sexta-feira, 29 de setembro de 2017

ENSINO RELIGIOSO NAS ESCOLAS PÚBLICAS



Não é fácil discernir acerca dos últimos acontecimentos no Brasil. Entre tantas questões, uma das mais emblemáticas, a meu ver, é a decisão acerca do ensino religioso confessional em um país, pretensamente laico, no qual a separação entre as convicções religiosas e a estrutura do Estado sempre foram muito tênues, controvertidas e plurais. Essa perspectiva auxilia a entender por que o Supremo Tribunal Federal (STF) posicionou-se de forma favorável ao ensino religioso confessional no âmbito das escolas públicas brasileiras.

Ao mesmo tempo em que estabelece o ensino religioso como disciplina facultativa do ensino fundamental, a Constituição Federal estabelece a liberdade de crença e proíbe que o Estado estabeleça "relações de dependência ou aliança" com "cultos religiosos ou igrejas" a não ser que esse tipo de colaboração seja "de interesse público". A pergunta que deve ser feita é como esta decisão conseguirá respaldar a garantia para confissões de fé minoritárias de modo que estas não acabem tendo na escola mais um espaço de discriminação?

O que o STF fez foi bagunçar ainda mais aquilo que, entrementes, já estava complicado e confuso. Com a decisão, abrem-se as portas para apenas uma religião ser o centro de alguma verdade absoluta. No fundo, esta discussão é sobre tolerância e a liberdade das futuras gerações. Não será novidade se nossas escolas públicas se transformarem em recintos onde será travado um embate de forças entre diferentes religiões. Uma disputa que, por certo, vai contra aquilo que é preconizado pela Lei de Diretrizes e Base da Educação e a nossa Carta Magna. A escola, a quem cumpre o papel de suscitar a formação crítica e cidadã, fica mais distante de ser espaço propício ao entendimento e o diálogo em tempos de obscuridade.

O julgamento revelou como a fé e o papel dos diferentes credos nos espaços públicos continua sendo um desafio em um país com uma diversidade religiosa bastante expressiva. Calcula-se que há mais de 140 confissões religiosas em nosso território. O próprio plenário do STF, assim como o da Câmara dos Deputados ostentam um crucifixo e uma bíblia. Durante o julgamento, um dos ministros da Suprema Corte brasileira, Gilmar Mendes, em atitude profundamente desrespeitosa, de forma irônica, chegou a perguntar se “em algum momento se discutiria a retirada da estátua do Cristo Redentor do morro do Corcovado, a extinção do feriado de Nossa Senhora Aparecida, a alteração dos nomes dos Estados. Se São Paulo passaria a se chamar Paulo? E o Espírito Santo? Poderia se pensar em espírito de porco ou em qualquer outra coisa”.

Em termos globais, a França, por exemplo, retirou os símbolos religiosos de sedes de governos, tribunais e escolas públicas no final do século 19. Na Espanha e em Portugal, as aulas são optativas, mesmo sendo Estados confessionais preponderantemente católicos. Em países como o Reino Unido, de maioria protestante; na Grécia, com um contingente maior de pessoas alinhadas com a compreensão ortodoxa; na Finlândia, de tradição luterana, a religião é uma disciplina obrigatória na grade curricular. Há que se ressaltar ainda que nos Estados Unidos, citado como exemplo em muitas situações, embora seja considerado um país com forte tradição religiosa, o ensino religioso confessional está banido das escolas públicas.

Nossa primeira Constituição republicana, bem ou mal, já contemplava a separação entre Estado e a Igreja. Lá se vai mais de um século e continuamos sem equacionar este dilema. Não é porque o país tem uma maioria de católicos que outras religiões cristãs que não concordam com um símbolo do Cristo crucificado, mas também espíritas, judeus, budistas, muçulmanos, ateus, religiões de matriz africana e indígena, precisam aceitar estas imagens em espaços públicos. O Estado deve garantir que todas as religiões tenham liberdade para exercer seus cultos. Cada uma tem o direito de ter seu templo, sua igreja, seu terreiro. Cada qual ostentando seus símbolos e realizando suas liturgias. Todavia, NÃO compete ao Estado envolver-se, positiva ou negativamente, para promover apenas UMA confissão religiosa.

Há uma fantasia na cabeça das pessoas imaginando que “mais Deus” significa um mundo melhor. Um mundo mais calmo e harmônico. O ser humano mata “com Deus, sem Deus, contra Deus”. Aniquila-se em nome da raça, em nome do Estado, em nome do poder de oprimir. Hoje, é um ateu que governa a Coréia do Norte e um religioso convicto que governa os Estados Unidos e a humanidade anda com medo por que ambos querem uma guerra que pode aniquilar milhões de seres humanos.

Não é religião ou falta dela que pode garantir a harmonia neste mundo tão maltratado. Religião é um signo aberto. Em nome dela muito pode ser justificado. Em nome de uma mesma tradição religiosa é possível amparar e aniquilar. A laicidade do estado é o que garante a preservação das diferenças de modo a não existir imposições e nem perseguições. O espaço público deve ser lugar onde todos, independentemente de suas premissas religiosas, são cidadãos de igual dignidade e valor. Escola é espaço da diversidade e da garantia das liberdades individuais.

Se algum dia o estado brasileiro ousou dar passos em direção a uma democracia laica, a decisão do STF jogou esta premissa no lixo. O significado de um Estado laico está além da separação entre Estado e igreja. A laicidade pressupõe o espaço público como lugar para o exercício da liberdade e da autonomia. A escola é o espaço da pluralidade, da formação cidadã e da tolerância. O modelo confessional afronta justamente o princípio da laicidade e, portanto, trata-se de um mecanismo a serviço de doutrinações religiosas.

Lugar de religião confessional é a igreja. A convicção religiosa deveria ser de foro íntimo. Ser exercitada em alguma comunidade da qual o indivíduo faz parte. Escola não é lugar para proselitismo religioso e nem catequese. Escola é lugar de estimular o conhecimento, a curiosidade, o pensamento crítico e reflexivo a respeito da vida. Essa decisão infeliz do STF apenas trouxe, de forma mais clara, aquilo que muitos já enxergavam, anunciavam, temiam. A religião através dos percursos da intolerância tendo um papel privilegiado nas relações de poder ao longo da história. É lamentável ver os princípios constitucionais (mais uma vez) desrespeitados pelo tribunal superior criado justamente para preservá-los.

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