sexta-feira, 2 de setembro de 2016

A PERPETUAÇÃO DA HIPOCRISIA



De todos os presidentes brasileiros eleitos pela via democrática nos últimos 90 anos, somente quatro chegaram a terminar o seu mandato: Eurico Gaspar Dutra, Juscelino Kubitschek, FHC e Lula. Mesmo para aqueles que conseguiram equilibrar-se diante de interesses escusos, não houve águas tranquilas. JK precisou de um movimento de grande apelo popular para poder ser empossado depois de ter alcançado a legitimidade nas urnas. Conviveu, no entanto, com as agruras do golpismo encarnado pelo seu principal opositor, Carlos Lacerda, e a sua famosa frase repetida à exaustão: “O governo é um mar de lama”. Divulgava-se na imprensa (quanta coincidência...) que JK possuía uma das maiores fortunas do Brasil. Algo jamais comprovado. JK foi preso e depois exilado.

FHC fez um segundo governo recheado de problemas. Tanto que houveram inúmeros pedidos de impeachment baseados no mesmo argumento dos dias atuais - “estelionato eleitoral”. Todos os pedidos foram arquivados pelo então presidente da Câmara dos Deputados, Michel Temer. Sim, ele mesmo. Já Lula, após o escândalo do mensalão, buscou um grande acordo com diversos protagonistas de vários partidos para que o seu governo perdurasse e sua popularidade fosse retomada. Poucos se lembram, mas Lula mesmo com mais de 80% de aprovação popular discursou em rede nacional para conter os ânimos da oposição que soube aquietar-se em troca de generosas fatias em cargos do próprio governo.

Dilma, mal teve tempo de ajeitar a faixa e já precisou conviver com quem pedia a sua impugnação. Com um tom cada vez mais enérgico e amparado pelos ditames do neoliberalismo, do saudosismo militar, do discurso apocalíptico, a oposição ao seu governo foi ganhando as ruas. Logo, foi possível perceber o respaldo dos atores financeiros e da indústria. Cada dia com mais detalhes grotescos em um acirramento de ânimos em uma visão do caos engendrado pela narrativa da “grande mídia”.

Estes grupos organizados em torno do atual presidente conseguiram chegar até as pessoas sem qualquer necessidade de mostrar alguma coerência ética. Ganharam o debate público, pela força de seus meios e pelo poder dos interesses que agregam. O que se busca é a implantação de um programa que envolva as privatizações, a flexibilização de direitos adquiridos e o alinhamento estratégico com os Estados Unidos.

E assim a história vai sendo repetida. Ingênuo é quem duvida dos infinitos interesses disfarçados ou encobertos. É preciso recordar que por muito tempo se duvidou que os americanos tivessem alguma relação com a chegada dos militares ao poder em 1964. Foi preciso décadas para perceber. Muitos, inclusive, ainda hoje, insistem em alardear jargões destituídos de qualquer embasamento histórico. Por muito tempo se desdenhou do apoio da mídia ao regime militar brasileiro, ignorando as atrocidades cometidas. Há vasta literatura acerca do tema. A própria Rede Globo, acredite se quiser, chegou a pedir desculpas.

Esta suposta “legalidade” que se pretende agora é muito semelhante ao de outros momentos históricos do país. É inegável que o governo anterior se viu envolvido com inúmeros escândalos. Muitos de suas maiores lideranças não souberam honrar a decência. Todavia, Temer encabeça um governo de gente atolada na lama por todos os lados. A frágil e ilusória justificativa de que os “maiores corruptos da história” foram destituídos do poder é de uma ingenuidade sem precedentes. Se existe uma grande lição que pode ser percebida neste processo é que não se trata de “limpar” o país, mas de aviltar peripécias e extravagâncias jurídicas para alcançar o poder.  

Vale mais a venda do patrimônio nacional e a intenção de fulminar conquistas adquiridas por trabalhadores e aposentados. O projeto que estará em evidência é o oposto daquele que foi consolidado nas urnas. Frustra-se, mais uma vez, a esperança de uma política e de um governo sob a égide da soberania popular, da ética e da decência. A pacificação nacional é uma fantasia. Para os ingênuos, culpa de quem foi apeado do poder. Para os realistas, uma trama que resguarda privilégios. Resta-nos caminhar por caminhos muito, muito, muito difíceis. É de se lamentar... Muito!

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