Temos testemunhado durante décadas os educadores
brasileiros, dos diversos estados do país, ganhando um salário incompatível com
uma vida digna. É um fato, no entanto, com o qual parece ser possível conviver.
Por que escolas caindo literalmente aos pedaços, naufragando a cada chuva, numa
materialização explícita da situação crônica da educação pública, é algo com o
qual a maioria se acostuma? Por que o fato de os educadores serem ameaçados por
alunos e às vezes por pais em salas de aula, num confronto de gente desesperada,
é algo que se tolera?
Qualquer um, em qualquer classe social, em
qualquer esfera de poder vai repetir que “a educação deve ser prioridade” ou
que “a educação é o maior desafio para o país” ou que “sem melhorar a educação
o Brasil jamais será um país desenvolvido”. É um consenso, mas talvez se trate
do consenso mais vazio deste Brasil atual. Uma hipocrisia sem limites. Afinal quem
teria voz ou poder para mudar essa situação está pouco se lixando. Quem
não lembra a declaração de um deputado antes da votação da famigerada PEC 241? Essa
é a grande questão: os “meus” filhos estarem salvos, já para os filhos dos
“outros” sobra pena, lamento, mas não incomodo o suficiente para fazer disso
uma questão importante da vida.
Inclusão social no Brasil significa entrar
no barco dos que podem se salvar. Uma boa parcela das pessoas acredita que seus
filhos estão a salvo, pois, com esforço, puderam ser matriculados em escolas
particulares e assim, supostamente, estão a salvo da péssima educação pública. É
óbvio, ou pelo menos, deveria ser que a má qualidade da educação oferecida às
pessoas em algum momento vai afetar os privilégios dos mais abastados. Mão de
obra desqualificada é um problema sério no Brasil, com impacto em qualquer
projeção de futuro. Então, ainda que por egoísmo ou indiferença, deveria existir
uma preocupação tendo em vista as trágicas dimensões da catástrofe que se
vislumbra.
A educação está longe de
ser apenas algo que tenha a ver com conteúdos. Educação é um processo muito
mais complexo, no qual a diversidade das experiências é fundamental. É claro
que os que se habituaram a compreender diferenças com as lentes deturpadas por
ideologias mesquinhas sempre terão dificuldades para entender a diversidade de
experiências como uma coisa positiva. Como não lembrar que o diferente era
primeiro o escravo, depois o empregado, o subalterno, alguém com quem não havia
nada a aprender, já que a sua única função era servir?
Num país com a educação pública em ruínas
ninguém está a salvo. Esta ilusão de estar a salvo por ocupar determinados
“lugares” multiplica os absurdos. Busca-se salvaguardar apenas os próprios
interesses. Os outros que se danem. Com atitudes assim fica mais claro a
falência ética da sociedade brasileira. Pode humilhar um educador, pode pagá-lo
mal, pode submetê-lo a condições insalubres de trabalho, por que, afinal, ele
ocupa um espaço onde as coisas sempre foram assim. Azar.
Vale a pena compreender que a ampliação do
acesso à educação é muito recente no Brasil. Projetava-se um salto que deveria
ter sido dado, mas que ficou pela metade. Para muitos pais das camadas mais
pobres, eles mesmos analfabetos ou filho de analfabetos, só o fato de conseguir
matricular o filho numa escola, mesmo uma instituição de má qualidade, já foi
algo sem precedentes. Ter um filho com diploma universitário, mesmo que de uma
faculdade de terceira linha, foi motivo de orgulho.
Neste Brasil ainda muito impregnado pela
mentalidade subserviente, tantas vezes reatualizada para continuar em vigor,
ainda é difícil para muitos compreender a educação como o direito fundamental. Por
isso, a dificuldade em cobrar do Estado os caminhos da cidadania. É por conta desta
mentalidade, na qual a qualidade da educação vira um problema com solução
individual e não uma luta pública e coletiva, que a revolta é abafada e educadores
vão se convertendo em fantoches sem dignidade. Sem um lugar, sem um sentido
para aquilo que buscam e fazem.
O fato de as escolas públicas sofrerem
constantes depredações, ao mesmo tempo em que indicam para a violência
crescente, são também, por outro lado, um sinal de que a escola falha como um
lugar de acolhimento para os conflitos e na construção de um horizonte de sentido.
Ainda que as causas sejam muitas e complexas, é bastante óbvio que, sem outros espaços
para expressar este descontrole daquilo que não educa, resta a violência. A
escola que deveria dar condições de representação, não representa. E assim o fracasso
vai sendo multiplicado.
A depredação das escolas não deixa de ser uma
resposta à depredação de um Estado que permite as escolas apodrecerem, dando
provas de que aquele que lá está é considerado cidadão de segunda ou terceira
categoria. A violência dos alunos e, às vezes, também de pais de alunos contra
professores é também o sinal de que a lição dada pelo Estado foi bem
compreendida: professor vale pouco, quase nada, pode ser humilhado. Enquanto
alunos e educadores se violentam mutuamente, aqueles que têm a responsabilidade
de mudar essa situação não são incomodados.
Vive-se o jogo entre o visível e o
invisível. Os educadores são visíveis para o país, mas essa visibilidade é
ilusória. Neste momento, greves de professores esvaziam salas de aula em vários
estados e municípios brasileiros. E cadê a surpresa? Cadê o susto? Cadê as
manchetes? Cadê a indignação? É muito menor do que o bom senso e a catástrofe
educacional brasileira. É assim que caminha o Brasil... Convertido, recentemente,
pelo positivismo esdrúxulo da “ordem e progresso”, que nada mais significa do
que a reverência de princípios de segregação social. Um país que tem aprendido,
a duras penas, a conviver com repetidos absurdos. Um país que segue pelos
caminhos da perdição por confundir privilégios com direitos; justiça com
equidade; democracia com autoritarismo.
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