sexta-feira, 4 de outubro de 2019

VIVA A IGNORÂNCIA!

Para o filósofo Immanuel Kant, talvez a voz teórica mais expressiva do mundo moderno e, por extensão, do liberalismo político, haveria justiça na sociedade quando nela cada um tivesse a liberdade de fazer o que quisesse, contanto que isto não interferisse na liberdade dos demais. A máxima do pensador alemão é a base do funcionamento do Estado de Direito. Obediência à lei de acordo com a consciência de quem vive em sociedade, com a premissa de que a liberdade de uns não possa ofender ou interferir na liberdade dos outros.

Estes conceitos, que a partir do iluminismo passam a ser filtrados, reorganizados e recompostos na sociedade, também se apresentam na história a partir de diferentes interpretações. Eles não foram fundados por ideologias liberais ou conservadoras, mas iluminaram o desenvolvimento do capitalismo e, mais tarde, suscitaram controvérsias com uma visão dogmática que depreciava a democracia como elemento constitutivo para uma boa convivência na sociedade.

Por muito tempo, houve certo consenso de que era necessário superar a ignorância para desenvolver as potencialidades de cada indivíduo e favorecer a harmonia em sociedade. Mesmo a abstração do “homem econômico”, transformado em modelo no liberalismo clássico ou no neoliberalismo, supunha a superação da ignorância. A mesma ignorância que até bem pouco tempo, era vista como coisa a ser evitada de muitas maneiras. Mesmo pessoas com menor instrução, em geral, entendiam que o conhecimento era algo a ser buscado de forma contínua e persistente. Hoje, o que parece, é que o conhecimento virou uma mercadoria com pouca serventia.

A ignorância é uma prerrogativa que possui valor porque pode ser explorada tanto no plano econômico quanto no plano político. É a matéria prima para um processo de subjetivação que não enfrentará resistência de valores como a “verdade”, a “solidariedade”, a “inteligência”, a “lógica”. Diante da valorização da ignorância, o ser humano vai sendo ressignificado e percebido como alguém que se move a partir do senso comum. A “educação” e a “cultura”, por sua vez, passam a ser tratadas como ameaças e, por extensão, precisam ser deixadas de lado. Instaura-se, assim, um novo modelo: uma sociedade movida para e pela ignorância.

Com a demonização da educação e da cultura vistas como atividades degeneradas e “ideológicas”, aparece o indivíduo com orgulho de ser ignorante. Capaz de demonstrar sua adesão a certas “verdades” sem maior reflexão. Acontece uma curiosa inversão de valores e, como toda manifestação ideológica, não percebida como tal. O intelectual, ou seja, aquele que se diferencia por um saber específico, torna-se objeto de reprovação social, enquanto aumenta a espetacularização do desconhecimento.

Diante desse quadro, cada vez mais pessoas buscam se expressar a partir de uma linguagem empobrecida, com o recurso a slogans, frases feitas, chavões, jargões e construções gramaticalmente pobres, com o objetivo de contarem com a simpatia de interlocutores que eles supõem também serem ignorantes. A orientação é a de se limitar a formulações simples para conseguir a atenção de um número cada vez maior de adeptos. É neste clima de indigência intelectual que a pessoa vira especialista em qualquer assunto. Não basta o conhecimento, valem as convicções.

A ignorância é, pois, um dado natural. Basta não educar ou educar de forma precária para conseguir muita matéria-prima. Mantê-la, incentivá-la ou explorá-la, passam a ser objetivos estratégicos. Isso porque a ignorância permite uma nova e mais produtiva forma de desconhecimento a respeito dos outros seres humanos, dos mecanismos de exclusão, das técnicas de opressão e do como se interage com os demais. O valor da ignorância facilita a introjeção de uma normatividade adequada aos interesses de quem busca impor a sua vontade.

Um povo ignorante, por exemplo, pode não apenas ficar apático diante de qualquer autoritarismo como, inclusive, desejá-lo, na tentativa de suprir o medo que deriva do desconhecimento sobre fenômenos e valores como a liberdade e a verdade. É a ignorância que fomenta a base que naturaliza os absurdos. O indivíduo ignorante acredita que ele e suas limitações são o retrato do mundo. Incapaz de operar a distinção entre o essencial e o superficial, torna-se facilmente massa de manobra.

Não por acaso, o desconhecimento sobre a complexidade da sociedade e a insegurança gerada por essa ignorância, favorecem o surgimento de movimentos que buscam um passado idealizado para dar sentido à vida no presente. No lugar do convencimento por argumentos racionais ou científicos, reforçam-se os preconceitos, as confusões conceituais, os vazios cognitivos. A ignorância deixa de ser velada para se tornar celebrada.

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