Vivemos um
tempo de extraordinário desenvolvimento das ciências e das tecnologias. É
possível vislumbrar a fragmentação do conhecimento em incontáveis direções. Os
benefícios advindos da pesquisa e dos experimentos são analisados, em grande
medida, como sendo um indicativo para a força motriz do progresso. Por outro
lado, esta realidade também acaba aniquilando as diretrizes culturais que
permitem a coexistência, a comunicação e a solidariedade.
Ocorre uma
separação dos seres humanos em grupos culturais condicionados pela linguagem,
por determinados códigos de conduta e pela noção de um conhecimento particular.
Ao que parece, a ciência e a tecnologia não tem conseguido desempenhar um papel
unificador em torno da noção de cultura.
Cada
indivíduo que, em algum momento de sua vida, já tenha se deparado com a leitura
inebriante de clássicos como, por exemplo, Shakespeare, Vitor Hugo,
Dostoiévski, Goethe ou Fernando Pessoa, é capaz de assimilar com maior
desenvoltura que as pessoas sentem-se comprometidas solidariamente quando
capazes de exercitar a essência da partilha, independentemente de sua posição
social, situação financeira, religião ou período histórico.
Nada nos
protege melhor da estupidez do preconceito, do racismo, da xenofobia, do
sectarismo religioso ou do anacronismo político, do que esta verdade recorrente
na grande literatura: todos são iguais. As diferenças étnicas, sociais,
politicas, religiosas e culturais constituem-se como sendo a maior riqueza do
legado humano e, estimá-las como manifestação da multiforme criatividade
humana, continua sendo o maior desafio da contemporaneidade.
Receio que
ainda seja preciso aprender o que somos e como somos em nossa humanidade, com
nossas ações, sonhos e adversidades. Tanto no espaço público como na
privacidade de nossas consciências. A ciência não pode perder-se em si mesma. O
conhecimento gerar insensatez. A tecnologia sufocar a busca pela equidade. É
preciso preservar uma visão integradora e fraterna neste mundo tão machucado
pela mentira, pelo “faz de conta”, pela incapacidade das pessoas exercitarem a
bondade e a gratidão.
É
inadmissível que uma sociedade tão perspicaz em evocar suas prerrogativas
jurídicas quando algum de seus direitos patrimoniais é questionado, possa
valer-se de mecanismos reacionários para subverter os valores que ela própria
instituiu. Uma sociedade que, todos os dias, hierarquiza os seres humanos
valendo-se, sobretudo, de indicadores econômicos, religiosos e culturais.
Esta
realidade é bastante conhecida. Europeus, na idade média, não tiveram problemas
em equiparar os indígenas a animais, dizimando-os. Qualificaram também os
africanos como bárbaros ou primitivos, escravizando-os. Na tentativa de
legitimar toda a sorte de segregação às mulheres, diversos concílios discutiram
se elas teriam ou não uma alma.
Para algumas
religiões, aqueles que professam a sua fé são filhos, os demais, meras
criaturas de Deus. Ora, se não são filhos de Deus, se não possuem filiação e
proteção divinas, caso recusem a fé, são hostilizados e tidos como inferiores.
Por vezes esta inferioridade é tamanha que as suas existências ofendem os
“sagrados corações religiosos”, que reagem com torturas, perseguições,
aniquilações. Basta lembrar o período das cruzadas, a inquisição, o nazismo com
o extermínio de judeus, o fundamentalismo triunfalista da Al Qaeda ou do Estado
Islâmico.
É a
desumanização que consolida o genocídio, tanto no passado como no presente. É
fácil perceber as incongruências históricas no desrespeito aos direitos
fundamentais para uma convivência pacífica e harmoniosa. No entanto, é
lamentável e absurdo não enxergar as mazelas e os dilemas do nosso tempo.
Hoje, a
passividade com que vemos a segregação dos negros, a discriminação dos pobres,
o desprezo aos imigrantes, a demonização dos infratores, a subjugação das
mulheres, a estigmatização dos homossexuais, o desrespeito às comunidades
indígenas e a perseguição às religiões de matriz africana, condena-nos a todos.
Aquele que
se conforma com a injustiça sempre será, na minha modesta opinião, tão ou até
mais injusto do que aquele que a pratica. Somos coautores da miséria moral em
um tempo onde e comoção é subjugada pelo pragmatismo, pela racionalidade
exacerbada, pela indiferença em nome de uma suposta “paz de espirito”.
Parafraseando
Francisco Azevedo, somos “criadores de nós mesmos, inventamos e reinventamos
sem trégua, diariamente. A cada experiência, boa ou má, nasce outro eu de nossa
própria autoria. Por instinto e vocação, todos nos concebemos, nos rascunhamos,
nos passamos a limpo e nos apresentamos em público na versão que julgamos menos
falha ou mais convincente”.
Tropeçamos
na hipocrisia de uma civilização que consolida todos os dias uma religiosidade
difusa e um fanatismo sádico. Uma política não inclusiva e um capitalismo
obscuro a quem não pretende ostentar as discrepâncias de uma sociedade
acostumada com os subterfúgios avessos à coletividade. Somos a consciência que
renegamos.
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