sexta-feira, 17 de junho de 2016

IMBECILIDADE SEM LIMITES


Nos últimos tempos a realidade conjuntural brasileira tem exacerbado um verdadeiro show de horrores. Um dos exemplos emblemáticos desta loucura, mas que a maioria talvez nem lembre mais, foi uma questão na prova do ENEM que trazia uma frase da filósofa francesa Simone de Beauvoir versando sobre a violência contra as mulheres. Foi capaz de causar indignação e respostas tenebrosas e completamente alheias ao seu contexto por uma meia dúzia de lideranças políticas destituídas de qualquer censo moral ou credibilidade. A ampla distorção das palavras refletiu a falta de diálogo, aumentando o império da intolerância e transformando o vazio do pensamento em burrice coletiva.

À época, o deputado Marco Feliciano, em sua página de Facebook, disse se tratar de tentativa de doutrinamento e completou: “Foi uma escolha ardilosa e discrepante do que se tem decidido sobre o que se deve ensinar aos nossos jovens”. O também Deputado e talvez o maior expoente do preconceito reacionário bestificante no Brasil atual, Jair Bolsonaro, o mesmo que já havia declarado que as mulheres deveriam ganhar menos por que engravidavam, não poupou insultos. “Mais ou tão grave quanto a corrupção é a doutrinação... Querem nos transformar em idiotas... Essa canalhada deverá ser extirpada”.


Em meio a tantos absurdos, assustador mesmo foi o pronunciamento de um promotor de justiça da cidade de Sorocaba, em São Paulo. Alguém que, em tese, deveria primar pela equidade e o bom senso. Jorge Alberto de Oliveira Marun, declarou: “Aprendam jovens: mulher não nasce mulher, nasce uma baranga francesa que não toma banho, não usa sutiã e não se depila. Só depois é pervertida pelo capitalismo opressor se torna mulher que toma banho, usa sutiã e se depila”. A declaração fazia referência à célebre frase de Simone de Beauvoir, ”Não se nasce mulher, torna-se mulher”.


Para quem conhece um pouquinho da obra de Simone de Beauvoir, haverá de saber que ela foi uma intelectual importante que em 1949, ao lançar sua obra, o segundo sexo, colocou a mulher no centro do debate e rompeu com uma tradição filosófica que a mantinha invisível. O que Beauvoir quis dizer com a frase “Não se nasce mulher, torna-se” não é de difícil entendimento. Explico: ao dizer que “não se nasce mulher, torna-se”, a filósofa francesa distingue entre a construção do “gênero” e o “sexo dado” e mostra que não seria possível atribuir às mulheres certos valores e comportamentos sociais como biologicamente determinados. Será mulher e feminina através de um processo que a acompanhará no decorrer da vida. Será, por exemplo, instigada a realizar brincadeiras de meninas, gostar de bonecas, vestir tons de rosa, agir com delicadeza, submeter-se ao homem. Tenderá a encapsular-se em um determinado estereótipo.


A prova de que as ideias de Beauvoir fazem todo sentido pode também ser percebida em termos geográficos. Ser mulher no Brasil pode incluir, e por vezes até exigir doses de sensualidade, biquínis, corpo esculturais, poses em revistas de moda. Mas e se pensarmos, por exemplo, em países como a Jordânia, a Arábia Saudita, o Afeganistão ou o Iraque? Tentar compor um quadro como o da realidade brasileira para os padrões do Oriente Médio poderia levar a morte em praça pública. Portanto, ser mulher nos tempos bíblicos ou na Roma antiga é diferente do que ser mulher hoje. É fato de que tudo não tem a ver apenas com cromossomos e genitália, mas também com expectativas e construções sociais. É inegável!


Pergunto-me se a sociedade brasileira possui algum discernimento crítico para perceber que o feminismo não prega o ódio? Não prega a dominação das mulheres sobre os homens? Feminismo clama por igualdade, pelo fim da dominação de um gênero sobre outro. O feminismo não luta contra os homens, e sim contra o sistema de dominação criado por homens. Feminismo não tem nada a ver com deixar de usar batom, salto ou cercear a liberdade sexual. Feminismo não tem nada a ver com esconder o corpo, mas com o direito de andar com a roupa que achar adequada sem assédio ou constrangimentos. Feminismo não tem nada a ver com não ter filhos, e sim com a escolha de como e quando esses filhos virão.


Cá pra nós, o que esperar de uma sociedade que na sua esmagadora maioria acredita que "bandido bom é bandido morto", que “negros ou índios não são gente” que mulher “tem de esquentar a barriga no fogão e esfriá-la no tanque”? É uma pena que esta “boçalidade do mal” como enfatizado por Hannah Arendt, não conflua para um debate movido por menos ódio, preconceito e fundamentalismos.


Graças a mulheres como Simone de Beauvoir os machos foram tirados da zona de conforto que os situava como chefes de família e os liberava das tarefas domésticas e da divisão das responsabilidades. Graças a ela as mulheres conseguiram perceber que não eram mais objetos e nem propriedade dos homens. Não tenho dúvidas que fazer um jovem refletir sobre gênero é bem mais importante do que obrigá-lo a marcar uma cruzinha para responder algumas questões transcendentais numa prova.

Pode-se discordar do pensamento de Beauvoir, mas que haja capacidade crítica e argumentativa para fazê-lo em vez de destilar apenas machismo e burrice. Beauvoir realizou um estudo sério. Se for pra criticar, ao menos que sejam feitas críticas sérias e embasadas. Pessoalmente, suspeito que o medo que as ideias de Beauvoir causam deveria ser visto como prova de nossa incapacidade para vivenciar a tolerância, o entendimento, o diálogo. Fosse falso o que a autora defende, não haveria qualquer motivo para que se acirrassem os ânimos.



Um comentário:

  1. Bela reflexão. Todos precisamos olhar para nossos filhos homens e assumir o desafio d criar melhores homens. Socialmente conscientes d seu papel nessa trágica e secular condição feminina. Quanto as nossas meninas...vamos continuar lutando por um mundo melhor!

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