sexta-feira, 1 de julho de 2016

Ayslan Kurdi - O Menininho Afogado




Uma estrela não significa nada até que morra. Pode parecer triste, mas é verdadeiro. Custa-nos valorizar os detalhes e a presença. Quase não conhecemos o valor do que pertence à vida cotidiana e, como encaramos as coisas como garantidas, as negligenciamos. Então, quando menos percebemos, somos obrigados a olhar para portas que se fecharam.

Ansiamos que possam estar entreabertas, outra vez, dando-nos o tempo necessário para recuperar o que ficou em algum recôndito da memória e do coração. Pode ser tarde demais e que a perda traga lamento, culpa ou impotência por algo que já tenha, inexoravelmente, findado. Resta-nos contemporizar com alguma ideia de permanência fictícia através da qual tentamos justificar nossas negligências para com os outros.

O grau de civilização e de espírito humanitário de uma sociedade se mede pela forma como ela acolhe e convive com os diferentes. Sob este aspecto a Europa vem nos oferecendo diversos exemplos lastimáveis muito próximos da barbárie. Um dos casos mais emblemáticos foi o do pequenino Ayslan Kurdi, de apenas 03 anos de idade, encontrado morto numa praia da Turquia no final de 2015. Continuo acreditando que ele simbolizou o naufrágio da sociedade ocidental com seus valores e verdades neoliberais.

Esta feição anacrônica e embaraçosa tão conhecida e que faz lembrar o que ocorreu no processo de expansão colonial e de conquista geopolítica na África, na Ásia e na América Latina. O limite maior da cultura europeia sempre foi a sua arrogância, que se revelou e revela na pretensão de ser a mais elevada do mundo, de constituir a melhor forma de governo, a melhor consciência no âmbito dos direitos, de ser a inspiração para a filosofia, as artes, as ciências e, como se não fosse o suficiente aos seus atributos de soberba, uma única religião tida como a mais plena, inequívoca, verdadeira, única: o cristianismo.

O mundo ocidental esquece com facilidade as incontáveis violações dos direitos, as catástrofes que geraram ideologias totalitárias, guerras devastadoras, colonialismo aniquilador, imperialismo atroz. A dramática situação vivenciada no mundo hoje e os contingentes de refugiados oriundos dos diversos países do mediterrâneo é consequência, em grande medida, do modelo de sociedade global imposto aos quatro cantos do planeta pelos insólitos caminhos da belicosidade, da ambição e da força.

Há que se reconhecer que se não tivesse ajudado a invadir, destruir e saquear países como o Iraque, a Líbia e a Síria; se não tivesse equipado com armas e veículos os terroristas que deram origem ao Estado Islâmico; se não tivesse ajudado a criar o gigantesco engodo da Primavera Árabe prometendo paz e prosperidade a quem depois só viveu a destruição, a fome, os estupros, as doenças e a morte, a Europa não estaria às voltas com a sua maior crise humanitária.

Segundo dados do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, somente no ano de 2015, mais de 70 milhões de pessoas foram obrigados a abandonar seus lares. Para efeitos de comparação, isto representa mais de cinco vezes a população do estado do Rio Grande do Sul. Somente o conflito sírio provocou mais de quatro milhões de desalojados. Os países que mais souberam acolher vítimas foram o Líbano com mais de um milhão de pessoas, e a Turquia com quase dois milhões.

A recepção dos refugiados na Europa é carregada de má vontade, exacerbando ideologias fascistas, xenófobas, insensibilidade e falta de bom senso. A acolhida é repleta de percalços, entraves políticos, violência e discriminação, especialmente, por parte da Espanha e da Inglaterra. A mais aberta e hospitaleira, apesar dos ataques que se fazem aos acampamentos dos refugiados, tem sido a Alemanha.
O governo da Hungria declarou guerra aos refugiados e tomou uma medida absurda e sem precedentes: mandou construir uma cerca de arame farpado ao longo dos seus 175 Km de fronteira com a Sérvia para impedir a chegada dos refugiados, mesmo que a maioria não deseje permanecer neste país. Os governos da Eslováquia e da Polônia declararam que somente aceitariam refugiados cristãos.

Que mundo é este que já não consegue compadecer-se de suas crianças? Que sociedade é esta que não consegue aceitar refugiados que nada cobram, mas que querem apenas um pouco de paz e não verem os filhos chorando e com medo, saltando da cama pelos estrondos das armas da guerra? Sociedade indiferente com famílias devastadas, casas destruídas, história aniquilada?

O pequeno Ayslan é uma metáfora de uma sociedade prostrada, moribunda, incapaz de chorar e de acolher vidas ameaçadas. Uma sociedade que se diz cristã, mas que esqueceu o princípio bíblico de que quem acolhe o forasteiro e o perseguido está, anonimamente, hospedando Deus. Acredito que Ayslan foi viver e brincar num outro lugar, muito melhor. O mundo não era digno do seu sorriso e de sua inocência.

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