sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

FALTA DE VERGONHA NA CARA



A revolta contra as benesses autoconcedidas por algumas carreiras da magistratura está começando a tomar corpo na sociedade. Com direitos históricos correndo o risco de serem extintos para a maior parte dos trabalhadores, causa inconformidade que alguns grupos se sirvam dos recursos públicos para aumentar as suas receitas pessoais. Mais de 17 mil magistrados e quase 13 mil procuradores do Ministério Público Federal recebem auxílio-moradia desde setembro de 2014. Segundo a ONG Contas Abertas, neste período, já foram gastos mais de R$ 5,4 bilhões com o benefício. Como comparação, daria para construir mais de 150 mil moradias populares ou, então, adquirir 40 mil ambulâncias, 30 mil ônibus escolares ou edificar, pelo menos, uma creche na metade dos municípios brasileiros para atender mais de 400 mil crianças.

Ganhar muito acima da média do funcionalismo e com polpudos penduricalhos adicionais como férias de 60 dias, auxílios alimentação, transporte, creche, educação, saúde, capacitação, produtividade, gratificações, entre outros, é, de fato, para poucos. O que impressiona mesmo é a ginástica para justificar as regalias. Os fundamentos subestimam a capacidade crítica de qualquer indivíduo. Esquece-se, de forma conveniente, que não existe no ordenamento brasileiro alguma carreira que possa ser, minimamente, comparável. Ou alguma outra categoria como a dos professores, policiais, motoristas, por exemplo, tem alguma similaridade com as deste grupo?

Os dados impressionam: só no estado de São Paulo, quase a metade dos que recebem o auxílio possuem imóveis próprios. Muitos, com mais de um registrado em seu nome. O desembargador José de Paula Neto, por exemplo, é proprietário de 60 imóveis. Isso mesmo, 60. Alguns em áreas nobres da capital paulista. Quem deveria ser um exemplo de conduta ética, não parece estar preocupado. Amparados por uma liminar de um colega, o ministro Luiz Fux, do STF, simplesmente se atropela qualquer resquício de bom senso em troca de um bônus salarial. Mesmo que a letra da lei sublinhe que NINGUÉM deveria ganhar acima do teto (hoje equivalente a R$ 33.700), a maioria excede este valor, furando o teto. Faz-se chacota do cidadão brasileiro ao ilustrar um moralismo sem olhar a própria realidade.

Dois argumentos nesta desfaçatez predominam. Um é que se trata de algo “legal”. O outro é que a remuneração da categoria está defasada e, portanto, o benefício seria uma forma de cobrir o buraco nos ganhos. Argumento utilizado, por exemplo, por Sérgio Moro, em reportagem publicada pela Folha de São Paulo poucos dias atrás. Para ele, o benefício "mesmo sendo questionável, compensa a falta de reajuste nos vencimentos" dos magistrados. Conforme dados de 2015, Moro recebe, entre salários e penduricalhos, quase 60 mil reais. Portanto, quase duas vezes o que é enunciado pela lei. Sua versão para justificar o auxilio moradia não deixa de ser um salvo conduto para que os brasileiros com salários, supostamente defasados, deem uma de espertos, driblando o bom sendo e a moralidade para engordar o seu contracheque no fim do mês.

O auxílio-moradia poderia estar sendo aplicado em políticas habitacionais pelo país afora, pois temos um déficit habitacional gigantesco. Por outro lado, se olharmos para a realidade brasileira, veremos que hoje, 92% da população ganha menos do que aquilo que é pago a título de auxílio para juízes e procuradores. A desigualdade é nociva porque dificulta que as pessoas vejam a si mesmas como iguais e merecedoras da mesma consideração. Ao mesmo tempo, implica numa percepção de que o poder público existe para servir aos mais abonados e controlar os mais pobres.

Magistrados e membros do ministério público adotaram ao longo dos últimos anos um discurso moralista contra tudo que lhes pareceu torto no trato com a coisa pública. Quem exige tanta moral dos outros deveria, em tese, mostrar que não faz concessões quando se trata da própria prática. Qualquer trabalhador ou funcionário público que fizesse uso da mesma artimanha, certamente estaria sujeito a ser enquadrado por apropriação indébita, mas juízes podem, numa boa, sem volteios. Uma parcela da população, inclusive, acha normal tal conduta. Para se portar como guardião da moralidade, o esperado seria que não houvesse distorção acerca dos padrões éticos que norteiam a sociedade.

Em tempos onde o país agoniza em sua conduta ética e moral, o debate sobre os ganhos indevidos é importante. Um dos poucos casos na contramão desta realidade é a do juiz Celso Fernando Karsburg, de Santa Cruz do Sul (RS) que renunciou publicamente ao recebimento do auxílio-moradia por considerar a gratificação “imoral, indecente e antiética”. Seu exemplo faz acender uma pequena fagulha na escuridão. Afinal, o corporativismo em causa própria parece ser um resquício de nossa herança patrimonialista. Importa nunca esquecer que nem sempre o que é legal pode ser considerado moral. Simples assim.

Nenhum comentário:

Postar um comentário