sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

HUMANIDADE DESUMANA

Vivemos um tempo de extraordinário desenvolvimento das ciências e das tecnologias. É possível vislumbrar a fragmentação do conhecimento em incontáveis direções. Os benefícios advindos da pesquisa e dos experimentos são analisados, em grande medida, como sendo um indicativo para a força motriz do progresso. Por outro lado, esta realidade também acaba aniquilando as diretrizes culturais que permitem a coexistência, a comunicação e a solidariedade.

Ocorre uma separação dos seres humanos em grupos culturais condicionados pela linguagem, por determinados códigos de conduta e pela noção de um conhecimento particular. Ao que parece, a ciência e a tecnologia não tem conseguido desempenhar um papel unificador em torno da noção de cultura.

Cada indivíduo que, em algum momento de sua vida, já tenha se deparado com a leitura inebriante de clássicos como, por exemplo, Shakespeare, Vitor Hugo, Dostoiévski, Goethe ou Fernando Pessoa, é capaz de assimilar com maior desenvoltura que as pessoas sentem-se comprometidas solidariamente quando capazes de exercitar a essência da partilha, independentemente de sua posição social, situação financeira, religião ou período histórico.

Nada nos protege melhor da estupidez do preconceito, do racismo, da xenofobia, do sectarismo religioso ou do anacronismo político, do que esta verdade recorrente na grande literatura: todos são iguais. As diferenças étnicas, sociais, politicas, religiosas e culturais constituem-se como sendo a maior riqueza do legado humano e, estimá-las como manifestação da multiforme criatividade humana, continua sendo o maior desafio da contemporaneidade.

Receio que ainda seja preciso aprender o que somos e como somos em nossa humanidade, com nossas ações, sonhos e adversidades. Tanto no espaço público como na privacidade de nossas consciências. A ciência não pode perder-se em si mesma. O conhecimento gerar insensatez. A tecnologia sufocar a busca pela equidade. É preciso preservar uma visão integradora e fraterna neste mundo tão machucado pela mentira, pelo “faz de conta”, pela incapacidade das pessoas exercitarem a bondade e a gratidão.

É inadmissível que uma sociedade tão perspicaz em evocar suas prerrogativas jurídicas quando algum de seus direitos patrimoniais é questionado, possa valer-se de mecanismos reacionários para subverter os valores que ela própria instituiu. Uma sociedade que, todos os dias, hierarquiza os seres humanos valendo-se, sobretudo, de indicadores econômicos, religiosos e culturais.

Esta realidade é bastante conhecida. Europeus, na idade média, não tiveram problemas em equiparar os indígenas a animais, dizimando-os. Qualificaram também os africanos como bárbaros ou primitivos, escravizando-os. Na tentativa de legitimar toda a sorte de segregação às mulheres, diversos concílios discutiram se elas teriam ou não uma alma.

Para algumas religiões, aqueles que professam a sua fé são filhos, os demais, meras criaturas de Deus. Ora, se não são filhos de Deus, se não possuem filiação e proteção divinas, caso recusem a fé, são hostilizados e tidos como inferiores. Por vezes esta inferioridade é tamanha que as suas existências ofendem os “sagrados corações religiosos”, que reagem com torturas, perseguições, aniquilações. Basta lembrar o período das cruzadas, a inquisição, o nazismo com o extermínio de judeus, o fundamentalismo triunfalista da Al Qaeda ou do Estado Islâmico.

É a desumanização que consolida o genocídio, tanto no passado como no presente. É fácil perceber as incongruências históricas no desrespeito aos direitos fundamentais para uma convivência pacífica e harmoniosa. No entanto, é lamentável e absurdo não enxergar as mazelas e os dilemas do nosso tempo.

Hoje, a passividade com que vemos a segregação dos negros, a discriminação dos pobres, o desprezo aos imigrantes, a demonização dos infratores, a subjugação das mulheres, a estigmatização dos homossexuais, o desrespeito às comunidades indígenas e a perseguição às religiões de matriz africana, condena-nos a todos.

Aquele que se conforma com a injustiça sempre será, na minha modesta opinião, tão ou até mais injusto do que aquele que a pratica. Somos coautores da miséria moral em um tempo onde e comoção é subjugada pelo pragmatismo, pela racionalidade exacerbada, pela indiferença em nome de uma suposta “paz de espirito”.

Parafraseando Francisco Azevedo, somos “criadores de nós mesmos, inventamos e reinventamos sem trégua, diariamente. A cada experiência, boa ou má, nasce outro eu de nossa própria autoria. Por instinto e vocação, todos nos concebemos, nos rascunhamos, nos passamos a limpo e nos apresentamos em público na versão que julgamos menos falha ou mais convincente”.

Tropeçamos na hipocrisia de uma civilização que consolida todos os dias uma religiosidade difusa e um fanatismo sádico. Uma política não inclusiva e um capitalismo obscuro a quem não pretende ostentar as discrepâncias de uma sociedade acostumada com os subterfúgios avessos à coletividade. Somos a consciência que renegamos.

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