sexta-feira, 30 de setembro de 2016

Sobre Comportamentos, Ética e Democracia.


Quando o germânico Johannes Gutemberg começou a imprimir livros‚ ele cumpriu a profecia que séculos depois o francês Victor Hugo havia colocado na boca de um religioso‚ na obra “Notre Dame de Paris”. Ao apontar para a prensa e para a catedral de Notre Dame‚ ele disse: isso aqui vai matar aquilo lá. Ou seja‚ a imprensa acabando com o monopólio do poder da Igreja‚ difundindo o conhecimento‚ atualizando e representando o início de um processo global que viria a ser completado pelo advento da internet. Uma transformação rápida‚ dinâmica e intensa.

Não é mera coincidência que o nosso tempo está deixando de ser o tempo do diálogo. As pessoas se reúnem falando ao celular. A linguagem ficou mais sintética. Acrescentamos figurinhas‚ e aqui também é um indicativo de idade‚ porque as pessoas mais velhas não têm a menor noção da relação das figurinhas com a mensagem. Apenas acrescentam várias para ilustrar. Colocam árvore de natal‚ coelhinho da Páscoa‚ tudo junto. Os mais jovens conseguem escolher as figuras adequadas ao contexto do que escrevem.

Há uma dependência tecnológica tão grande que, por exemplo, nos Estados Unidos‚ são criados momentos em finais de semana para uma espécie de “desintoxicação da internet”. Há uma doença no Japão que se manifesta através de um tipo de fobia para sair às ruas. Isso porque as pessoas não conseguem mais viver sem toda uma parafernália tecnológica. A marca de nosso tempo é o individualismo. Preocupamo-nos na maior parte do tempo apenas conosco. É um tempo líquido, como diria o sociólogo Sygmunt Bauman, e de exacerbado hedonismo e narcisismo, como bem lembrado por Freud.

Nosso individualismo vem acompanhado de soluções que, na maioria das vezes, não são pensadas para uma coletividade. Acostumamo-nos a diluir fronteiras‚ multiplicar relativismos‚ suscitar incertezas. Não temos mais aquelas “verdades” que marcaram o tempo das grandes revoluções. A maior parte das utopias, ideológicas ou políticas, falharam. O que nos une é este sentido de uma sociedade que transformou os seres humanos em consumidores. Valemos, não por aquilo que somos capazes de produzir, mas por aquilo que consumimos. Somos induzidos a pagar (às vezes bem caro) para ostentar uma marca, uma imagem, um status.

Somos uma sociedade que tende a confundir o fim de um mundo com o fim do mundo. Minha suspeita é de que a quebra dos grandes sistemas ideológicos acabou alavancando diversos meios que foram multiplicando esta busca desenfreada pela autoajuda‚ pela teologia da prosperidade, pelos sentidos do empreendedorismo. Caminhos que tem em comum a ideia de que o paraíso pode ser alcançado mediante esforço próprio e de que o sucesso material é um sinônimo da felicidade plena. Uma visão, pelo menos para mim, deveras esquizofrênica, pois fomenta este ideal de que com pensamento positivo é possível superar adversidades e alcançar realizações infinitas.

É impressionante como no Brasil as pessoas tem uma capacidade quase inata em dissociar‚ em seu comportamento‚ o comportamento das autoridades. É revoltante o dono do restaurante que passa uma hora falando mal do governo e‚ ao final, na hora de acertar a conta com o cliente‚ não vê melindres em perguntar qual o valor que deve anotar no recibo? Este é o mesmo cidadão que nas redes sociais é capaz de vociferar barbaridades contra os governantes e não se sente constrangido ao apelar para o “jeitinho” no trânsito‚ em alguma fila, nas notas fiscais‚ na escola‚ na “compra” de atestado médico mesmo não estando doente. Afinal, a tal ética vale só para os outros. É possível mentir se for conveniente diante do que se defende ou almeja.

A ética é‚ apesar desse interesse coletivo pela não ética‚ um modo de diálogo. A ética é a única maneira de se conviver em sociedade‚ porque ela estabelece o respeito de uns pelos outros. Nunca será demais lembrar que a noção de democracia, ainda que incipiente e trôpega, como no caso do Brasil, tem a ver com a ética, a convivência e a diversidade. A democracia supõe a convivência a partir de diferentes concepções‚ porque se ampara e consolida através do diálogo. A democracia talvez seja o único sistema que garanta alguma ética, alguma justiça, alguma igualdade, mesmo com tantas falhas políticas, estruturais e humanas.

sexta-feira, 23 de setembro de 2016

As Contradições do Projeto “Escola sem Partido”



Ao primeiro contato com a expressão o público leigo tende a aprovar a ideia sem maiores ressalvas. É evidente que escola não tem que ter partido. Portanto, essa obviedade não é anunciada à toa. Poderia até ser banal, mas é, na verdade, uma estratégia simpática e deliberada para a sua difusão. Vende-se o propósito de blindar a escola contra ‘doutrinações partidárias’, quando na realidade o alvo não é o proselitismo partidário, mas o pensamento crítico e a experiência da pluralidade, os alicerces da escola.

É um movimento que faz de tudo para se apresentar como apartidário, baseado em princípios de ‘neutralidade’, mas acaba atacando a escola como espaço para reflexão e exposição das diferentes maneiras de compreender o mundo. Quem educa para a democracia, educa para a diferença. O que esse projeto busca é uma monocultura. Está na mesma direção dos ideais propostos nos planos de redução da maioridade penal, de criminalização do aborto e de revogação do estatuto do desarmamento. Tem laços com as ondas xenófobas que se espalham pela Europa e os Estados Unidos. Exprime uma maneira de pensar a convivência humana.

É preciso lembrar sempre que a sociedade é heterogênea e que heterogêneas são também suas aspirações. Nas democracias, as divergências deveriam resolver-se no voto, em vez da força ou por manobras como já estamos acostumados no Brasil. Os apoiadores deste tipo de ideia não se dão conta de que propagam uma ilusão onde já não cabe mais a divergência e a pluralidade. Esquecem que vivemos em um país marcado historicamente e de forma indelével pela diversidade cultural, econômica, politica e religiosa. 

O projeto subverte os direitos previstos na Constituição Federal de 1988, pois confunde a educação escolar com aquela fornecida pelos pais e, com isso, o espaço público e privado, o princípio da laicidade do Estado, o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas além de negar ao professor um ambiente de aprendizagem de modo a possibilitar o adequado exercício da cidadania.

É um retrocesso na luta histórica de combate à cultura do ódio, à discriminação e ao preconceito contra mulheres, negros, indígenas, população LGBTT, comunidades tradicionais e outros segmentos sociais vulneráveis. Em vez de uma disciplina, está sendo criada uma ideologia que propõe controlar os professores por intermédio da criminalização do pensamento e esconder como se formou o nosso país: por meio de lutas, de conquistas, da dizimação de indígenas, escravidão dos negros, etc. Trata-se de uma iniciativa que descaracteriza a emancipação das instituições de ensino e dos docentes; impõe a mordaça ao crescimento da consciência das novas gerações e sepulta a continuidade de uma educação que os capacite para a vida.

O projeto tenta transformar em lei uma compreensão absolutamente deturpada dos elementos que constituem o processo de escolarização. Está a muito ultrapassada esta visão do aluno e professor: o primeiro como se fosse uma folha em branco, passivo, na qual se pode imprimir o que bem entende, e o segundo como alguém que transmite conhecimentos de forma acabada e simplista. Dos alunos são retirados a iniciativa e o pensamento crítico: eles seriam controlados por professores ou partidos de esquerda. A sala de aula seria um cativeiro.

O conhecimento escolar é construído justamente no diálogo entre educador e educando. Liberdade de ensinar e liberdade de aprender, indissociáveis, representam os pilares do direito à educação. Remover um deles é fazer um edifício ruir. Como formar um aluno capaz de interpretar a sua realidade se nem se pode falar dela? O resultado da aprovação de um projeto como este pelo país afora não será o de “escolas sem partido”, mas sim escolas sem voz e sem sentido.

Como deve se posicionar um professor ao falar do nazismo e do holocausto? Deve ser neutro? O que deve ensinar um professor sobre os ciclos ditatoriais que existiram na América Latina nas décadas de 60 e 70? Se afirmar que foram legítimas reações ao avanço do comunismo, toma partido da direita ou apenas relata o acontecido? Se afirmar que alguns aproveitaram para dizimar as frágeis democracias para impor suas vontades autoritárias, estaria deturpando ideologicamente uma verdade? Se indicar que muitos lutaram pela volta da democracia e outros pela implantação do comunismo, toma partido da direita, da esquerda, de ambos, de nenhum, de quem mesmo?

Os mentores deste projeto andam por territórios que, historicamente, levaram a muita insanidade e intolerância. Para quem não sabe (ou não lembra) na Alemanha nazista a pedagogia foi redefinida tendo como base o livro “Mein Kampf” de Adolf Hitler. O professor passava por treinamento especial, supervisionado por funcionários do partido nazista e era espionado e fiscalizado em sala de aula. Alunos e pais eram estimulados a denunciar qualquer comportamento fora das regras.

Este projeto visa criminalizar o professor e imbecilizar a já convalescida educação brasileira. É uma verdadeira afronta ao diálogo. Não será surpresa se amanhã ou depois um professor sair algemado da sala de aula, por, supostamente, ter tratado de temas concernentes à pluralidade e diversidade política, social e religiosa. Com tanta coisa importante para discutir, com tanta ação urgente para tomar, são gastos tempos e esforço numa questão sustentada por argumentos frágeis e muito questionáveis. Presos na cortina de fumaça da suposta doutrinação, empobrecemos um pouco mais o já desgastado debate acerca da educação. Ganha quem aposta na confusão e na falta de discernimento.

sexta-feira, 16 de setembro de 2016

OS DILEMAS DA VIDA


A vida é repleta de perdas, de inconstâncias, de derrotas. Ao não referirmos os insucessos na nossa jornada, lamentavelmente, também não percebemos que somos frágeis e pequenos. As derrotas e as frustrações ensinam o valor daquilo que faz a vida revestir-se de sentido. Ao não considerarmos as lições advindas dos percalços, negamos que perdemos o tempo todo. Que a nossa existência é feita de momentos. De encontros e desencontros. De um tempo que se esvai a cada minuto.

O mundo seria bem melhor se as pessoas tivessem o discernimento para assimilar a natureza de suas ambições. Se olhassem de forma crítica para as próprias aspirações. Se soubessem perceber se estas são constitutivas de dor ou sofrimento na interação com quem convivemos. Este mundo insiste que é preciso vencer, sorrir a qualquer custo, servir às aparências. Que alívio se tivéssemos a capacidade para discernir que mais importante do que ganhar é aprender a perder. Flertar com as adversidades, embora muitas vezes desgastante, possibilita considerar a vida a partir de outras premissas para além das prerrogativas de onipotência pessoal.

Convivemos em um mundo que fala o tempo todo de felicidade, realização e alegria, mas que na sua essência concretiza a estupidez e a falta de caráter. Somos marcados pelos dilemas que são exacerbadas pelo vazio, pela falta e pela precariedade. Somos incapazes de alcançar a plenitude. Desejamos o tempo todo. Embora apenas tateando por pequenos atalhos, queremos a todo custo fugir da dor e resistir ao tédio nem que para isso necessitemos matar a generosidade e a compaixão.

Temos dificuldades para aprender que o amadurecimento supõe reconhecer as próprias orfandades. Uma de nossas piores tragédias é constatar que são os fracassos e as mazelas do dia a dia que tornam a vida real. Por isso, não deixa de ser uma lastima que este mundo esteja tão cheio de gente que fala o que pensa sem levar em conta as implicações das suas palavras e atitudes. Tanto empenho para defender ideologias, tendências, ideias, princípios, sem atinar que a maior parte daquilo que é dito soa irrelevante, pois não toca o coração, não ameniza a dor, não gera acolhimento e nem é presença nas angústias.

Caminhamos como se a imortalidade estivesse garantida. Sempre que possível, empurramos nossos dilemas para outro dia, outro mês, outro ano. Criamos argumentos, perscrutamos teorias, sugerimos infinitas respostas e mal percebemos que diante do sofrimento e do vazio, não carecemos de explicações, mas da mão estendida, do abraço que acolhe, do gesto que inspira atenção e carinho.

Nunca se mentiu tanto no mundo como hoje. Nunca se viveu tanto de aparências. Receio que a resposta para as grandes perguntas da vida possam ser encontradas na coragem de conviver com o vazio. Soluções que não venham apenas da fria racionalidade, mas que brotem do crepúsculo, do silêncio, do não ter que saber tudo e, ainda assim, existir, abraçar e ser lembrado. Se na antiguidade os místicos já supunham o convívio com as profundezas da alma para preencher os espaços de nossos desalentos, então hoje este não saber deveria, pelo menos, ter a força para nos deixar na companhia do essencial.

Criados com a eternidade no coração, carregamos o imperativo de sonhar para além do possível. O improvável nos fascina. Desejamos a imortalidade, mas acabamos por experimentar o mundo a partir do limite de nossos sonhos. Em nossas vontades vamos transformando pedras em pedregulhos. Exageramos em nossa ânsia pelo inefável. Peregrinamos de um lado para o outro descobrindo a direção para uma nova história. Lugar onde os segredos do porvir sejam conhecidos pela insistência.

Nesta jornada há momentos onde a tempestade é tão forte que se tem vontade de segurar o teto para ele não voar. Horas onde a chuva é tão agressiva que repercute o medo de abrir alguma janela. As angústias nos abraçam com tanta intensidade que dá vontade de sair correndo. Fugir das amarguras mesmo sabendo que estamos de mãos dadas com elas. O incerto, a espera, a esperança de um novo amanhã pode até ter os seus encantos, mas também apavora.

Revolvido por inquietações, às vezes, é preciso parecer distante quando, na verdade, desejaríamos a proximidade. Movidos pelas intempéries, vamos sendo impelidos a trilhar caminhos mais retos, menos tortuosos. Especializamo-nos em guardar e controlar sentimentos. Manter o sentido da existência com base em alguma realização subjugada pelo ativismo desenfreado. Tropeçar, ansiar, sentir, sofrer e expor as entranhas da própria pequenez. Ao invés do diálogo, a arte do silêncio.

No final da vida é provável que tenhamos uma coleção de atitudes certas, mas teremos dificuldades de lembrar um dia apenas no qual tenhamos experimentado a concretização da felicidade. Por conta desta racionalidade e pragmatismo exacerbados, corremos o risco eminente de perguntarmos em algum lugar do futuro sem obter resposta plausível: E se eu tivesse ido? E se eu tivesse seguido meus sentimentos? E se eu tivesse dito “sim”? E se eu tivesse arriscado mais? E se eu tivesse deixado acontecer? Será que ser feliz não é mais importante do que estar certo?

O mistério da vida talvez venha do convívio tranquilo com o que não dominamos. Arrisco espreitar que longe das demandas da competência, sem as vozes da onisciência, podemos conseguir conquistar o abismo que nos impede de achar a verdadeira essência. Se tivéssemos a capacidade de nos esvaziar da arrogância de tudo possuir, tudo saber, suspeito que conseguiríamos intuir o inaudível, sentir o imperceptível e experimentar o indescritível. É nos silêncios que podemos desvelar nossas singularidades em um universo habitado por indivíduos cada vez mais impessoais, frios e contraditórios.

sexta-feira, 9 de setembro de 2016

“Derechos Humanos para los Humanos Derechos”

É provável que a grande maioria das pessoas desconheça quem tenha sido Jorge Rafael Videla. Para auxiliar o entendimento, explico. Trata-se do comandante das forças armadas nomeado pela presidente argentina Isabelita Perón em 1974. Dois anos depois, em 1976, Videla encabeçou um Golpe de Estado que o levaria ao poder e, em consequência, a ser o presidente da nação. Seu governo foi marcado pelos conflitos com países vizinhos, como no episódio das Ilhas Malvinas, pelo desmantelamento das leis trabalhistas, inflação de mais de 400% ao ano, aumento da divida externa em cifras gigantescas, e, sobretudo, pela incomensurável violência e repressão aos opositores.

Em sete anos de ditadura, mais de 30 mil pessoas foram mortas. Videla tinha maneiras bastante incisivas de livrar-se dos opositores. Juntar prisioneiros, amarrá-los e dinamitá-los. Obrigá-los a entrar em piscinas ligadas em alguma rede elétrica.  Afogamento em água e fezes. Colocar um rato faminto na vagina ou no ânus. Colocar um saco plástico sobre a cabeça e esperar a pessoa desmaiar. No entanto, a tortura preferida era a que sugeria que os opositores fossem amarrados, vedados, colocados em aviões e lançados em alto mar ainda vivos. Ficaram conhecidos como “os voos da morte”. Houve centenas de casos também com idosos e crianças. Videla e a ditadura teriam sequestrado mais de 500 bebês, filhos das mães desaparecidas. Desde o final dos anos 70 as mães e avós da Plaza de Mayo lutam para encontrar familiares. Até hoje, mais de 10 mil pessoas seguem desaparecidas.

A propaganda oficial de Videla, tentando recuperar a combalida imagem do governo argentino diante de outras nações, lançou uma das frases que acabaria se tornando célebre e emblemática: Derechos humanos para los humanos derechos. Trata-se de um dos sofismas mais estapafúrdios que a humanidade já foi capaz de inventar. Para sustentar uma ideia esdrúxula igual a esta é que pessoas que se dizem “democráticas” na mesma linha de um Videla, vivem proclamando imbecilidades e criando bodes expiatórios que, segundo sua débil sabedoria, personifica uma suposta tolerância com bandidos.

Fiz questão de descrever um pouco mais a história ditatorial argentina para mostrar que é uma completa insanidade esta ideia que vai sendo difundida nos dias atuais de que pessoas ligadas aos direitos humanos só defendem bandidos e são responsáveis pela violência que cerceia a liberdade de todos e todas. Sou sabedor que minhas palavras também correm o risco de serem rotuladas com carimbos depreciativos e dos mais variados. Não sabe nada. É um comunista, esquerdopata, bolivariano, etc, etc, etc. Tudo bem. Paciência.

O que não deixa de causar estranheza é que algumas expressões vão se propagadas por gerações sem que se faça qualquer esforço para compreendê-las a partir do seu contexto e história. As novas gerações vão repetindo os velhos discursos. Tenho visto jovens que tiveram acesso a boas escolas, bons conteúdos, bons professores, dando continuidade a ideias mal estruturadas ou desconexas. “Direitos Humanos só servem para defender bandidos; não teríamos tantos bandidos se não fosse o povinho dos direitos humanos; a violência aumenta por que tem muitos direitos humanos...”. Convenhamos, quem, de sã consciência, poderia ser a favor de bandido? Ninguém. Nem os direitos humanos. Ninguém quer que haja assaltos, assassinatos, estupros, que se multipliquem os roubos, que todos os responsáveis sejam perdoados ou que as infrações praticadas não sejam punidas. NINGUÉM!!! Ora, a conclusão é óbvia. Trata-se de uma compreensão distorcida e completamente equivocada.

Ninguém quer que o indivíduo seja vítima de algum crime. As leis contidas no código penal, por exemplo, são questões pensadas para garantir que existam direitos comuns a todos os seres humanos. Por isso, não deixa de ser ambíguo que tenhamos tantas pessoas clamando por justiça, que as leis sejam cumpridas, manifestando uma estranha vontade de descumpri-las. Homicídio, tortura, ameaça, são crimes, mesmo que sejam dirigidos contra aqueles que já estejam condenados. Não se trata de negar o direito a sentir dor, raiva e inconformidade após ter sido vítima de um crime. Só quem é vítima sabe da própria dor. Mas a lei de talião (olho por olho) não será capaz de garantir a paz e nem trazer algum um ente querido de volta. Muito menos apagar possíveis traumas. A única garantia da lei de talião é fazer com que a sociedade seja mais violenta e os crimes sejam perpetuados.

Talvez a grande lição que possa ser apreendida neste contexto de atrocidades cometidas e distorções que vão sendo alardeadas sem qualquer preocupação com os fatos é de que dentre os países latino-americanos que passaram por períodos de ditadura militar, a Argentina foi o que soube responder de forma mais enérgica aos crimes cometidos. O país condenou mais de 200 militares e civis por envolvimento em prisões, torturas, desaparecimentos e mortes. O próprio Videla e dezenas de seus comandados genocidas foram condenados a pena de prisão perpétua. Diferente do Brasil que teve apenas uma única sentença condenatória, mas nunca cumprida, em relação ao já falecido coronel Brilhante Ustra. Isso talvez explique as declarações em apologia a tais práticas como, por exemplo, as protagonizadas durante a votação do impeachment por um “certo deputado”, em maio deste ano no Congresso Nacional.

Um defensor dos direitos humanos defende que a LEI seja cumprida e que haja respeito às garantias individuais de todos e todas sem exceção. Qualquer ser humano deve ser julgado e, sendo culpado, cumprir a sua pena. Não é possível arremessar de um avião em alto-mar porque, afinal, não é o que manda a lei e nem o bom senso. Não se trata de tolerância com o crime. Trata-se de uma intolerância com abusos que ao serem aceitos, um dia vão bater à nossa porta.

Qualquer crime cometido contra a integridade de nosso semelhante sempre será uma afronta à convivência humana e precisará ser punido para que tenhamos a possibilidade de uma mínima harmonia social. Qualquer um que violar o direito à propriedade privada, à liberdade de ir e vir, à vida em sua integridade, precisa sofrer as sanções cabíveis. No entanto, é preciso que as punições respeitem as leis, e não uma convivência que implique na garantia do mais forte ou de quem ao ser investido por um suposto poder, decide se o outro deve viver ou morrer. Infelizmente, a sociedade nestes últimos tempos parece mais aplaudir aquilo que resultou em uma das maiores atrocidades de nossa história recente.