Uma estrela não significa nada até que
morra. Pode parecer triste, mas é verdadeiro. Custa-nos valorizar os detalhes e
a presença. Quase não conhecemos o valor do que pertence à vida cotidiana e,
como encaramos as coisas como garantidas, as negligenciamos. Então, quando
menos percebemos, somos obrigados a olhar para portas que se fecharam.
Ansiamos que possam estar entreabertas,
outra vez, dando-nos o tempo necessário para recuperar o que ficou em algum
recôndito da memória e do coração. Pode ser tarde demais e que a perda traga
lamento, culpa ou impotência por algo que já tenha, inexoravelmente, findado.
Resta-nos contemporizar com alguma ideia de permanência fictícia através da
qual tentamos justificar nossas negligências para com os outros.
O grau de civilização e de espírito
humanitário de uma sociedade se mede pela forma como ela acolhe e convive com
os diferentes. Sob este aspecto a Europa vem nos oferecendo diversos exemplos
lastimáveis muito próximos da barbárie. Um dos casos mais emblemáticos foi o do
pequenino Ayslan Kurdi, de apenas 03 anos de idade, encontrado morto numa praia
da Turquia no final de 2015. Continuo acreditando que ele simbolizou o
naufrágio da sociedade ocidental com seus valores e verdades neoliberais.
Esta feição anacrônica e embaraçosa tão
conhecida e que faz lembrar o que ocorreu no processo de
expansão colonial e de conquista geopolítica na África, na Ásia e na América
Latina. O limite maior da cultura europeia sempre foi a sua arrogância, que se
revelou e revela na pretensão de ser a mais elevada do mundo, de constituir a
melhor forma de governo, a melhor consciência no âmbito dos direitos, de ser a
inspiração para a filosofia, as artes, as ciências e, como se não fosse o
suficiente aos seus atributos de soberba, uma única religião tida como a mais
plena, inequívoca, verdadeira, única: o cristianismo.
O mundo ocidental esquece com facilidade as
incontáveis violações dos direitos, as catástrofes que geraram ideologias
totalitárias, guerras devastadoras, colonialismo aniquilador, imperialismo atroz.
A dramática situação vivenciada no mundo hoje e os contingentes de refugiados oriundos
dos diversos países do mediterrâneo é consequência, em grande medida, do modelo
de sociedade global imposto aos quatro cantos do planeta pelos insólitos caminhos
da belicosidade, da ambição e da força.
Há que se reconhecer que se não tivesse
ajudado a invadir, destruir e saquear países como o Iraque, a Líbia e a Síria;
se não tivesse equipado com armas e veículos os terroristas que deram origem ao
Estado Islâmico; se não tivesse ajudado a criar o gigantesco engodo da
Primavera Árabe prometendo paz e prosperidade a quem depois só viveu a destruição,
a fome, os estupros, as doenças e a morte, a Europa não estaria às voltas com a
sua maior crise humanitária.
Segundo dados do Alto Comissariado das
Nações Unidas para os Refugiados, somente no ano de 2015, mais de 70 milhões de
pessoas foram obrigados a abandonar seus lares. Para efeitos de comparação,
isto representa mais de cinco vezes a população do estado do Rio Grande do Sul.
Somente o conflito sírio provocou mais de quatro milhões de desalojados. Os
países que mais souberam acolher vítimas foram o Líbano com mais de um milhão
de pessoas, e a Turquia com quase dois milhões.
A recepção dos refugiados na Europa é
carregada de má vontade, exacerbando ideologias fascistas, xenófobas, insensibilidade
e falta de bom senso. A acolhida é repleta de percalços, entraves políticos, violência
e discriminação, especialmente, por parte da Espanha e da Inglaterra. A mais
aberta e hospitaleira, apesar dos ataques que se fazem aos acampamentos dos
refugiados, tem sido a Alemanha.
O governo da Hungria declarou guerra aos
refugiados e tomou uma medida absurda e sem precedentes: mandou construir uma
cerca de arame farpado ao longo dos seus 175 Km de fronteira com a Sérvia para
impedir a chegada dos refugiados, mesmo que a maioria não deseje permanecer
neste país. Os governos da Eslováquia e da Polônia declararam que somente
aceitariam refugiados cristãos.
Que mundo é este que já não consegue
compadecer-se de suas crianças? Que sociedade é esta que não consegue aceitar
refugiados que nada cobram, mas que querem apenas um pouco de paz e não verem
os filhos chorando e com medo, saltando da cama pelos estrondos das armas da
guerra? Sociedade indiferente com famílias devastadas, casas destruídas,
história aniquilada?
O pequeno Ayslan é uma metáfora de uma
sociedade prostrada, moribunda, incapaz de chorar e de acolher vidas ameaçadas.
Uma sociedade que se diz cristã, mas que esqueceu o princípio bíblico de que
quem acolhe o forasteiro e o perseguido está, anonimamente, hospedando Deus. Acredito
que Ayslan foi viver e brincar num outro lugar, muito melhor. O mundo não era
digno do seu sorriso e de sua inocência.
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