A revolta contra as benesses autoconcedidas
por algumas carreiras da magistratura está começando a tomar corpo na
sociedade. Com direitos históricos correndo o risco de serem extintos para a
maior parte dos trabalhadores, causa inconformidade que alguns grupos se sirvam
dos recursos públicos para aumentar as suas receitas pessoais. Mais de 17 mil
magistrados e quase 13 mil procuradores do Ministério Público Federal recebem
auxílio-moradia desde setembro de 2014. Segundo a ONG Contas Abertas, neste
período, já foram gastos mais de R$ 5,4 bilhões com o benefício. Como
comparação, daria para construir mais de 150 mil moradias populares ou, então, adquirir
40 mil ambulâncias, 30 mil ônibus escolares ou edificar, pelo menos, uma creche
na metade dos municípios brasileiros para atender mais de 400 mil crianças.
Ganhar muito acima da média do funcionalismo e
com polpudos penduricalhos adicionais como férias de 60 dias, auxílios
alimentação, transporte, creche, educação, saúde, capacitação, produtividade, gratificações,
entre outros, é, de fato, para poucos. O que impressiona mesmo é a ginástica
para justificar as regalias. Os fundamentos subestimam a capacidade crítica de
qualquer indivíduo. Esquece-se, de forma conveniente, que não existe no
ordenamento brasileiro alguma carreira que possa ser, minimamente, comparável.
Ou alguma outra categoria como a dos professores, policiais, motoristas, por
exemplo, tem alguma similaridade com as deste grupo?
Os dados impressionam: só no estado de
São Paulo, quase a metade dos que recebem o auxílio possuem imóveis próprios.
Muitos, com mais de um registrado em seu nome. O desembargador José de Paula
Neto, por exemplo, é proprietário de 60 imóveis. Isso mesmo, 60. Alguns em
áreas nobres da capital paulista. Quem deveria ser um exemplo de conduta ética,
não parece estar preocupado. Amparados por uma liminar de um colega, o ministro
Luiz Fux, do STF, simplesmente se atropela qualquer resquício de bom senso em
troca de um bônus salarial. Mesmo que a letra da lei sublinhe que NINGUÉM
deveria ganhar acima do teto (hoje equivalente a R$ 33.700), a maioria excede
este valor, furando o teto. Faz-se chacota do cidadão brasileiro ao ilustrar um
moralismo sem olhar a própria realidade.
Dois argumentos nesta desfaçatez predominam.
Um é que se trata de algo “legal”. O outro é que a remuneração da categoria
está defasada e, portanto, o benefício seria uma forma de cobrir o buraco nos
ganhos. Argumento utilizado, por exemplo, por Sérgio Moro, em reportagem
publicada pela Folha de São Paulo poucos dias atrás. Para ele, o benefício
"mesmo sendo questionável, compensa a falta de reajuste nos
vencimentos" dos magistrados. Conforme dados de 2015, Moro recebe, entre salários
e penduricalhos, quase 60 mil reais. Portanto, quase duas vezes o que é
enunciado pela lei. Sua versão para justificar o auxilio moradia não deixa de
ser um salvo conduto para que os brasileiros com salários, supostamente
defasados, deem uma de espertos, driblando o bom sendo e a moralidade para
engordar o seu contracheque no fim do mês.
O auxílio-moradia poderia estar sendo
aplicado em políticas habitacionais pelo país afora, pois temos um déficit
habitacional gigantesco. Por outro lado, se olharmos para a realidade
brasileira, veremos que hoje, 92% da população ganha menos do que aquilo que é
pago a título de auxílio para juízes e procuradores. A desigualdade é nociva
porque dificulta que as pessoas vejam a si mesmas como iguais e merecedoras da
mesma consideração. Ao mesmo tempo, implica numa percepção de que o poder
público existe para servir aos mais abonados e controlar os mais pobres.
Magistrados e membros do ministério público
adotaram ao longo dos últimos anos um discurso moralista contra tudo que lhes
pareceu torto no trato com a coisa pública. Quem exige tanta moral dos outros
deveria, em tese, mostrar que não faz concessões quando se trata da própria
prática. Qualquer trabalhador ou funcionário público que fizesse uso da mesma
artimanha, certamente estaria sujeito a ser enquadrado por apropriação indébita,
mas juízes podem, numa boa, sem volteios. Uma parcela da população, inclusive, acha
normal tal conduta. Para se portar como guardião da moralidade, o esperado
seria que não houvesse distorção acerca dos padrões éticos que norteiam a
sociedade.
Em tempos onde o país agoniza em sua conduta
ética e moral, o debate sobre os ganhos indevidos é importante. Um dos poucos
casos na contramão desta realidade é a do juiz Celso Fernando Karsburg, de
Santa Cruz do Sul (RS) que renunciou publicamente ao recebimento do
auxílio-moradia por considerar a gratificação “imoral, indecente e antiética”.
Seu exemplo faz acender uma pequena fagulha na escuridão. Afinal, o
corporativismo em causa própria parece ser um resquício de nossa herança
patrimonialista. Importa nunca esquecer que nem sempre o que é legal pode ser
considerado moral. Simples assim.
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