sexta-feira, 9 de setembro de 2016

“Derechos Humanos para los Humanos Derechos”

É provável que a grande maioria das pessoas desconheça quem tenha sido Jorge Rafael Videla. Para auxiliar o entendimento, explico. Trata-se do comandante das forças armadas nomeado pela presidente argentina Isabelita Perón em 1974. Dois anos depois, em 1976, Videla encabeçou um Golpe de Estado que o levaria ao poder e, em consequência, a ser o presidente da nação. Seu governo foi marcado pelos conflitos com países vizinhos, como no episódio das Ilhas Malvinas, pelo desmantelamento das leis trabalhistas, inflação de mais de 400% ao ano, aumento da divida externa em cifras gigantescas, e, sobretudo, pela incomensurável violência e repressão aos opositores.

Em sete anos de ditadura, mais de 30 mil pessoas foram mortas. Videla tinha maneiras bastante incisivas de livrar-se dos opositores. Juntar prisioneiros, amarrá-los e dinamitá-los. Obrigá-los a entrar em piscinas ligadas em alguma rede elétrica.  Afogamento em água e fezes. Colocar um rato faminto na vagina ou no ânus. Colocar um saco plástico sobre a cabeça e esperar a pessoa desmaiar. No entanto, a tortura preferida era a que sugeria que os opositores fossem amarrados, vedados, colocados em aviões e lançados em alto mar ainda vivos. Ficaram conhecidos como “os voos da morte”. Houve centenas de casos também com idosos e crianças. Videla e a ditadura teriam sequestrado mais de 500 bebês, filhos das mães desaparecidas. Desde o final dos anos 70 as mães e avós da Plaza de Mayo lutam para encontrar familiares. Até hoje, mais de 10 mil pessoas seguem desaparecidas.

A propaganda oficial de Videla, tentando recuperar a combalida imagem do governo argentino diante de outras nações, lançou uma das frases que acabaria se tornando célebre e emblemática: Derechos humanos para los humanos derechos. Trata-se de um dos sofismas mais estapafúrdios que a humanidade já foi capaz de inventar. Para sustentar uma ideia esdrúxula igual a esta é que pessoas que se dizem “democráticas” na mesma linha de um Videla, vivem proclamando imbecilidades e criando bodes expiatórios que, segundo sua débil sabedoria, personifica uma suposta tolerância com bandidos.

Fiz questão de descrever um pouco mais a história ditatorial argentina para mostrar que é uma completa insanidade esta ideia que vai sendo difundida nos dias atuais de que pessoas ligadas aos direitos humanos só defendem bandidos e são responsáveis pela violência que cerceia a liberdade de todos e todas. Sou sabedor que minhas palavras também correm o risco de serem rotuladas com carimbos depreciativos e dos mais variados. Não sabe nada. É um comunista, esquerdopata, bolivariano, etc, etc, etc. Tudo bem. Paciência.

O que não deixa de causar estranheza é que algumas expressões vão se propagadas por gerações sem que se faça qualquer esforço para compreendê-las a partir do seu contexto e história. As novas gerações vão repetindo os velhos discursos. Tenho visto jovens que tiveram acesso a boas escolas, bons conteúdos, bons professores, dando continuidade a ideias mal estruturadas ou desconexas. “Direitos Humanos só servem para defender bandidos; não teríamos tantos bandidos se não fosse o povinho dos direitos humanos; a violência aumenta por que tem muitos direitos humanos...”. Convenhamos, quem, de sã consciência, poderia ser a favor de bandido? Ninguém. Nem os direitos humanos. Ninguém quer que haja assaltos, assassinatos, estupros, que se multipliquem os roubos, que todos os responsáveis sejam perdoados ou que as infrações praticadas não sejam punidas. NINGUÉM!!! Ora, a conclusão é óbvia. Trata-se de uma compreensão distorcida e completamente equivocada.

Ninguém quer que o indivíduo seja vítima de algum crime. As leis contidas no código penal, por exemplo, são questões pensadas para garantir que existam direitos comuns a todos os seres humanos. Por isso, não deixa de ser ambíguo que tenhamos tantas pessoas clamando por justiça, que as leis sejam cumpridas, manifestando uma estranha vontade de descumpri-las. Homicídio, tortura, ameaça, são crimes, mesmo que sejam dirigidos contra aqueles que já estejam condenados. Não se trata de negar o direito a sentir dor, raiva e inconformidade após ter sido vítima de um crime. Só quem é vítima sabe da própria dor. Mas a lei de talião (olho por olho) não será capaz de garantir a paz e nem trazer algum um ente querido de volta. Muito menos apagar possíveis traumas. A única garantia da lei de talião é fazer com que a sociedade seja mais violenta e os crimes sejam perpetuados.

Talvez a grande lição que possa ser apreendida neste contexto de atrocidades cometidas e distorções que vão sendo alardeadas sem qualquer preocupação com os fatos é de que dentre os países latino-americanos que passaram por períodos de ditadura militar, a Argentina foi o que soube responder de forma mais enérgica aos crimes cometidos. O país condenou mais de 200 militares e civis por envolvimento em prisões, torturas, desaparecimentos e mortes. O próprio Videla e dezenas de seus comandados genocidas foram condenados a pena de prisão perpétua. Diferente do Brasil que teve apenas uma única sentença condenatória, mas nunca cumprida, em relação ao já falecido coronel Brilhante Ustra. Isso talvez explique as declarações em apologia a tais práticas como, por exemplo, as protagonizadas durante a votação do impeachment por um “certo deputado”, em maio deste ano no Congresso Nacional.

Um defensor dos direitos humanos defende que a LEI seja cumprida e que haja respeito às garantias individuais de todos e todas sem exceção. Qualquer ser humano deve ser julgado e, sendo culpado, cumprir a sua pena. Não é possível arremessar de um avião em alto-mar porque, afinal, não é o que manda a lei e nem o bom senso. Não se trata de tolerância com o crime. Trata-se de uma intolerância com abusos que ao serem aceitos, um dia vão bater à nossa porta.

Qualquer crime cometido contra a integridade de nosso semelhante sempre será uma afronta à convivência humana e precisará ser punido para que tenhamos a possibilidade de uma mínima harmonia social. Qualquer um que violar o direito à propriedade privada, à liberdade de ir e vir, à vida em sua integridade, precisa sofrer as sanções cabíveis. No entanto, é preciso que as punições respeitem as leis, e não uma convivência que implique na garantia do mais forte ou de quem ao ser investido por um suposto poder, decide se o outro deve viver ou morrer. Infelizmente, a sociedade nestes últimos tempos parece mais aplaudir aquilo que resultou em uma das maiores atrocidades de nossa história recente.



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