sexta-feira, 23 de setembro de 2016

As Contradições do Projeto “Escola sem Partido”



Ao primeiro contato com a expressão o público leigo tende a aprovar a ideia sem maiores ressalvas. É evidente que escola não tem que ter partido. Portanto, essa obviedade não é anunciada à toa. Poderia até ser banal, mas é, na verdade, uma estratégia simpática e deliberada para a sua difusão. Vende-se o propósito de blindar a escola contra ‘doutrinações partidárias’, quando na realidade o alvo não é o proselitismo partidário, mas o pensamento crítico e a experiência da pluralidade, os alicerces da escola.

É um movimento que faz de tudo para se apresentar como apartidário, baseado em princípios de ‘neutralidade’, mas acaba atacando a escola como espaço para reflexão e exposição das diferentes maneiras de compreender o mundo. Quem educa para a democracia, educa para a diferença. O que esse projeto busca é uma monocultura. Está na mesma direção dos ideais propostos nos planos de redução da maioridade penal, de criminalização do aborto e de revogação do estatuto do desarmamento. Tem laços com as ondas xenófobas que se espalham pela Europa e os Estados Unidos. Exprime uma maneira de pensar a convivência humana.

É preciso lembrar sempre que a sociedade é heterogênea e que heterogêneas são também suas aspirações. Nas democracias, as divergências deveriam resolver-se no voto, em vez da força ou por manobras como já estamos acostumados no Brasil. Os apoiadores deste tipo de ideia não se dão conta de que propagam uma ilusão onde já não cabe mais a divergência e a pluralidade. Esquecem que vivemos em um país marcado historicamente e de forma indelével pela diversidade cultural, econômica, politica e religiosa. 

O projeto subverte os direitos previstos na Constituição Federal de 1988, pois confunde a educação escolar com aquela fornecida pelos pais e, com isso, o espaço público e privado, o princípio da laicidade do Estado, o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas além de negar ao professor um ambiente de aprendizagem de modo a possibilitar o adequado exercício da cidadania.

É um retrocesso na luta histórica de combate à cultura do ódio, à discriminação e ao preconceito contra mulheres, negros, indígenas, população LGBTT, comunidades tradicionais e outros segmentos sociais vulneráveis. Em vez de uma disciplina, está sendo criada uma ideologia que propõe controlar os professores por intermédio da criminalização do pensamento e esconder como se formou o nosso país: por meio de lutas, de conquistas, da dizimação de indígenas, escravidão dos negros, etc. Trata-se de uma iniciativa que descaracteriza a emancipação das instituições de ensino e dos docentes; impõe a mordaça ao crescimento da consciência das novas gerações e sepulta a continuidade de uma educação que os capacite para a vida.

O projeto tenta transformar em lei uma compreensão absolutamente deturpada dos elementos que constituem o processo de escolarização. Está a muito ultrapassada esta visão do aluno e professor: o primeiro como se fosse uma folha em branco, passivo, na qual se pode imprimir o que bem entende, e o segundo como alguém que transmite conhecimentos de forma acabada e simplista. Dos alunos são retirados a iniciativa e o pensamento crítico: eles seriam controlados por professores ou partidos de esquerda. A sala de aula seria um cativeiro.

O conhecimento escolar é construído justamente no diálogo entre educador e educando. Liberdade de ensinar e liberdade de aprender, indissociáveis, representam os pilares do direito à educação. Remover um deles é fazer um edifício ruir. Como formar um aluno capaz de interpretar a sua realidade se nem se pode falar dela? O resultado da aprovação de um projeto como este pelo país afora não será o de “escolas sem partido”, mas sim escolas sem voz e sem sentido.

Como deve se posicionar um professor ao falar do nazismo e do holocausto? Deve ser neutro? O que deve ensinar um professor sobre os ciclos ditatoriais que existiram na América Latina nas décadas de 60 e 70? Se afirmar que foram legítimas reações ao avanço do comunismo, toma partido da direita ou apenas relata o acontecido? Se afirmar que alguns aproveitaram para dizimar as frágeis democracias para impor suas vontades autoritárias, estaria deturpando ideologicamente uma verdade? Se indicar que muitos lutaram pela volta da democracia e outros pela implantação do comunismo, toma partido da direita, da esquerda, de ambos, de nenhum, de quem mesmo?

Os mentores deste projeto andam por territórios que, historicamente, levaram a muita insanidade e intolerância. Para quem não sabe (ou não lembra) na Alemanha nazista a pedagogia foi redefinida tendo como base o livro “Mein Kampf” de Adolf Hitler. O professor passava por treinamento especial, supervisionado por funcionários do partido nazista e era espionado e fiscalizado em sala de aula. Alunos e pais eram estimulados a denunciar qualquer comportamento fora das regras.

Este projeto visa criminalizar o professor e imbecilizar a já convalescida educação brasileira. É uma verdadeira afronta ao diálogo. Não será surpresa se amanhã ou depois um professor sair algemado da sala de aula, por, supostamente, ter tratado de temas concernentes à pluralidade e diversidade política, social e religiosa. Com tanta coisa importante para discutir, com tanta ação urgente para tomar, são gastos tempos e esforço numa questão sustentada por argumentos frágeis e muito questionáveis. Presos na cortina de fumaça da suposta doutrinação, empobrecemos um pouco mais o já desgastado debate acerca da educação. Ganha quem aposta na confusão e na falta de discernimento.

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