sexta-feira, 10 de junho de 2016

PERPLEXIDADE E REVERÊNCIA



Como sei aquilo que intuo saber? Nesta pergunta elementar da existência humana reside todo o problema da epistemologia. Uma questão complicada e controvertida. Não desejo esboçar aqui os fundamentos do conhecimento, mas delinear minhas ideias de como o mundo evangélico brasileiro tem se confrontado com as ambivalências e vicissitudes acerca da dúvida.
 
Sinto-me desafiado a aprofundar esta questão na medida em que se trata de algo muito instigante para mim como cristão, protestante, pesquisador das religiosidades contemporâneas. Todavia, arrisco dizer que, mesmo assim, não me parece simplória alguma resposta no sentido de explicar o receio diante da dúvida.
 
É próprio do ser humano, dito religioso, assegurar as suas convicções, as suas certezas e o seu acesso a uma verdade divina. Resultado desta convicção objetiva e real é que o indivíduo pode ser capaz de buscar convencer outras pessoas para aquilo que ele compreende como pleno. Admitir que a sua premissa talvez não plenifique uma verdade absoluta e inquestionável, constitui-se em fraqueza e desalinho para tradições religiosas que se intitulam herdeiras dos segredos divinos.
 
No Brasil, nas últimas décadas, este problema parece ter se tornado mais complexo entre os evangélicos e protestantes que optaram por privilegiar a concordância com uma série de formulações doutrinárias, vistas como verdade, e que devem ser afirmadas sem qualquer dúvida, como condição para participação na comunidade. Esta condição, hoje comumente associada ao fundamentalismo, tão carregado de significados negativos, a princípio não passava de um esforço para tornar textos sagrados em verdades válidas em um contexto peculiar. Minha suspeita é a de que um dos maiores equívocos dos teólogos fundamentalistas tem muito a ver com aquilo que também acabou sendo buscado pelos estudiosos racionalistas. Facilitar apenas a análise de dados, os fenômenos, as operações, os processos, as estruturas e as evoluções.
 
Intuo que sempre tenha faltado tanto aos racionalistas como aos teólogos, um pouco de humildade e um exame mais minucioso das próprias atitudes. Teólogos e cientistas necessitam reconhecer que não podem oferecer verdades definitivas independente de qual método estiver sendo utilizado. Neste sentido, vejo uma grande acomodação. Uma repetição de alguns dogmas. Uma falta de interesse ou ousadia para repensar as próprias convicções. Não se busca determinadas perguntas pelo receio de não encontrar respostas adequadas.
 
É certo que a repetição acaba traduzindo-se em conforto. Ninguém gosta de sentir-se desafiado a trilhar caminhos pouco conhecidos. No fundo, mais cômodo sempre será a reprodução capaz de confirmar a imutabilidade de nossas crenças. Mesmo que não nos sintamos envolvidos para uma vivência mais plena daquilo que temos e somos, a maioria prefere continuar ouvindo o que sempre ouviu, criando, desta forma, uma suposta certeza de apropriar-se de uma verdade incondicional.
 
A repetição também pode conduzir ao enfado. A optar pela repetição criamos uma realidade que exacerba a mesmice, o marasmo, e, em casos mais extremos, a indiferença. Neste sentido, é natural descortinar vivências que tragam a sensação de que o indivíduo consiga sublimar as intempéries de sua história. Cantar, bater palmas, dançar, emocionar-se. Criar uma distância daquilo que o discurso produz. Alentar sensações para fugir daquilo que a realidade, sobretudo nas dores e dificuldades, gera.
 
Sem a pretensão de revelar tantos dilemas, ouso apenas dizer que uma significativa parcela das igrejas brasileiras deveria reconhecer a própria incapacidade de abraçar verdades tão condicionadas pelo conhecimento absoluto de Deus. É preciso admitir que a essência divina talvez esteja muito adiante desta nossa capacidade humana em decifrá-la. É fato que ninguém tem as chaves do conhecimento pleno e pronto acerca de Deus. Esta é uma estrada que necessitamos percorrer, invariavelmente, todos os dias.
 
Por isso, é triste, lamentável e, talvez inaceitável, que estejamos vivendo tempos nos quais recrudescem as intolerâncias. Tempos que consolidam os guetos que visam controlar práticas sociais e desestimular a diversidade da fé, do pensar e do agir. Parece que vivemos às voltas com o tempo da idade média onde se inquiria os que se atrevessem a caminhar por outras fronteiras. Há tanta facilidade em rejeitar e aniquilar quem se atreve a vislumbrar outros paradigmas e desafiar categorias tidas como absolutas.
 
Um dos maiores pensadores da contemporaneidade, o filósofo, teórico social e crítico literário, Michel Foucault disse certa vez que a “verdade” como conceito absoluto precisaria do auxílio do poder. A verdade que prevalece não seria necessariamente “a” verdade, mas aquela que as instituições dominantes submetem aos seus seguidores. Portanto, a verdade é produzida graças a múltiplas coerções e produz efeitos regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade. Os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro.
 
Porque a verdade é sublime, porque o real está no imponderável, porque a realidade não se limita aos contornos da racionalidade, também eu, sinto-me inadequado para convencer os céticos, racionalistas, indiferentes ou fundamentalistas. Tudo o que sabemos acerca de Deus e da fé, deveria ser observado como provisório. Nossas convicções, tantas vezes, podem ser vacilantes, e as certezas, vagas. Entre caminhos e atalhos, ideias e utopias, desejo apenas que a minha perplexidade seja capaz de manifestar o tamanho da minha reverência.

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