sexta-feira, 4 de maio de 2018

MANDOS E (DES) MANDOS




Se você ganha por volta de R$ 4.380,00 por mês, considere-se entre os 8% com os maiores rendimentos do país. Falando de uma maneira mais clara e direta: você ganha mais que 92% da população. Qual o motivo para este meu raciocínio? Algo bastante simples. O valor do auxílio moradia dos nossos juízes, mesmo aqueles que possuem casa própria é, justamente, este valor. Na verdade, para escamotear qualquer resquício de bom senso, 70% deles ganham acima do teto constitucional, hoje, por volta de R$ 33 mil.

Diante da queda do edifício em São Paulo, ouço pessoas afirmando, em tom condenatório, que "vagabundos ocupavam o local". O líder nas pesquisas para o governo de São Paulo foi um dos que, do alto de sua soberba, menosprezou aqueles que para ele são "seres inferiores". Não titubeou em faturar politicamente escarnecendo as vítimas, a quem acusou de pertencer a uma "organização terrorista". Esse tipo de governante considera crime que cidadãos sem moradia, sem renda e mergulhados em dificuldades por conta de tantos desmandos oportunistas, ocupem prédios ociosos, mas não considera danoso para a sociedade que um juiz ganhe apenas com auxílio moradia aquilo que a esmagadora maioria da população não é capaz de amealhar por seu trabalho no final de cada mês.

Muitos juízes tentam defender o famigerado auxílio como forma de compensar a pretensa falta de reajustes. Um subterfúgio retórico ilegal admitido pelos homens da lei, inclusive pelo principal paladino da moral nos últimos tempos, o ícone da refundação brasileira instalado em Curitiba. Imaginem, por exemplo, o que dizer aos professores do estado do Rio Grande do Sul que nos últimos 40 meses, receberam os seus ganhos sempre com atraso em, pelo menos 30 oportunidades, e, obviamente, sem os reajustes garantidos pela própria lei desde 2014. Nesta canalhice, o auxílio moradia dos juízes ainda é isento de tributação. Ou seja, um trabalhador que recebe apenas esse valor de salário recolhe 22,5% de imposto de renda. Eles, não!

Com o valor de apenas um destes auxílios moradia daria para bancar o aluguel social de umas dez famílias. Conforme dados do próprio STF, são mais de 17 mil magistrados que usufruem desta benesse pelo país afora. Se estes valores fossem revertidos para quem precisa, muita coisa poderia ser diferente. A luta por moradia não é um delito, mas o resultado dos tantos crimes que, historicamente, são cometidos por quem dá as cartas no Brasil. Trata-se, sobretudo, de descaso e falta de planejamento no âmbito habitacional aliada a má qualidade dos projetos tanto no nível estrutural, como em termos de localização e segurança. O que ocorreu, é, pois, consequência de uma tragédia anunciada.

Não é novidade que há movimentos e organizações lucrando com a pobreza. Todavia, valer-se da tragédia para convencer as pessoas que toda ocupação é feita por movimentos criminosos é de uma maldade assustadora. A maior parte da ocupação do prédio que veio abaixo em São Paulo era de imigrantes, mulheres e crianças. Como alguém, de sã consciência, consegue culpar as vítimas pelo ocorrido? Este tipo de afirmação, eu confesso, me faz perder um tanto da fé que sempre busco ter na humanidade. Gente que é capaz de ser indiferente com a dor do outro quando um prédio abandonado vira entulho sendo consumido pelas chamas e ceifando vidas. Ou que acredita numa "justiça sendo feita" quando ocorre uma desocupação na base da força bruta, é estarrecedor.

Desde que o prédio foi ao chão, autoridades já reclamaram da demora do judiciário em conceder reintegração do edifício para a união e criticaram os moradores por viverem naquele espaço apesar do risco. De minha parte, não ouvi quem tratasse o caso como o resultado da insuficiência de políticas efetivas para moradia voltadas à população mais pobre. Tempo e esforço são usados para a construção de um discurso que tenta dissociar causa e efeito. O poder público não risca o fósforo e nem entulha o lixo que vira combustível para a desgraça, mas a incompetência em resolver o problema faz com que sempre tenhamos uma fogueira pronta para queimar. Convenhamos que ninguém se sujeita a compartilhar um espaço com ratos e baratas porque gosta, mas porque este é o seu último recurso.

Quem, na verdade, desdenha deste tipo de coisas, simplesmente não compreendeu que uma sociedade deveria ser capaz de melhorar a cada dia. Que as gerações futuras não deveriam passar pelos mesmos sacrifícios das anteriores. Não entende que moradia, alimentação, educação e saúde, são fundamentos para uma convivência pacifica. Se tivéssemos tal consciência, é possível que nos desalojássemos de tanta inércia para exigir das autoridades que as centenas de prédios desocupados pertencentes ao poder público, cheios de dívidas e caindo aos pedaços, fossem desapropriados, reformados e destinados à moradia. Infelizmente, montados em uma estranha mesquinhez, muitos preferem dizer apenas "azar ou bem feito".

Os juízes que ganham o imoral auxílio moradia são os que julgam os casos das ocupações e todos os conflitos por moradia. Mais uma das absurdas contradições neste país. Oportuno, portanto, nunca desmerecer a grande lição deixada por um dos maiores ativistas estadunidenses do século passado, Malcolm X: “Se você não for cuidadoso, farão você odiar as pessoas que estão sendo oprimidas e amar as pessoas que estão oprimindo”. Confesso ter dificuldades em entender como famílias sem nada ao ocupar prédios públicos abandonados passem a ser esculachadas e juízes com salários astronômicos recebendo auxílio moradia sejam vistos como heróis. Tomara que daqui a algum tempo consigamos olhar para trás sem sentir tanta vergonha daquilo que hoje defendemos.

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