Nos
últimos tempos a realidade conjuntural brasileira tem exacerbado um verdadeiro
show de horrores. Um dos exemplos emblemáticos desta loucura, mas que a maioria
talvez nem lembre mais, foi uma questão na prova do ENEM que trazia uma frase
da filósofa francesa Simone de Beauvoir versando sobre a violência contra as
mulheres. Foi capaz de causar indignação e respostas tenebrosas e completamente
alheias ao seu contexto por uma meia dúzia de lideranças políticas destituídas
de qualquer censo moral ou credibilidade. A ampla distorção das palavras
refletiu a falta de diálogo, aumentando o império da intolerância e
transformando o vazio do pensamento em burrice coletiva.
À
época, o deputado Marco Feliciano, em sua página de Facebook, disse se tratar
de tentativa de doutrinamento e completou: “Foi uma escolha ardilosa e
discrepante do que se tem decidido sobre o que se deve ensinar aos nossos
jovens”. O também Deputado e talvez o maior expoente do preconceito reacionário
bestificante no Brasil atual, Jair Bolsonaro, o mesmo que já havia declarado
que as mulheres deveriam ganhar menos por que engravidavam, não poupou
insultos. “Mais ou tão grave quanto a corrupção é a doutrinação... Querem nos
transformar em idiotas... Essa canalhada deverá ser extirpada”.
Em
meio a tantos absurdos, assustador mesmo foi o pronunciamento de um promotor de
justiça da cidade de Sorocaba, em São Paulo. Alguém que, em tese, deveria
primar pela equidade e o bom senso. Jorge Alberto de Oliveira Marun, declarou: “Aprendam
jovens: mulher não nasce mulher, nasce uma baranga francesa que não toma banho,
não usa sutiã e não se depila. Só depois é pervertida pelo capitalismo opressor
se torna mulher que toma banho, usa sutiã e se depila”. A declaração fazia
referência à célebre frase de Simone de Beauvoir, ”Não se nasce mulher,
torna-se mulher”.
Para
quem conhece um pouquinho da obra de Simone de Beauvoir, haverá de saber que
ela foi uma intelectual importante que em 1949, ao lançar sua obra, o segundo
sexo, colocou a mulher no centro do debate e rompeu com uma tradição filosófica
que a mantinha invisível. O que Beauvoir quis dizer com a frase “Não se nasce
mulher, torna-se” não é de difícil entendimento. Explico: ao dizer que “não se
nasce mulher, torna-se”, a filósofa francesa distingue entre a construção do
“gênero” e o “sexo dado” e mostra que não seria possível atribuir às mulheres
certos valores e comportamentos sociais como biologicamente determinados. Será mulher
e feminina através de um processo que a acompanhará no decorrer da vida. Será,
por exemplo, instigada a realizar brincadeiras de meninas, gostar de bonecas,
vestir tons de rosa, agir com delicadeza, submeter-se ao homem. Tenderá a
encapsular-se em um determinado estereótipo.
A
prova de que as ideias de Beauvoir fazem todo sentido pode também ser percebida
em termos geográficos. Ser mulher no Brasil pode incluir, e por vezes até
exigir doses de sensualidade, biquínis, corpo esculturais, poses em revistas de
moda. Mas e se pensarmos, por exemplo, em países como a Jordânia, a Arábia
Saudita, o Afeganistão ou o Iraque? Tentar compor um quadro como o da realidade
brasileira para os padrões do Oriente Médio poderia levar a morte em praça
pública. Portanto, ser mulher nos tempos bíblicos ou na Roma antiga é diferente
do que ser mulher hoje. É fato de que tudo não tem a ver apenas com cromossomos
e genitália, mas também com expectativas e construções sociais. É inegável!
Pergunto-me
se a sociedade brasileira possui algum discernimento crítico para perceber que
o feminismo não prega o ódio? Não prega a dominação das mulheres sobre os
homens? Feminismo clama por igualdade, pelo fim da dominação de um gênero sobre
outro. O feminismo não luta contra os homens, e sim contra o sistema de
dominação criado por homens. Feminismo não tem nada a ver com deixar de usar
batom, salto ou cercear a liberdade sexual. Feminismo não tem nada a ver com
esconder o corpo, mas com o direito de andar com a roupa que achar adequada sem
assédio ou constrangimentos. Feminismo não tem nada a ver com não ter filhos, e
sim com a escolha de como e quando esses filhos virão.
Cá
pra nós, o que esperar de uma sociedade que na sua esmagadora maioria acredita
que "bandido bom é bandido morto", que “negros ou índios não são
gente” que mulher “tem de esquentar a barriga no fogão e esfriá-la no tanque”?
É uma pena que esta “boçalidade do mal” como enfatizado por Hannah Arendt, não
conflua para um debate movido por menos ódio, preconceito e fundamentalismos.
Graças
a mulheres como Simone de Beauvoir os machos foram tirados da zona de conforto
que os situava como chefes de família e os liberava das tarefas domésticas e da
divisão das responsabilidades. Graças a ela as mulheres conseguiram perceber
que não eram mais objetos e nem propriedade dos homens. Não tenho dúvidas que
fazer um jovem refletir sobre gênero é bem mais importante do que obrigá-lo a
marcar uma cruzinha para responder algumas questões transcendentais numa prova.
Pode-se discordar do pensamento de Beauvoir, mas que
haja capacidade crítica e argumentativa para fazê-lo em vez de destilar apenas
machismo e burrice. Beauvoir realizou um estudo sério. Se for pra criticar, ao
menos que sejam feitas críticas sérias e embasadas. Pessoalmente, suspeito que o
medo que as ideias de Beauvoir causam deveria ser visto como prova de nossa
incapacidade para vivenciar a tolerância, o entendimento, o diálogo. Fosse
falso o que a autora defende, não haveria qualquer motivo para que se
acirrassem os ânimos.
Bela reflexão. Todos precisamos olhar para nossos filhos homens e assumir o desafio d criar melhores homens. Socialmente conscientes d seu papel nessa trágica e secular condição feminina. Quanto as nossas meninas...vamos continuar lutando por um mundo melhor!
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