sábado, 21 de novembro de 2020

João, Mais um João...

Não é a primeira vez que uma pessoa negra é torturada e morta. Cenas assim acontecem aos montes pelo Brasil afora. As tantas histórias macabras até poderiam ser diferentes se a cor da pele também fosse. Mas se prefere dizer que não, negando o preconceito que impregna nosso cotidiano. Seria até mais tranquilo para a consciência dos brasileiros se atitudes de selvageria fossem apenas em supermercados, mas elas acontecem em qualquer espaço público, pelas mãos do Estado, das empresas, da população.

Fico a me perguntar, sem desmerecer outras pautas sociais ou políticas, se este tipo de barbárie não é razão mais do que suficiente para ocuparmos as ruas do país? No entanto, a morte ou a tortura de gente negra, seja pelas mãos do Estado, seja por agentes da iniciativa privada, ao que parece, não vale o tempo dispendido. Mal percebemos que este tipo de coisas não é um acidente, mas, parte de um projeto que é violento com a população mais vulnerável em nome da manutenção de certos privilégios.

Parece exagero? Vejamos: Quando algum professor decide discutir, em sala de aula, a razão pela qual jovens negros são as principais vítimas entre milhares de mortes violentas anuais, logo aparecem os defensores de uma Escola Sem Nada na Cabeça ameaçando processar e impor certas excentricidades sob o pretexto de que isso se trata de alguma "ideologia" nefasta ao bem da humanidade. Afinal, na opinião destes seres de “inteligência superior”, racismo é conversa mole. Não existe genocídio de jovens pobres e negros das periferias pelas mãos da polícia, do tráfico e das milícias. Importa que os 'homens de bem' seguem a lei e nada acontece com eles.

Como um país pode ser decente se a dignidade humana é jogada no ralo todo santo dia? Como pessoas conseguem apoiar ou serem indiferentes com cenas de espancamento e morte? Comemorar ações da polícia que matam jovens nas periferias e depois enchem a boca para falar de justiça ou democracia? Como quereremos construir um futuro se já nem lembramos mais das Ágathas, dos João Pedros e amanhã ou depois, também teremos esquecido do João Alberto. Impressiona que as pessoas sigam nesta toada de que violência se combate com violência. Inacreditável. Se mata e se morre por... nada.

Enquanto isso, o vice-presidente, Hamilton Mourão, sem titubear, afirma: “no Brasil não existe racismo”. Parece brincadeira, mas as imagens de um brasileiro subjugado e brutalmente espancado capaz de emocionar e causar repulsa e indignação em milhões, inclusive no exterior, é apenas fruto do “despreparo”. Uma “fatalidade”, portanto. Talvez seja justamente este o dado mais cruel. A forma como a sociedade brasileira insiste em naturalizar o racismo existente. O racismo arraigado que vai matando muitos “Joãos” a cada dia pela segunda, terceira, quarta... vez, colocando na vítima e na imprensa a culpa pelo que acontece. Os justiceiros dos tribunais da internet revelam sem disfarces a face cruel de uma sociedade perversa. Triste tempos.

domingo, 15 de novembro de 2020

Fanatismos e (Des) Informação


Por muito tempo se imaginou que o acesso à informação seria uma coisa muito boa para o conhecimento e os debates políticos. No passado, os ideais iluministas acentuavam esta possibilidade. Em geral, o fanatismo político de outros tempos era compreendido como resultado da ignorância das populações. Quanto mais informações as pessoas tivessem, mais discernimento elas haveriam de manifestar. Seriam, portanto, mais prudentes, mais tolerantes, mais humildes em suas supostas certezas e mais propensas a ouvir e exercitar a empatia. Além disso, quanto mais fontes de informação tivessem à disposição, mais complexas se tornariam suas ideias e discussões, mais amplas as suas visões de mundo, menos condicionadas por certas paixões.

Infelizmente o que se vislumbra nos dias atuais parece ser bem distante daquilo que se imaginava. Com frequência, não se almeja encontrar a verdade, o esclarecimento mútuo ou a cooperação para compreender a complexidade do mundo. Não. Busca-se, muito mais, a confirmação daquilo que se quer dizer, de preferência, por meio de simplificações reforçadas por conceitos pré-concebidos. Se quer a informação para satisfazer certos anseios existenciais. Parece existir, cada vez menos, a preocupação com o conhecimento.

Vivemos, nos dias atuais, múltiplas possibilidades de acesso a inúmeras fontes de informação. Mesmo assim, ao invés de superarmos o fanatismo do passado, o que se percebe, é a profunda negação a certos princípios elementares do conhecimento e da interação humana. Esta nova dinâmica cibernética exacerbou uma legião de novos fanáticos. A informação não parece ter conseguido consolidar as relações humanas na perspectiva da tolerância e do mútuo entendimento. Ao contrário: é como se a dinâmica favorecesse os mais impetuosos fanatismos. Grupos que há alguns anos construíam pontes, agora, não raro, parecem se digladiar. Cada qual patrulhando gestos e palavras de forma intransigente e atacando sem qualquer cerimônia a aquilo que se entende como fora do lugar. Trata-se, pois, de um paradoxo. Temos muita informação a partir de infinitas fontes, mas, ao mesmo tempo, muita “lacração”, xingamentos e conflitos. Uma vontade incontida para calar oponentes. Quase nenhuma disposição para a crítica sem que o outra seja humilhado, exposto ou punido pela opinião pública.

É importante ressaltar que a informação enquanto atributo propicio ao fortalecimento da democracia, parece ter sido uma questão compreendida de maneira equivocada. O fanatismo não acontecia por que as pessoas tinham falta de informações ou não conseguiam acessar as fontes em sua diversidade. Hoje se percebe que cada pessoa decide aquilo que deseja fazer com as informações que encontra à sua disposição. Alguns se dispõe a utilizar aquilo que observam para o esclarecimento, a tolerância e o entendimento. Outras, ao contrário, se valem delas como se fosse o combustível para arroubos autoritários. Não importa o que se diga ou faça: certas posições parecem inabaláveis. Pouco importam os fatos.

Convém também considerar que a informação não é, em si, instrumento de opressão, de conflitos ou dominação. Ela pode se transformar quando segmentada conforme certas ideologias ou interesses. Em uma sociedade com tanta informação, não falta gente que a busque para multiplicar seus interesses mesquinhos. Pode ser por meio das famigeradas fake news, mas, igualmente, com aquilo que permita reforçar a ignorância e os fanatismos. O sujeito iluminista que em outras épocas se esmerava para olhar com cuidado a realidade por meio da suspensão do julgamento até que pudesse examinar as razões que lhes eram apresentadas, cedeu a vez para o indivíduo que busca informações para satisfazer e confirmar as suas vontades e a sua ideia de mundo.

A diversidade acabou se transformando numa forma rápida de satisfação de necessidades cognitivas. A esfera pública brasileira não deixa de ser o exemplo mais claro desta triste e vergonhosa situação. Não há maluquice que não tenha um professor ou algum pregador nas redes sociais. Para qualquer posição política estúpida, perigosa ou antissocial, haverá sempre um número grande de seguidores. A maior tragédia nestes tempos sombrios é que estamos perdendo a empatia diante das desventuras pelas quais passam nossos semelhantes.

Aos poucos vamos desaprendendo a dialogar. Não conseguimos perceber que a diversidade é bela e inerente à condição humana. Não é ruim que cada qual compreenda o mundo à sua maneira. O problema é que olhamos para o outro não como alguém que apenas pensa diferente, mas, como alguém que por pensar diferente não merece o meu respeito, o meu afeto, a minha amizade. Quem sabe um dia ainda consigamos alcançar um pouco mais de tolerância.

A despeito de tantos infortúnios, que tenhamos a capacidade de seguir adiante cultivando esta esperança sem a qual os olhos, a boca e os corpos definham. Sem esperança, os olhos deixam de sorrir. Sem esperança, as bocas deixam de proclamar palavras de alento. Necessitamos uns dos outros para nos sentirmos vivos nem tanto pela felicidade que nos une, mas, porque na dor e desafios do cotidiano nos enxergamos e conhecemos melhor.