sexta-feira, 5 de maio de 2017

O DERRADEIRO CAMINHO


A história humana pode ser contada pelo modo como cada sociedade, em diferentes períodos históricos, olhou para a morte e lidou com ela. Tempos atrás tive o privilégio de ler um dos trabalhos mais completos acerca do assunto. Trata-se da obra do historiador francês Philippe Ariès, o homem diante da morte. Na análise, o historiador mostra como, a partir do século 20, a morte passou a ser escondida e calada. Não mais um evento público, mas uma espécie de acontecimento sem um lugar definido.

A sociedade tecnicista fez com que a morte fosse ocultada nos recintos hospitalares. Era preciso morrer sem muitas pessoas por perto e, de preferência, transformá-la e um evento momentâneo para ser esquecido ou superado de forma rápida. É por conta desta mentalidade que é possível explicar por que, até hoje, alguém que perde quem ama, acaba tendo, legalmente, um tempo muito curto para se ausentar do trabalho e começar a elaborar o seu luto. Quando as pessoas desejam que a ciência prolongue a vida a qualquer preço e a juventude parece ser um valor primordial, a morte vira um estorvo.

Não é novidade que o fim da vida seja um tema controverso e bastante ignorado. A lógica que mapeia este pensamento é a de que ao não tratarmos do assunto, talvez não tenhamos a necessidade de encontrar meios para superá-lo. O melhor, o mais fácil, parece ser fingir que a morte nunca haverá de nos encontrar. “A morte no hospital, eriçado de tubos, está prestes a se tornar hoje uma imagem simplória”, escreve Philippe Ariès. Ninguém quer falar sobre o que está acontecendo com o doente, nem ele próprio. Os familiares sofrem e, na maioria das vezes, não sabem o que fazer, mas, fingem que tudo esteja bem.

De minha parte, gostaria que houvesse um olhar mais profundo e alentador sobre a finitude humana. Talvez isso somente aconteça quando houver mais disposição para ouvir. Quando novas narrativas acerca do envelhecimento, das doenças e do derradeiro caminho fizerem parte do cotidiano. Mais importante do que prolongar a vida a qualquer preço, e em geral, o preço pode ser bem alto, trata-se de garantir a dignidade da vida nos dias que nos são concedidos. Mesmo com tratamentos dolorosos e invasivos, que haja meios para estarmos cercados por quem estimamos, reafirmando o valor daquilo que até nas dificuldades, é capaz de ser especial.

Ao calarmos o que está em nosso coração perdemos a oportunidade para compreender o que faz a vida valer a pena. Em tempos onde a jornada é marcada pelo ativismo inconsequente, pode ser que ao percebermos que temos tempo, haveremos de descobrir que nosso tempo possa ter acabado. É preciso sensibilidade e perspicácia para multiplicar a extensão dos nossos dias. Há muitas maneiras de encarar a finitude, mas poucos são os que estão dispostos a estender a mão, ouvir e abraçar. Como já dizia Fernando Pessoa – o valor das coisas não está no tempo que elas duram, mas na intensidade com que acontecem. Por isso, existem momentos inesquecíveis, coisas inexplicáveis e pessoas incomparáveis.

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