Em São Paulo, um empresário dirige seu automóvel para levar o filho de oito anos até o colégio. De repente, num cruzamento, ao parar para aguardar a luz verde no semáforo, é assaltado por um adolescente. O rapaz pede o celular e, em tom de ameaça, diz que pode cortar a garganta do garoto. Dias depois, o mesmo empresário reconhece o assaltante na rua. De imediato, resolve acelerar o carro. A consequência é o atropelamento e a morte do delinquente com a aprovação e as palmas de todos que haviam assistido a cena.
Verídica ou não, a história acima é
ilustrativa e exemplar. Ilustra como funciona a cultura da violência em nosso
país. Ela segue suas próprias regras quando pessoas são expostas na sua
integridade física e moral. A violência gera expectativas e fornece respostas
imediatas. Episódios truculentos passam a ser imaginados e repetidos com a
perspectiva de consolidar a ideia de que só a força é capaz de resolver os
conflitos. A violência vem sendo um elemento quase obrigatório na visão de
mundo que é multiplicada. É com ela e por ela que ocorre a convicção de que o
crime e a brutalidade são inevitáveis. O problema, então, é entender como
conseguimos chegar numa situação assim? Como e por que a violência
transformou-se em algo familiar e quase corriqueiro no cotidiano?
Arrisco três hipóteses. Primeiro, acredito
que a violência é capaz de tornar-se banal quando a lei deixa de ser
compreendida como instrumento limitador e de justiça. Os assustadores índices
de insegurança mostram que as leis foram perdendo o seu poder normativo e os
meios legais de coerção, a força e a capacidade que deveriam exercer. Diante do
quadro nebuloso, indivíduos e grupos passam a arbitrar aquilo que pode ou não
pode e aquilo que é justo ou injusto, sempre de acordo com opiniões pessoais,
geralmente dissociadas de princípios éticos válidos para a coletividade. Receio
que a grande imoralidade da cultura da violência esteja justamente na
disseminação de ideais particularizados. Cria-se, desta maneira, uma condição
para que qualquer atitude criminosa possa ser justificada e legítima.
Em segundo lugar, a cultura da violência,
ao valorizar a força, consolida uma nova hierarquia moral. O mundo
simplifica-se a partir de uma dicotomia banal – os fortes e os fracos. Quem
agride é visto com temor e ódio. Quem é vítima com desprezo e indiferença.
Pouco importa as características físicas, sociais, psicológicas e econômicas
dos sujeitos. A lógica da brutalidade nivela por baixo. Exclui qualquer
sentimento de compaixão, culpa ou responsabilidade diante do outro. A
dificuldade de convencer o outro da nocividade da violência
através de argumentos legais, éticos, morais, sempre é limitada por questões
emocionais. Essa é uma das razões pelas quais, por exemplo, é possível matar
menores desconsiderando o fato de que são crianças que estão sendo
assassinadas. Não se trata como muitos difundem, de que “já sabem o que estão
fazendo”, mas, sobretudo, que, como crianças, necessitam de cuidado adequado
para que não sejam tragados pela violência.
Em terceiro lugar, nos caminhos da cultura
da violência perde-se a noção daquilo que é um risco real ou risco em
potencial. A expectativa do perigo iminente faz com que as vítimas potenciais
aceitem com facilidade sugestões ou práticas punitivas ou de extermínio de
supostos agressores potenciais. Todos se sentem vulneráveis. Todos buscam
atacar primeiro. Todos vivem sob o medo de represálias. O clima de insegurança
generaliza-se. O resultado é o medo social, o pânico e as fobias. Na medida em
que o inimigo pode estar em toda parte tem-se a necessidade de nomeá-lo,
dando-lhe visibilidade. Prova disso, por exemplo, foi uma ONG na cidade de
Porto Alegre colocar placas em determinados espaços públicos alertando para assaltos.
Para mim, diante de tantas questões
emblemáticas, não é preciso muita perspicácia para saber que em sociedades
capitalistas marcadas a cada dia que passa pelo abominável individualismo, pela
competição, pela mobilidade social onde tudo gira em torno do dinheiro, da
ostentação, do status, a violência pode se transformar em um meio para alcançar
o que se deseja, quando com integridade, honestidade e trabalho isso se revelar
muito difícil. Sempre que conseguirmos perceber esta realidade e soubermos
apostar em meios éticos, morais, inteligentes, coletivos e legalmente
constituídos, o combate à violência poderá subverter a lógica que a maioria,
coagida ou não, prefere continuar perpetuando.
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