sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

DEMAGOGIA E ESPERTEZA

“O conhecimento não só amplia como multiplica nossos desejos. Portanto, o bem-estar e a felicidade do Estado requerem que o conhecimento dos trabalhadores fique confinado dentro dos limites de suas ocupações e jamais se estenda […] além daquilo que se relaciona com sua missão. Quanto mais um pastor, um arador ou qualquer outro camponês souber sobre o mundo e sobre o que lhe é alheio ao seu trabalho, menos capaz será de suportar as fadigas e as dificuldades de sua vida com alegria e contentamento.” 

Esse trecho foi extraído de um famoso compêndio de filosofia moral do século XVIII: A fábula das abelhas: vícios privados, benefícios públicos, de Bernard de Mandeville (1670-1733). A lição preconizada na obra volta a fazer sentido no momento atual da educação brasileira, cuja herança de inovação se depara com potenciais ameaças. Cito algumas, a seguir. 

A cada novo dia, somos induzidos a apontar episódios de pretensa doutrinação ideológica perpetrada por docentes de escolas e universidades, até mesmo fora de sala de aula, sobretudo, em opiniões difundidas à exaustão, nas redes sociais. O discurso persecutório é evidente, e as “acusações” abundam, num linguajar grotesco que denuncia desde a defesa dos direitos elementares, até a análise das condições de trabalho presentes em livros de história, como opiniões de esquerdistas malucos. 

Nada mais partidarizado que uma Escola sem Partido, por exemplo. Com o pretexto de expurgar um suposto viés político dos professores, seus militantes querem extirpar da escola sua institucionalidade pública, seu espaço de debate e formação acima e para além das crenças familiares e dos valores religiosos de caráter privado. O verdadeiro pavor de uma Escola sem Partido é a inserção das crianças no mundo fora da família, que, em geral, começa justamente por meio da escola. O que o movimento combate é a ideia de escola como espaço público na qual as crianças e os jovens vão ao encontro da diferença, transcendendo a vida privada. 

Outra situação comum nos dias atuais, e, não por acaso, coadunada com a ideia anterior, é a defesa incondicional da militarização das nossas escolas públicas. A publicação dos últimos indicadores da violência no Brasil expõe a situação dramática na segurança pública. As estatísticas, incluindo a impressionante cifra de homicídios, não escondem a principal vítima dos crimes contra a vida: o jovem pobre, morador das periferias e dos grandes centros urbanos. Famílias assustadas viram alvos fáceis de soluções simplórias, mas equivocadas, para um complexo problema da violência juvenil e, por consequência, correlato à evasão escolar. 

A militarização dos colégios consiste, grosso modo, em colocar na direção e nas coordenações das escolas, oficiais da polícia. Com sua autoridade, estes restaurariam a disciplina, eliminariam os desvios e melhorariam o rendimento dos alunos. Os indicadores dos colégios militares brasileiros seriam a prova da eficiência deste modelo. 

Enquanto os países com os melhores indicadores de educação são aqueles nos quais se adotam metodologias ativas e se investe fortemente na formação de professores para que as aulas sejam dialogadas, baseadas em problemas reais e no desenvolvimento do raciocínio e pensamento crítico, nos colégios militarizados, este modelo não tem vez. O professor fala, o aluno ouve, anota e obedece. 

É preciso entender que o que ocorre nos colégios militares jamais haverá de se repetir nesta proposta. Lá há rigorosa seleção prévia e os alunos seguem uma vocação para a carreira alinhada com certa ordem, disciplina e hierarquias. O que importa é que, ao contrário dos filhos das famílias mais abonadas, os jovens com menos condições estejam sujeitos à disciplina, aquela necessária a quem vai se inserir na sociedade em posição subalterna. 

O Ministério da Educação é hoje campo de atuação de fundações privadas financiadas por grandes grupos estratégicos. A reforma do ensino médio e a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) nasceram das demandas dessas entidades. Não nego aqui a situação precária da educação básica, cuja evasão chega quase à metade dos alunos matriculados, tampouco a necessidade de um currículo nacional bem embasado. A condução de tais temas, no entanto, a meu ver, objetiva mais a preparação de mão de obra do que às condições de produção do conhecimento. 

Por outro lado, grupos gigantescos e que controlam dezenas de instituições de ensino, incluído faculdades, avançam no mercado da educação. Recentemente, uma destas empresas, a Kroton, adquiriu a rede “Somos Educação” que agrega colégios, cursos pré-vestibulares como Anglo e as editoras Saraiva, Ática e Scipione, que têm como principal fonte de receita a venda de livros didáticos para o governo. 

Trata-se de empresas privadas sustentadas, em grande medida, por recursos públicos. Para estas grandes corporações educacionais uma simples reforma como a do ensino médio, por exemplo, pode representar o ganho de milhões de reais. Lucra-se, e muito, com a elaboração de livros adequados às novas normas e programas de ensino vendidos às escolas de todo o país. 

A histeria aparece na mídia e a demagogia vai ganhando a adesão de mais pessoas, mas é o capital que faz a sua parte de forma estratégica e discreta. Enquanto os palhaços ocupam o palco e distraem o público, os diretores do espetáculo fazem seu trabalho de forma silenciosa. Não importa a ética ou a mudança daquilo que, historicamente vem mal. Importa mesmo o resultado material e o lucro.

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