sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

A Cama de Procusto


A mitologia grega descreve o personagem Procusto como aquele que atraia viajantes para a sua casa situada na serra de Eleusis, entre Trezena e Atenas. Seu comportamento simpático e convidativo escondia um segredo terrível. Todos os convidados precisavam se deitar em uma cama de ferro e quando dormiam ele aproveitava para amarrá-los e amordaçá-los. Se a pessoa fosse mais alta que o leito, e a cabeça, os pés ou as mãos não coubessem nas dimensões da cama, o gigante os cortava; se o corpo fosse menor, ele quebrava os ossos para que se ajustasse às medidas.

A deusa Atena incomodada com o clamor das vítimas se dispõe a procurar o malfeitor na tentativa de convencê-lo a mudar de atitude, mas, fica estarrecida quando ouve a argumentação de que ele estava apenas fazendo aquilo que lhe havia sido designado pelos deuses. A sua cama estava apenas servindo à justiça e acabando com as diferenças entre as pessoas.

Verdade é que ninguém jamais se adaptava à cama, pois havia dois tamanhos para que o hóspede nunca coubesse perfeitamente. O reinado de terror protagonizado por Procusto durou muito tempo, até que Teseu — o herói que derrotou o Minotauro da ilha de Creta e se tornou o rei de Atenas — capturou o gigante e o sentenciou ao mesmo tratamento que dava aos convidados, prendendo-o na cama e cortando a sua cabeça e os seus pés.

A estratégia utilizada por Procusto serve como metáfora para situações nas quais se busca impor um determinado padrão. Serve também, por consequência, para compreender e explicar momentos onde se quer obrigar que algo se encaixe em algum modelo pré-estabelecido. Por isso mesmo, ela representa os meandros da intolerância, e, nos dias atuais, certamente, auxilia a explicar melhor a negação da ciência e a relativização de vidas humanas.

A metáfora está muito ligada ao egoísmo. É óbvio que na realidade atual ninguém se utiliza dos mesmos requintes de crueldade, mas, não raro, o que vemos são palavras e gestos de agressividade e repulsa a quem pensa ou age diferente. O bandido da mitologia grega está sempre à solta em nosso mundo. Seu espírito aparece quando alguém sente vontade de enquadrar o outro em seus próprios padrões.

Indivíduos que se valem da lógica de Procusto defendem posições extremadas, que ferem o bom senso e obrigam os que estão sob o seu comando a se adequar aos seus delírios e a sua indiferença com o sofrimento e a morte dos semelhantes. Há aqueles, por exemplo, que se investem de uma pretensa autoridade religiosa e ousam interpretar as Sagradas Escrituras de acordo com o que querem. Os culpados, ou então, os “pecadores”, no caso, são sempre os outros.

O gesto simbólico de serrar ou estirar o hóspede de acordo com o tamanho da cama representa, entre outras coisas, o protagonismo individualista. A materialização do jeitinho, da intolerância e intransigência. Configura a tirania intelectual exercida por pessoas que não toleram e nem aceitam as ações e o ponto de vista alheio. Tem a ver com quem precisa “moldar” o outro, adaptando-o às suas próprias medidas.

Em analogia ao personagem mitológico, é preciso ter cuidado para não cortar aquilo que não nos interessa. Também levar em conta para não alongar ideias ou interpretações que não edificam. Importa, sobretudo, exercitar a coerência nas atitudes e ações. Não ser escravo de uma única régua de entendimento. Que saibamos nos libertar das algemas da prepotência, ampliando o conhecimento, valorizando aquilo que produz o bem comum, a justiça, o entendimento e a paz.

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