainda mais tensos e até violentos no futuro. No fundo, vamos revelando apenas o quanto nossas relações sociais e humanas são frágeis. E, de igual maneira, o quanto temos dificuldades para edificar uma sociedade que divirja acerca de preceitos republicanos e, pretensamente, democráticos.

sexta-feira, 6 de abril de 2018

As Nuances do Ódio


A onda de manifestações absurdas que se seguiu ao assassinato da ativista carioca, Marielle Franco, não surgiu de forma aleatória ou espontânea. Foi organizada por grupos que aproveitaram a oportunidade para multiplicar barbaridades. O escritor búlgaro e Prêmio Nobel de Literatura, Elias Canetti, refere em uma de suas principais obras - Massa e Poder - que as pessoas são capazes de recolher os ódios que estão na sociedade e instrumentalizá-lo para destruir a reputação e a história dos seus semelhantes. Canetti busca decifrar os sentidos que leva pessoas a se transformarem em uma coletividade enfurecida cheia de paranoia, medo e voracidade. Quem manda e quem obedece? Quem deve ser exterminado e quem deve viver? Como se alcança e se perde o poder?

Trata-se de algo que existiu no nazismo, por exemplo, mas que continua se proliferando nos dias atuais. Indivíduos que aparecem como se fossem pessoas boas, mas, que na verdade, querem mesmo multiplicar os sentidos da obscuridade. Não conseguem assimilar a diversidade humana presente em diferentes percepções ideológicas, sociais ou religiosas. Gente que tem problemas sérios na sua relação com a ética e com os valores pautados pela democracia. Tem prazer em aniquilar o outro e gostam de se entender como administradores de uma suposta verdade com caráter absoluto. 

Nas sociedades medievais, eram os monges que representavam as estruturas de massa. Eram eles que organizavam os grupos mais vulneráveis com vistas ao controle da Igreja e do governo. Em todos os movimentos autocráticos, sempre existiram, de forma estratégica, certos protagonistas. Pessoas que eram capazes de recolher os anseios presentes na sociedade para que fossem dirigidos a determinados grupos, de modo a destruí-los. Nunca existiu um sentido de espontaneidade. O que houve foram grupos pautando um principio de organização e incidência em relação a outros. Um desdobramento desta compreensão são as organizações político partidárias.

Somos uma sociedade na qual a estrutura dos relacionamentos entre as pessoas é sublinhada, em grande medida, pelos meandros da força e da violência. Os direitos existindo para alguns de forma mais incisiva e sendo negado para uma esmagadora maioria. Numa sociedade democrática deveria existir uma autoridade capaz de mediar não só os conflitos, mas também se fazer respeitar. Quando não há esta premissa, a violência e o caos tendem a se multiplicar. Ouso afirmar que esta parece ser a realidade presente em nosso país nos dias atuais.

É preciso muita capacidade para compreender o momento que o Brasil atravessa. É primordial, sobretudo, o conhecimento de nossa história para descortinar caminhos de transformação e esperança. No fundo, as grandes crises, apenas mostram de forma mais evidente uma fotografia daquilo que nos move em nosso cotidiano. Nossos valores, nossos princípios, nossas utopias. Se bem observarmos, veremos que o ódio é também um gesto de desespero no âmbito de uma sociedade conturbada e sem grandes referências ou preceitos éticos.